Conheça o poeta cearense que aprendeu a ler com a Bíblia e conquistou prêmios literários

Natural da Serra da Donana, próximo ao município de Jucás, Ferreira Lima é nacionalmente reconhecido pelo ofício poético

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Principais influências poéticas de Ferreira Lima nascem do lirismo dos salmos bíblicos e do realismo fantástico das canções dos cantadores
Foto: Arquivo pessoal

Aos oito anos de idade, Ferreira Lima aprendeu a ler. Aos nove, já tinha percorrido a Bíblia de cabo a rabo pela primeira vez. Agora, aos 67, ele conta a história dessa caminhada que culminou na poesia e em uma paixão desenfreada pela literatura.

Natural da Serra da Donana – território localizado próximo ao município de Jucás, no centro-sul cearense – o poeta foi alfabetizado na própria casa, pelo pai e pela mãe. Ciente da importância da educação para o filho, o casal comprou a carta de ABC e a tabuada, ferramentas de alfabetização da época. 

Como livro de técnica de desenvolvimento da leitura, estava a Bíblia Sagrada, única publicação impressa existente na Serra da Donana, uma comunidade evangélica. “A Bíblia é um livro maravilhoso, mas o que me endereçou para a poesia foram os salmos, que são poesias cantadas”, explica o artista diretamente de Sobral, onde reside.

Legenda: Das lições semeadas nos primeiros contatos com a palavra, ficaram em Ferreira Lima a repetição como forma de aprendizado e a resiliência
Foto: Arquivo pessoal

Essa predisposição para a criação em versos vem de antes, porém. O avô paterno de Ferreira Lima era poeta bissexto e criava poemas sobretudo a partir de acontecimentos. Entre eles, a seca e os retirantes, invernos famosos, acidentes e mortes de mulheres no momento do parto. “Às vezes ele recitava aqueles poemas aos domingos, na hora do almoço, ou no terreiro à noite, na escuridão. Aquilo me deixava encantado”, recorda o neto.
 
Contudo, reitera: suas principais influências poéticas nascem do lirismo dos salmos bíblicos e do realismo fantástico das canções dos cantadores, se mantendo até hoje formalmente dissimuladas nessa simetria.

Repetição e labuta

Das lições semeadas nos primeiros contatos com a palavra, ficaram a repetição como forma de aprendizado e a resiliência. Um profundo olhar sobre o humanismo é outra forte característica da poesia de Ferreira Lima. Sem pensar na criatura humana, ele não escreve.

Nesse sentido, as desigualdades, o desassossego dos anônimos das ruas, os que têm fome e os mortos sem nome o comovem e inspiram. “Também a utopia e a distopia – escrevo modestamente com uma mão em Sartre e outra em Bauman”, diz, ao referenciar dois dos mais importantes filósofos ocidentais, “e o fascismo que, como uma velha e imortal visagem amortalhada, vem nos tampar o caminho vez em quando”. Além disso, cabem no nervo do poema o amor e o desamor, a impermanência humana.

“Acredito e sou caudatário da inspiração. E, como dizia Ferreira Gullar, ‘só escrevo poesia quando ela pede pra ser escrita’. Não me sento pra escrever: a poesia me chega de algum lugar, em forma de uma única palavra ou frase, de uma música, de um cheiro, de um sentimento que nos pega de surpresa. Anoto aquilo no celular e, passados uns dias, ou às vezes na mesma hora, começa o trabalho de transpiração: vou ver de que forma e o que tenho para contribuir para que aquilo se torne uma poesia e diga o que quero dizer”.

Legenda: Com três livros publicados e outros três de poesia inéditos, o cearense é fartamente reconhecido pelo trabalho iniciado nos rincões do Estado
Foto: Arquivo pessoal

Com três livros publicados e outros três de poesia inéditos, o cearense é fartamente reconhecido pelo trabalho iniciado nos rincões do Estado. Engenheiro aposentado da atual Enel, Ferreira Lima é vencedor do Prêmio de Poesia da Secretaria da Cultura de Fortaleza; do Prêmio Ceará de Literatura, da Secretaria da Cultura do Ceará; e do Prêmio de Poesia e Conto, do Sindicato dos Bancários do Estado.

Também ganhou o Prêmio de Poesia da Associação Atlética Banco do Brasil de Goiás (GO) e foi premiado na antologia do Concurso Carlos Gomes de Poesia, de Recife (PE), bem como na Antologia de Contos da Revista Brasília (DF). Para ele, a poesia veio e vem primeiro. Ela é a solução de um problema de expressão pessoal, uma catarse sem a qual não pode viver.

“O reconhecimento dos prêmios literários, além de produzir um frenesi tsunâmico num poeta anônimo, veio compensar a não publicação de livros já prontos e provar que o que eu estava fazendo era algo de qualidade universal, e não um desabafo de um poetinha do interior. Acredito que, se o que você faz tiver qualidade, abrirá caminhos, mais cedo ou mais tarde, não importa o seu lugar geográfico. A Arte transcende isso tudo”.
Ferreira Lima
Poeta

Cultivar a poesia

A mais recente obra do trovador demonstra de modo eficaz de que forma acontece a transfiguração do real plantio e colheita em poesia. Audacioso na forma de amostragem dos poemas, “Apontamentos sobre o Cultivo da Poesia” apresenta várias propostas de leituras horizontais e verticais, com múltiplas significâncias e poemetos anexos ao poema principal.

Publicada pela editora Radiadora, a obra foi lançada no último mês de outubro e traz o poeta passeando entre paisagens intimistas e coletivas. Das temáticas que emergem destas últimas, estão a denúncia das desigualdades degradantes; a guerra e a paz; o amor que chega de repente e o que se despede com vontade de voltar; e ainda o recorrente tema do anonimato do poeta e, por que não dizer, de sua própria poesia.

Ele também recorre a outros gigantes do segmento a fim de perseguir reflexões intranquilas. Nesse movimento, vai de Charles Bukowski (1920-1994) a Bob Dylan, de Mandela (1918-2013) e Jorge Luis Borges (1899-1986) a Caetano e Belchior (1946-2017), chegando até aos anônimos das ruas.

Legenda: No próximo ano, Ferreira Lima pretende publicar o último livro da “Trilogia do Anonimato”, uma antologia poética
Foto: Arquivo pessoal

“A beleza poética como forma de atração do leitor e o ato de popularizar o cultivo da poesia devem ser prioridade nesse processo”, observa. “Inclusive, há um movimento literário novo de qualidade que se levanta no Ceará, chegando a ser premiado nacionalmente. Grupos se formam para produzir coletivamente, até para baratear o preço das publicações, e outros produzem isoladamente, mas todos sem fugir da tradição de qualidade da literatura cearense”.

No próximo ano, Ferreira Lima pretende publicar o último livro da “Trilogia do Anonimato”, uma antologia poética. Até lá, encara com satisfação a própria estrada, ao mesmo tempo que reflete sobre a atual situação do Brasil. 

“Meu posicionamento é contrário a todo esse retrocesso que aconteceu junto com a praga pandêmica em nosso país. E também à impunidade dos que se apossaram dos nossos direitos e valores morais e financeiros, ainda transformando a nossa nação em chacota universal”.
Ferreira Lima
Poeta

Decerto essa fúria é também combustível para o cultivo poético, ao mesmo tempo que convite: deixemo-nos encantar pelo belo, ao mesmo tempo que guiados pela insubordinação.

 


Apontamentos para o cultivo da poesia
Ferreira Lima

Radiadora
2021, 152 páginas
R$40 (este e outros livros do poeta podem ser adquiridos no site da editor Radiadora)

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