Marivalda Kariri desbravou o Brasil com forró raiz e continua encantando palcos aos 80 anos
A cearense, conhecida como "A forrozeira do Amazonas", trabalhou com Luiz Gonzaga e fez carreira na região Norte. Na terra natal, desenvolve trabalho social voltado à juventude
Marivalda Kariri trilhou pedaços de chão esquecidos do Brasil. Sustentou a família levando arte e diversão a garimpos, seringais e barrancos inóspitos da Região Norte. Orfã aos três anos, fez carreira cantando de choros a forrós maliciosos. Caso do sucesso “Toco Cru Pegando Fogo”.
De Luiz Gonzaga (1912-1989), afirma, guardou ensinamentos valiosos quanto à lida artística. "A forrozeira do Amazonas" testemunhou diferentes realidades e crê na transformação social por meio da arte. Compositora, roteirista, cineasta, folclorista, produtora. Muitas são as contribuições da cearense nascida em Milhã.
No domingo (17), às 18h, a cantora celebra 80 anos de história. Sobe ao palco do Cineteatro São Luiz de Fortaleza para realizar o espetáculo “Fados, Choros e Canções”. O repertório aproxima nordeste e terras lusitanas. Representa homenagem às raízes familiares. "Até com lata d'água na cabeça nas estradas cantei”.
O contato com o fado veio na infância, com a avó. Chegou a ouvir de um irmão que se fosse cantora, seguisse o estilo português. "Mas, eu gostava mesmo era do forró, da raiz nordestina". Começou com hinos em igrejas. Corações de novenas. No Recife, do orfanato Bom Pastor do Engenho do Meio, participou de corais. Lá, ouviu Jackson do Pandeiro (1919-1982) lhe incentivar a ser profissional.
“Conheço o Brasil e as beiradas”
São Paulo. Anos 1970. Marivalda se dedica a choros e forró tradicional. Conhece o parceiro musical e esposo Zeca Costa (que realiza participação especial no concerto do Cineteatro São Luiz). Com o músico gaúcho forma a dupla romântica “Duo Diamante". Tempos depois, um convite mudaria tudo.
Com a febre da Jovem Guarda, conta Marivalda, o forró perdia espaço no mercado. O baião de Carmélia Alves (1923-2012), Jackson do Pandeiro, entre outros nomes, tinha páreo duro com os cabeludos liderados por Roberto Carlos. Sabiamente, Gonzagão viu a hora de atrair outras plateias.
Segundo a cantora, o filho de Januário montou excursões pela Região Norte. A fórmula era apresentar novos nomes do forró e ele convidou a cearense. Chegou ao Pará em 1975. Fizeram Ilha de Marajó e Santarém, resgata. Riscaram Amazonas e Rondônia. "Comecei a desbravar e não voltei mais. Ia a São Paulo, dava as ordens e voltava".
Por conta dos ciclos da borracha e a então "febre do ouro", aquele território era tomado por nordestinos e descendentes. Foram 22 anos dedicados àquele mercado. Fazia cultura para riberinhos e populações que careciam de diversão. Marivalda lembra fielmente do ensinamento de seu Lua.
“Se você for esperta mesmo, você não vai ficar ganhando aquele cachê pequeno de São Paulo e Rio de Janeiro. Fique aqui. Tem nordestino. É onde precisam da nossa música”
Perigos do Norte
“Rio arriba, rio abaixo. Você não tem uma ribeira de rio grande ou pequeno, de afluentes que eu não tenha passado, que eu não tenha visto coisa bonita e coisa feia”. A memória da cearense reconstrói o difícil cenário daquela parte do País. De ver pessoas mortas. Moradores nativos que os latifundiários entravam e matavam.
De navegar por um imenso rio e se deparar com corpos de garimpeiros. Assassinados por briga de ouro. “Meu lado social despertou muito por conta desta situação. Muitos garimpeiros que ali morriam, deixavam as viúvas em barracos com cinco, seis, sete, oito... 10 filhos sem ter como sobreviver. Daí, foi que criei uma ONG em Rondônia", descreve.
De um barracão ajudava estas mulheres que perderam os maridos. Amparava também os “blefados” que se chegavam. Marivalda explica o termo. Refere-se a quem faliu. Quebrou após o barranco não dar mais ouro. Ali, era preciso falar a mesma língua.
"Quando Gretchen, aquela Rita Cadillac chegaram no garimpo, eu já estava velhinha, fazendo shows. Mas, não tirando a roupa para cantar. Cantava vestida de cigana. Eu era meio doida para me sair bem e não ser estuprada. E os caras respeitavam o meu trabalho", conta.
Criou a prole em São Paulo. Indo e vindo cortando os céus do Norte. Trabalhando e ganhando dinheiro na Amazônia. “É por isso que Marivalda quase não fez o nome no Ceará. Fiquei muitos anos lá. Quando voltei, foi igual à história da vaquinha. 'Só tinha o couro e o osso'”, conta e se diverte.
Citando os versos de “Último Pau de Arara”, explica que o retorno à terra natal foi devido a um difícil momento de saúde. “Estava desenganada há coisa de 16 anos”. A artista superou o câncer e enfrentou outra batalha recentemente. Ficou 30 dias, internada durante a pandemia por conta de uma infecção. “Não foi Covid-19”, fala agradecida.
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Foram tempos de muito trabalho. Quando lembra do Norte, lamenta que muitas das injustiças de anos atrás ainda perdurem naquela região. "Muito artista global viveu a carreira inteira na emissora e não conseguiu construir uma morada, uma casa. Eu consegui. Botei meus filhos em casa boa. Paguei faculdade. Ajudei família. Quando chegou a hora de aposentar eu nem quis parar, observa.
Aos 80 anos, o próximo desafio é cantar o espetáculo “Fados, Choros e Canções” em Portugal. Duas datas estão na mira até o fim do ano, nas cidades de Porto e Coimbra. Outra alegria é manter ativo o trabalho social. Ajudar, defende a cantora, jovens que assim como ela, não tiveram oportunidades de cultura.
Em Milhã, oferta projeto de formação com o “Museu e Casa de Cultura Marivalda Kariri”. "Acho tão bom fazer as coias para mim e para os outros. Tem muita criança formada com a ajuda que eu e alguns amigos conseguimos fazer. Temos a Casa de Cultura e o acervo que vai dando para nos divertir", desabafa.
Outro feito na carreira acompanha a área audiovisual. Em 2016, a cearense lançou o filme “A Rainha e Seus Reis de Barro”. A obra narra a vida da cantora e de artistas amigos como Messias Holanda (1942-2018), sanfoneiro Zé de Manu (1937-2018) e o poeta e repentista Pedro Bandeira (1938-2020).
Ativa e guerreira canta fados que remetem às raízes familiares. Carrega brasis marginalizados dentro de si. Inspira pela jornada de partilha com os desamparados. Mestra Marivalda Kariri só começou.