Mercado dos Pinhões completa 85 anos; história nasceu no Centro e estrutura se dividiu por Fortaleza
Separados nos anos 1930, Mercado dos Pinhões e da Aerolândia revelam a urbanização de Fortaleza. Bens tombados, equipamentos são alvos de crítica quanto a preservação e ocupação
Com lugar cativo na agenda cultural de Fortaleza, o Mercado dos Pinhões completa exatos 85 anos de instalação nesta quarta-feira (12). A edificação testemunhou as mudanças sociais e urbanas do entorno. Chegou a aparecer em telas de cinema pelo Brasil. No correr das décadas foi tombado e ressignificado pela população.
A movimentação comercial de outrora deu lugar às atividades ligadas a arte e lazer. Quem aproveita o clima bucólico aos pés do Mercado nem desconfia, mas a história da edificação começou muito antes dali. Para completar o novelo de curiosidades, o Pinhões possui um irmão gêmeo e de igual relevância histórica. É o Mercado da Aerolândia.
Seis quilômetros de asfalto e trajetórias diferentes os separam. Ambos já foram um só. No passado, as duas estruturas metálicas formavam o "Mercado de Ferro". Montado em 1897, simbolizava o que de mais moderno existia em siderurgia aplicada à engenharia. Tecnologia importada da França, diga-se.
Da emergente capital influenciada pela "Belle Époque" aos dias recentes, adentramos a história destes espaços públicos. Além da relação dos moradores, outro aspecto abordado recai sobre a atual preservação dos equipamentos. Críticas e incertezas estão no horizonte desta dupla secular.
Em 1937, o Mercado de Ferro foi desmontado. No ano seguinte, suas partes foram realocadas. Um dos pavilhões foi instalado na Rua Gonçalves Ledo, batizado assim como "Mercado dos Pinhões". A outra metade foi implantada na praça São Sebastião, situada no bairro Otávio Bonfim. Lá, originou o Mercado São Sebastião, ainda em funcionamento. Com a necessidade de ampliação, em 1968, a estrutura deixa o local, sendo reconfigurado no atual bairro.
Aerolândia de portas fechadas
Percorrendo a BR-116 fica difícil notar a presença do outro Mercado, quase colado a uma das margens da via. Na tarde daquela sexta-feira, segue fechado com correntes. Apresenta ferrugem e inúmeros buracos no teto. "O Mercado e a quadra vizinha estão abandonados", afirma Josicleso da Silva.
O morador, conhecido na localidade como "Fifi da Aerolândia" respira aquele lugar desde os cinco anos. "Todo mundo tinha uma banquinha aqui, podia vender sua fruta, vender seu frango. Acabou a renda de muito pai de família", contesta.
Em um comércio próximo encontramos o aposentado David da Silva. "10 anos trabalhei aí como vigia", faz questão de apontar. Da época de serviços prestados, iniciada por volta de 2001, o ex-vigilante explicou que o lugar comercializava merendas, almoço e o serviço com cereais, fruta, verdura, carne e peixe.
Segundo o entrevistado, a chegada de outros comércios, novas opções de pagamento com cartões de crédito diminuíram os clientes. Em dezembro de 2015, a gestão municipal finalizou o processo de revitalização do Mercado da Aerolândia. A partir dali, a promessa era fazer do espaço um polo cultural, semelhante ao irmão alojado na Aldeota.
Aproveitando a equipe de reportagem, o morador Marcos Vinícius endossa o descontentamento. "Negócio desse era tão bom no Carnaval. Isso aqui seria lucro para população, para o Estado. Depois da pandemia, tá aí. Ninguém vê um negócio desses? É uma vergonha".
Na caixa de som do quiosque onde a conversa flui ouvimos "Mais Uma Vez", sucesso de Genival Santos. João Bosco, residente há 35 anos, diminui o volume da música e compartilha. "Foi feito o serviço em 2015, mas não serviu. O material está deteriorado. Aqui, o certo é reformar e botar para funcionar".
Pinhões de luz e música
Em contraste com o vazio e escuridão notados na Aerolândia, o Mercado dos Pinhões contava com uma noite de sexta-feira agitada. Início das férias, o local recebia o "Sons do Mercado", cuja atração do dia era o forró com a banda Kinho Callou.
As mesas dos bares próximos estão apinhados. Na rua lateral, um palco com luz e som montado pelo Papudim Bar traz apresentação de Alice Mel e Banda. Diferentes gerações e visitantes de vários pontos da cidade marcam presença. Tem opções gastronômicas de espetinho e pratinhos de comidas típicas.
"Quem movimenta isso aqui são os bares", conta a proprietária do Papudim Bar, Sandra Saraiva. São 15 anos de atuação da casa. Um dos destaques na agenda cotidiana do bar são os shows, oferecendo espaço e apoio a artistas locais, defende a entrevistada.
Colado ao Pinhões, o Bar do Cazuza é o mais antigo ali. Conversamos com Cazuza, ou melhor, José Braga de Lima. Desde 1983, o comerciante atende boêmios e vende refeições variadas que cabem do almoço à janta. O cenário é bem diferente de algumas décadas atrás, relembra.
"Para mim sempre foi bom. Mas, quando cheguei, era muito 'esquisito'. Quando você falava que morava perto do Mercado dos Pinhões soltavam um 'vixe', dizendo que era 'perigoso'. Hoje é o contrário, mudou tudo. 'Rapaz, lá é uma beleza'", me falam.
Em 1998, na gestão do prefeito Juraci Magalhães (1905-2001), o Mercado dos Pinhões foi reformado e remodelado enquanto espaço de cultura e lazer. "Depois que o Juraci fez a reforma, começaram os eventos. Luizianne Lins deu continuidade e a coisa foi para frente", relembra Cazuza.
Apresentando ferrugem em vários pontos da estrutura, a conservação do Pinhões é criticada pelos visitantes. Em outro aspecto, os comerciantes apontam que desde a pandemia da Covid-19, a ocupação cultural no lugar reduziu drasticamente.
Nasce o Mercado de Ferro
Apresentada ao mundo no distante 1889, a Torre Eiffel demarcava o ápice da siderurgia aplicada à engenharia. Oito anos após o feito, um exemplar dessa nova tecnologia chegava a Fortaleza. Ansiosa por modernidade, a capital cearense inaugurava o seu Mercado da Carne, conhecido popularmente como o "Mercado de Ferro".
Todo em estilo "art nouveau", com estrutura de ferro importada de Orleans, na França, o estabelecimento foi montado em frente ao prédio da Assembleia (atual Museu do Ceará). Originalmente, atendia na praça Carolina (hoje Waldemar Falcão) entre as ruas Floriano Peixoto e General Bezerril.
A obra foi realizada na administração do intendente (prefeito) Guilherme César da Rocha e do presidente (governador) comendador Antônio Pinto Nogueira Accioly, entre 1896-1897. O pesquisador e memorialista Lucas Júnior divide algumas reflexões sobre a realidade da capital cearense naquele momento.
"Era uma cidade elitista, de pobreza muito grande. Uma periferia abandonada, sem escolas. Uma Fortaleza elitizada, voltada apenas para os comerciantes e classe média que existia nesse quadrilátero onde foi montado o Mercado de Ferro".
Na obra “Fortaleza Descalça”, o escritor e poeta Otacílio de Azevedo (1892-1978) resgatou memórias particulares sobre a Fortaleza no início do século XX. Em 1910, vindo de Redenção, o menino testemunhava as novidades urbanas dos cafés, praças e cinemas. Entre elas, o Mercado de Ferro:
"Deslumbrei-me com a construção. Era todo de ferro, pintado de vermelho-escuro e dividido em três partes. Numa delas, a do lado do prédio da Assembleia, vendia-se carne de porco, carneiro, linguiças e vísceras. No centro, verduras e hortaliças. No outro, carne verde e ossadas. Ao meio-dia, a carne que não era vendida era enviada para a Casa de Misericórdia – o restante era inutilizado com creolina”.
Desmontado e dividido
Situado no então coração comercial da cidade, o Mercado de Ferro atraia compradores de todas as regiões. Durante a pesquisa, encontramos reclamações acerca do funcionamento daquele comércio popular. Dois episódios são relatados pelo periódico "O Ceará" (1925-1930), presente nos arquivos da Biblioteca Nacional.
A coluna "Queixas do Povo" alertava os gestores do município. Em julho de 1928, as condições de higiene eram alvo de críticas. "Referido Mercado, presentemente, a qualquer hora do dia ou da noite, vem exalando um mau cheiro insuportável. Durante o dia, aquela fedentina aumenta cada vez mais até a hora da baldeação - serviço incompleto, sem a assepsia necessária", conta o documento.
Em setembro do mesmo ano, moradores dos sobrados reclamaram de "palavrões", supostamente realizados pelos trabalhadores do mercado. "Estes senhores ingressam naquele casarão às primeiras horas da manhã e haja desaforos e haja troca de ultrajes, cada qual o mais ignóbil e repelente (...) O vocabulário ali ouvido é deveras nojento, indigno mesmo de ser usado por magarefes".
Segundo Lucas Junior, a criação de outro mercado nas proximidades diminuiu o protagonismo do Mercado de Ferro. "A construção do Mercado de Carnes e de Frutas, inaugurado em 1932, na Conde d'Eu, afastou os mais pobres dos xadrezes dominados pelos comerciantes tradicionais, porém alavancou a altivez histórica da antiga Rua dos Mercadores, até hoje voltada para o comércio e berço da cidade e paixão dos povos mais humildes", completa.
Autoras do livro "A distância entre nós dois - História do Mercado de Ferro de Fortaleza" (2019), as jornalistas e escritoras Natália Maia e Isabel Paz compartilham observações adquiridas durante o rico processo de investigação empregado na obra.
"É bem interessante refletir sobre como o Mercado foi construído em 1987 como um marco civilizatório para a entrada no novo século, no contexto da Fortaleza Belle Époque, e foi desmontado no final dos anos 30 dentro da mesma perspectiva, quando sua existência já não refletia os padrões estéticos e de higiene da época", defende Natália Maia.
Para Isabel Paz, o Mercado de Ferro é construído nesse esforço higienizador. Uma perspectiva que ainda perdura, reflete. "De certa forma, esse processo espelha o que vivemos até hoje em Fortaleza: uma necessidade grande de modernização, de 'embelezamento' da cidade, de substituição de coisas que são consideradas "antigas" por novas".
Dividido, o Mercado de Ferro seguiu sua peregrinação pela capital cearense. Adentraram a rotina de inúmeros cearenses e seguem despertando o debate acerca de Fortaleza. "A memória desses espaços é viva, atravessada também pelas pessoas que trabalharam, festejaram ou passaram por ali. A ocupação do patrimônio público pela população é fundamental e ressignifica os mercados, ano após ano", finaliza Natália Maia.
Previsão de reparos
Procuramos a gestão municipal para obter respostas acerca da preservação dos dois Mercados. Em nota, a Secretaria Municipal da Gestão Regional (Seger) aponta que "aguarda a conclusão de estudo de viabilidade do Mercado da Aerolândia para dar continuidade a melhorias no empreendimento e, posteriormente, retorno das atividades no local".
"A Seger informa ainda que analisa proposta de utilização do prédio, apresentada pela Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Ceará (FAEC), para administrar o espaço", continua o documento.
Em relação ao Mercado dos Pinhões, o órgão explica que solicitou um projeto de requalificação para o equipamento. "Atualmente, o projeto está em fase de elaboração na Secretaria Municipal da Infraestrutura (Seinf)", descreve o comunicado.
No conteúdo enviado, entretanto, a gestão não descreve prazos ou datas de execução destas atividades.