Jacutinga do Cariri: filme conta a história de Glorinha, dona do cabaré mais famoso do anos 50 e 60
“O Reino da Glória” é produzido por estudantes da Universidade Federal do Cariri e explora a personagem para além do empreendimento que marcou a cidade do Crato por décadas
Ninguém conhece Maria da Glória Pereira. Conhecem Glorinha – sobretudo quem reside no Crato, município do Cariri cearense. A mulher tornou-se lendária ao comandar o mais famoso cabaré da cidade entre as décadas de 1950 e 1960. Diziam: “Vou lá na Glorinha”. Aos noveleiros de plantão, era uma espécie de Jacutinga, personagem de “Renascer”. Um ícone.
Por anos, essa figura rondou não apenas o imaginário, mas o cotidiano popular, capaz de cravar o próprio nome na história da região. “Sempre que eu ouvia falar naquela mulher tão respeitada quanto o prefeito, enlouquecia pensando em como isso era possível. Ao mesmo tempo, ela era uma incógnita para mim. Era como se fosse apenas uma lenda da cidade”.
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A impressão é de Cibele Moraes, 21, estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Cariri (UFCA) e diretora e roteirista do documentário “O Reino da Glória”. A produção estreou no último dia 2 de agosto no Crato e deve chegar a outras praças em breve. Nela, a trajetória de Glorinha e de como ela se tornou uma personalidade tão relevante.
Tudo começou por meio de uma pesquisa. Natural do Cariri, Cibele sempre ouviu falar de Glória, dos causos ligados a ela e de pessoas que frequentavam o cabaré. Mas nunca aprofundou nenhum desses assuntos. Até que, instigada pelo professor Rodrigo Capistrano, da disciplina de Laboratório de Telejornalismo, decidiu que era hora de mergulhar.
“Glorinha me veio à mente imediatamente. Era algo que eu tinha curiosidade, costumava ler. Mas trabalhar mesmo, foi com o documentário”. O projeto é um curta-metragem. Havia desejo de fazer algo maior, mas, por ser um trabalho de faculdade, o curto tempo para execução definiu os rumos da iniciativa.
Nada que comprometa a qualidade do filme, porém. “O Reino da Glória” conta a história de Glorinha e do cabaré tocado por ela, mas é muito mais focado no lado pessoal da personagem. Quem ela era fora do cabaré? Por que era considerada uma rainha? Ela era mãe? Câmeras e microfones em riste para elucidar essas questões.
Quem foi entrevistado
A primeira pessoa contatada foi Otonite Cortez, nora de Glorinha. Segundo Cibele, ela foi muito receptiva, permitindo prontamente a feitura do documentário. “Me entregou mais de 200 fotos que eram da própria Glorinha. A partir disso, fomos construindo nossa narrativa”.
Outras pessoas entrevistadas foram Wladimir Carvalho, filho de uma das mulheres que trabalharam com Glorinha; Kaika Luiz, amigo da cratense; e o professor de história da Universidade Regional do Cariri, Iarê Lucas. Com este, ficou a missão de contextualizar historicamente como eram os cabarés daquela época, em que perspectiva estavam inseridos.
A produção, por sua vez, contou inicialmente com nove pessoas, mas concluiu com cinco: Amanda Braga, Gabriel Silva, Gabriele Batista, Victor Cunha e Angélica Andrade. “O maior desafio foi procurar formas de como contar a história de Glorinha. Não queríamos colocá-la como heroína, mas também não queríamos fazer dela uma vilã. Então tínhamos que saber o que ouvir, como ouvir e o que era necessário para o documentário”.
Em suma, o que está na tela é o perfil de uma pessoa, com todas as singularidades e contradições. Essa visão tão clara e isenta facilitou para que os entrevistados se doassem por completo no processo. Cibele diz que todos que quiseram e se sentiram à vontade para contribuir com o documentário falaram histórias maravilhosas e indicaram outras fontes.
“Infelizmente nem todos que nos ajudaram foram gravados, por escolha deles mesmos. Mas, sem dúvidas, foram essenciais. A pesquisa foi feita durante um mês e tivemos dois dias de gravações externas”.
Audaciosa, uma fera, boa mãe
Questionada sobre quem era Glorinha antes e depois das pesquisas, a diretora não se furta a chamá-la de audaciosa, embora não mais uma lenda. “Ela é uma pessoa. Uma pessoa com defeitos, acertos, fraquezas e, acima de tudo, uma mãe”.
Por sinal, entre os relatos colhidos, todos saúdam o quanto Glória era essa grandiosa figura materna. Uma fera, no bom sentido, que até hoje incomoda várias pessoas da sociedade caririense. Caminha entre o sagrado e o profano, o mistério e a simplicidade.
“Tudo depende da forma como vamos contar a história. Estamos apenas mostrando uma realidade que existiu na nossa cidade, algo constante durante muito tempo e que também foi importante. Saber que aquele local foi parte essencial da história da nossa cidade e da economia é crucial. Creio que estamos conseguindo isso, mesmo que aos poucos”.
De fato. Outro dos vários méritos do documentário é situar que, naquele tempo – entre as décadas de 1950 e 1960 – cabarés não eram apenas lugares para pessoas terem relações sexuais, especialmente o de Glorinha. Constituíam-se como espaços para a população se alimentar, beber e se reunir com os amigos.
Aquilo gerava grande movimentação no local. Muitos famosos e autoridades iam ao cabaré de Glorinha para conversas – algumas bastante significativas, inclusive – e essa naturalidade se deu pelo modo como ela coordenava o local.
“Ela sabia conversar com as pessoas, comandar, passar confiança. Por isso apelidaram de ‘O Reino da Glória’, porque ela era como uma rainha mesmo. Muitas pessoas de fora do Crato, de fora até do país, ouviam falar sobre Glorinha e queriam vir pra cá para ver esse ponto turístico”. Dimensão, sem dúvidas, imensa, recordada até hoje.
“O cabaré movimentava a economia, quer algumas pessoas gostem ou não, e atraía muitos turistas para a cidade. Essa é a relevância do documentário: mostrar algo que, mesmo que algumas pessoas tentem apagar, merece ser vista. O meretrício existiu no Crato, foi uma atividade muito forte, e precisa ser debatida”.
Mais exibições do filme gratuitas e abertas ao público acontecerão no Cariri e a obra também participará de festivais. A intenção da equipe é nítida: fazer com que a história ultrapasse as barreiras do Crato. Não à toa, estudam realizar uma segunda parte do documentário, abraçando outras questões relativas ao tema.
“Tivemos um grande interesse por parte da Secretaria de Cultura do Crato, que patrocinou o nosso evento de estreia, e eles querem muito uma segunda parte. Nós também queremos. Vamos ver o que o futuro nos reserva. Se depender de mim, estou pronta para falar mais sobre Glorinha, assim como tenho planos futuros de dirigir e escrever histórias sobre outros personagens históricos do Crato”, anuncia Cibele. Aguardemos.