Crochê versátil, botões de cerâmica: geração de designers cearenses dão nova roupagem ao tradicional
Com projeção nacional, marcas locais valorizam a moda local e retratam potencial criativo do Ceará por meio de peças de roupas
Terra dos artesãos, dos bilros, das agulhas, de mãos que fazem história. O Ceará já é conhecido por suas tradições do artesanato, da moda e dos saberes ancestrais, mas há uma leva de designers locais da nova geração impulsionando o nome do estado com uma releitura dos elementos regionais sob um olhar mais contemporâneo e sofisticado.
Com recortes modernos, formas geométricas que se assemelham à flora da caatinga ou botões de cerâmica confeccionados por oleiros cearenses, as peças ganham uma roupagem que valoriza a moda local. Algumas marcas até já saíram do perímetro do Ceará e ganham a Região Sudeste, importantes polos de vendas para o setor.
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Embora o reconhecimento local seja algo imprescindível, atingir novos públicos pelo País é um feito e tanto. Para além disso, figuras públicas vestirem essas peças colocam esses designers sob holofotes importantes. Assim como aconteceu com o terninho usado por Janja, primeira-dama, na posse do presidente Lula que deu o que falar.
A primeira-dama escolheu uma produção da estilista gaúcha Helô Rocha, um conjunto de blazer, colete e calça feito em crepe de seda vintage e tingido naturalmente com caju e ruibarbo. As peças ganharam ainda detalhes feitos por bordadeiras de Timbaúba dos Batistas, da região de Seridó, no Rio Grande do Norte.
O episódio deu não só visibilidade para a estilista que assinou a produção. Deu ainda mais holofote para a moda feita no Brasil.
Crochê e sofisticação
Quando estava concluindo a faculdade de Moda, a designer Gabriela Fiúza só tinha uma certeza: queria trabalhar com comunicação. Não que isso não tenha acontecido, mesmo que indiretamente, mas os caminhos a levaram para ter a sonhada marca de moda com assinatura própria. Assim nasceu a label que leva seu nome.
"Eu tinha a vontade de ter algo meu, mas a marca teria que transcrever o que sou, meu estilo muito minimalista e simplificado. Eu queria criar algo inédito, com meu estilo, minha assinatura, elegante e atemporal e foi aí que cheguei no crochê, uma artesania que tive muito contato na infância, quando passava férias em Jijoca”, conta Gabriela.
Contudo, não poderia ser só mais um crochê. A partir de diversos estudos, Gabriela chegou no ponto que queria para produzir peças minimalistas, sofisticadas, versáteis e, acima de tudo, que transmitissem a vida do Ceará, além de valorizar a mão de obra local, já que há quase sete anos trabalha com o mesmo grupo de artesãs de Nova Russas.
“Fizemos esse trabalho de pesquisa no interior, eu fazia a modelagem, eu estudava pontos, formas e fios. Era a busca pelo crochê perfeito, pela estética contemporânea, precisava ter caimento e um visual bonito”, explica.
Essa releitura, para Gabriela, precisava ainda ser versátil. “Eu tento fugir da caricatura do Ceará, que não é só rústico ou simples demais, ou que precisamos de ajuda. Eu quero que nossa região seja vista como algo rico, criativo, moderno e inovador”.
“Não quero que minha roupa seja usada só no verão, porque o crochê não é só pra uma estação do ano. É pra ser usada no ano inteiro e em qualquer lugar do mundo, é uma roupa atemporal”.
'Roupa poesia'
Criada por mãe e filha, a autônoma Diana Souza e a advogada Marina Fontanari, a Patú nasceu há pouco mais de um ano do desejo que Marina tinha de ver o talento da mãe ter espaço para desabrochar. “Minha mãe saiu de Senador Pompeu, há mais de 30 anos, com o sonho de trabalhar com moda, foi vendedora, atendente de caixa, gerente e chegou a ter uma confecção”, diz.
“Sempre a achei muito criativa e acreditava que ela precisava ter a marca dela, mas sempre que eu sugeria, ela falava que só faria se fosse comigo. Pra mim não faria sentido, porque eu tava fazendo faculdade de Direito, nunca nem tive essa veia despertada pra moda”, acrescenta.
Porém, tudo mudou quando as duas passaram um período em Senador Pompeu, durante a pandemia. Ao se reconectar com o lugar em que a mãe nasceu e cresceu, veio em mente: elas teriam uma marca e se chamaria Patú. O nome carrega um significado importante, como explica Marina, é o nome da fazenda do bisavô materno.
“A gente tenta fazer nossa roupa com esse significado de contar nossa história por meio das peças, e foi aí que consegui me inserir”.
Assim como Gabriela, Marina conta querer contar a história do Ceará fugindo só de cores quentes, de estampas, de cactos. "A gente tem tanta técnica, ancestralidade, conhecimentos ricos, que eu sabia que nós duas podíamos trazer isso de uma forma mais minimalista”.
A terceira coleção da marca tem como tema Dragão do Mar, abolicionista emblemático cearense. Nascido em Aracati, o repertório é composto por peças que remontam às falésias do litoral, aos trabalhos das rendeiras de labirinto, entre outros elementos. Além disso, as roupas contam histórias.
“A gente trabalha com muitas frases que são bordadas à mão nas peças e algumas pessoas chamam de 'roupa poesia'. Usamos técnica de cerâmica feita por oleiros cearenses pra fazer botões, um vestido tem a alça com madeiras em bolas encapadas no tecido, que remete ao terço da minha vó”, detalha Marina sobre como aplica os elementos regionais.
Formas do Cariri
Com as vertentes da região do Cariri cearense, Ana Beatriz Ribeiro lançou em 2020 a Açude, que transforma o jatobá, a Chapada do Araripe, a obra de Patativa do Assaré e outras tradições e elementos locais em vestidos, calças, croppeds, saias, kimonos.
“Eu queria que a marca valorizasse a beleza de onde eu vi, de coisas que eu via no meu cotidiano, como a timbaúba. Na nova coleção, por exemplo, temos um vestido inspirado no pequi, que me traz uma referência muito grande da minha memória de infância. Fizemos um bordado manual com miçangas de vidro, inspirado no fruto”.
De Juazeiro do Norte, a paixão pela moda surgiu ainda quando Ana Beatriz era criança e acompanhava a mãe nas idas às lojas de tecidos e costureiras para produzir roupas próprias ou então via a avó Zeferina, hoje com 98 anos, costurar e vender bonecas de pano. Mas decidiu seguir outro caminho e foi parar na Arquitetura.
“Sempre soube que não era isso que eu queria fazer da minha vida, mas existia muito preconceito no interior sobre as profissões que davam dinheiro, então acabei indo pra Arquitetura”, conta.
Já formada, Ana Beatriz iniciou a faculdade de Design de Moda e como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) criou a Açude, como forma de também valorizar a moda local. “Quero trazer à tona as belezas que enxergo e se destacam no meu olhar. elementos que diferenciam a gente do resto do mundo, por isso estou sempre em pesquisa”.
“É uma vitória levar minha região pra que outras pessoas também conheçam. Se essa pesquisa não existisse, eu não estaria satisfeita com meu trabalho. É uma realização, de pode falar sobre a cultura da minha região”, destaca.