Como a 'Quinta do Caranguejo' tornou-se uma tradição em Fortaleza?
Visitamos três espaços da capital cearense e as origens de uma manifestação que surge na praia e se espalha pelo Estado. A caranguejada criou uma rota afetiva e tradicional em Fortaleza
Em determinadas épocas do ano, o caranguejo-uçá realiza a "andada". É quando ele deixa a toca para literalmente namorar. Este ciclo integra o chamado "período do defeso", fundamental à manutenção dos mangues e preservação desta espécie.
Há mais de três décadas, o apreciado uçá é também estrela de outras andadas. Dessa vez, contudo, no território urbano. Da quentura das panelas, o inconfundível sabor do crustáceo promove uma tradição da capital cearense. Especialmente às quintas-feiras, esta iguaria domina paladares ao cair da noite. E tem nome certo no calendário da população. É a famosa "Quinta do Caranguejo".
Esta é a terceira reportagem da série Ceará, Rotas de Amar, que percorre diferentes lugares do Estado, destacando a importância do turismo que se baseia nas riquezas do oceano. O especial multimídia integra o projeto "Praia é Vida", promovido pelo Sistema Verdes Mares, com foco na valorização e sustentabilidade desse meio indispensável para a vida.
No início, teve quem tratasse como mais uma moda do comércio. No decorrer dos anos 1990, este evento vira febre entre locais e turistas. Forrós, shows de humor e lotação a fervilhar nas barracas da Praia do Futuro.
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Com o tempo, esta celebração se espraia do litoral. Sedimentou-se por bairros e Região Metropolitana de Fortaleza. O insumo ganhou outras receitas e ares de alta gastronomia. Da carne branca e delicada se cria de coxinha a prato principal. Para entender o fascínio destas noitadas resgatamos as origens e visitamos três espaços que realizam uma "Quinta do Caranguejo".
Quintas quentes
Na metade dos anos 1990, os dias da semana em Fortaleza estavam conectados a algum tipo de agito. Às segundas, o mais animado forró do planeta é do Pirata (e assim resiste). Terça-feira tinha a Barraca Subindo ao Céu, na Praia do Futuro. E tome mais forró na quarta-feira do Clube dos Vaqueiros. De sexta em diante era Três Amores e fechar a conta num domingo de Cajueiro Drinks. Quem viveu sabe.
A "Quinta do Caranguejo" amalgamou-se ao cotidiano da cidade. Antes disso, o consumo do produto era associado aos finais de semana nas praias. A caranguejada adentrou esta noite, tornou-se circunstância e compôs uma movimentação comercial que perdura até hoje. Em julho de 1988, o Diário do Nordeste registrou a procura por comer caranguejo à noite na Praia do Futuro.
"Recentemente, o caranguejo passou a atrair visitantes, a partir das quintas-feiras, levando o fortalezense a descobrir uma atração noturna que, por certo, repetirá o sucesso que aquela praia alcançou na década de 70, quando o atrativo era o "Balanço do Mar".
A reportagem evidencia o pioneirismo da barraca Chico do Caranguejo e explica que outros comércios surgiram na região. "As 200 mesas no 'Chico do Caranguejo' lotam antes das 22 horas, a partir de quinta-feira. A moda pegou e a clientela motivou a abertura de outras barracas, como o Hawaii e a Lualuar, esta última com restaurante aberto 24 horas".
Em 1995, a "Quinta do Caranguejo" era uma realidade. Além do Chico do Caranguejo, Subindo ao Céu e Itapariká também constavam na preferência do público. Nesse dia, a Praia do Futuro "quintava" unindo turistas e boêmios que iniciavam o fim de semana mais cedo.
As atrações incluíam shows humorísticos e bandas de axé ao forró. O humorista Ciro Santos é parte deste fenômeno. Este ano, o artista celebra uma marca única. Há 25 anos, ininterruptos, seu espetáculo está em cartaz no Chico do Caranguejo.
A "Quinta", resgata, consolidou-se no Chico e ganhou espaço na região. Um cenário de efervescência para os trabalhadores do segmento, descreve o entrevistado:
Isso foi uma contribuição ótima à cidade, para o calendário da cidade onde acontecia todo dia, uma programação. Como também para os artistas, de dar trabalho. Caranguejo também deu trabalho, deu oportunidade de trabalho para todos os humoristas, então todas as casas tinha um show de humor"
Onde foi o caranguejo?
Às portas do novo milênio, outra dinâmica é perceptível nas noites desta especial quinta-feira. Do litoral, o caranguejo avança enquanto rota gastronômica para outros pontos da capital cearense. A iguaria não era mais exclusividade das barracas de praia.
Música ao vivo e opções de karaokê completavam o cenário. Além da já tradicional "Quinta", o crustáceo assumia lugar cativo no cardápio dos estabelecimentos. "Em qualquer bairro da cidade, desde os mais nobres aos da periferia, é facilmente encontrada a caranguejada nos bares e em alguns restaurantes", descreve reportagem publicada pelo Diário do Nordeste em abril de 1999.
"O caranguejo consumido na quinta-feira e fins de semana são adquiridos no Piauí e Maranhão", explica o professor doutor Luis Ernesto Arruda Bezerra, do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da Universidade Federal do Ceará (UFC). O pesquisador explica que as pressões urbanísticas e a poluição afetaram o ecossistema do mangue. Com o berçário dos caranguejos afetado, foi preciso buscar os crustáceos em outros locais, assim como recuperar o manguezal para manter a tradição das 'Quintas" viva.
De Fátima à 2000
No correr das décadas, a Quinta do Caranguejo continua um fenômeno em Fortaleza. O insumo ganhou outras receitas e ares de alta gastronomia. Da carne branca e delicada se cria de coxinha a prato principal. Fomos conhecer como a tradição prossegue em pleno 2023.
A primeira parada é o Bairro de Fátima. Evocando o aconchego de uma casa de pescador, o Mariscos Gastrobar, dos sócios Victor Maia e Paulo Roberto, entrega diversas opções para o caranguejo no menu. É fim de tarde na quinta-feira e muitos clientes já se aprochegam em busca do melhor lugar.
De entrada é possível apreciar a patinha e casquinha. Outra guloseima certeira é o pastelzinho de caranguejo. Recheado, crocante e medida certa nas 12 unidades. Nas mesas, constam pedidos de vinhos a drinks refrescantes. A noite só começou.
Explorar novas receitas é parte da diversificação que atrai novos fãs do crustáceo. "Pode se dizer que o caranguejo é procurado. Nem todo mundo adere à forma conhecida, onde se come quebrando a patinha.Tem quem fale ser 'muito trabalho para pouca carne', situa o chef Victor Maia.
Da cozinha chega o "Arroz de Caranguejo". Cremoso, no ponto, a variação de preparo cai super bem no serviço de prato principal. Gosta do modo raiz de apreciar o caranguejo? Vem tranquilo. Tem promoção (válida somente às quintas, claro) e as porções variam de três até 30 unidades.
"O caranguejo e os frutos do mar em si possuem grande capacidade na criação de pratos requintados, dos mais famosos que se existem na gastronomia mundial", observa Victor Maia.
Percorrendo o tráfego intenso da Avenida 13 de Maio o destino é a simpática Cidade 2000. E quando se fala neste bairro e suas queridas ruas com nomes de flor, a gastronomia diversa se destaca. Chegamos à Alameda das Begônias, território do Afonso Pescados.
Referência em frutos-do-mar na região, o restaurante também abraça a Quinta do Caranguejo. Mesas tomadas, tem rock e MPB no violão do músico Pepeu Moura. O momento é de total felicidade para o chefe Afonso Celso e os clientes assíduos do lugar.
Com sua moqueca de arraia com especiarias, o Afonso Pescados venceu a 12ª edição do concurso Comida Di Buteco em Fortaleza. Afonso nos serve a patinha de caranguejo, ideal para um embate franco com uma cervejinha. "É um insumo diferenciado. Das barracas de praia se estenderam para Fortaleza toda. Nós que trabalhamos só com mariscos tínhamos que ter essa tradição também", defende o chef.
"Você precisa saber fazer. Desde quando o caranguejo chega até o produto final. Lavar bem, ter um bom tempero. Isso leva um tempo para se descobrir. É como digo na cozinha, é preciso 'conversar' com as panelas para se ter o ponto certo do caranguejo", arremata Afonso Celso.
Onde a 'Quinta' começou
Da Cidade 2000, o asfalto conduz ao território que fez a "Quinta do Caranguejo" uma regra cultural na agenda dos cearenses. Passam das 21h e grupos numerosos de visitantes se aproximam da barraca Chico do Caranguejo. A festa também é garantida por uma assinatura do lugar ao longo dos anos: atrações musicais e shows de humor.
O som do forró ecoa longe. Quem comanda a festa é a cantora Sergiane, reconhecida pelos anos de dedicação a este ritmo no Ceará. O repertório abraça o "forró pé de serra", tem momento de quadrilha junina e até ritmos pop ao som da sanfona.
A plateia reúne turistas vindos de lugares como São Paulo, Minas Gerais e Brasília. Basta Sergiane anunciar o nome das capitais durante a apresentação para sentir a euforia das mesas. "Tenho que representar meu Ceará muito bem, para que elas saiam dali mais que surpreendidas, que este algo diferente desperte nas pessoas", revela a artista.
Com o apoio do gerente Robinho, recebemos os famosos caranguejos da casa. Acompanhados de caipirinhas, temos também patinha e casquinha para alimentar o arrasta pé da noite. A programação ainda reserva os humoristas Manguaça e Ciro Santos.
A parceria de 25 anos com o estabelecimento orgulha Ciro Santos. "É muito bom saber que atuo numa casa na qual comecei a trabalhar no chão e hoje temos palco. Isso para mim é um grande tesouro, um grande troféu, afirma o humorista, produtor e apresentador.
Desde os seis anos
"Toda minha vida trabalhei com caranguejo", nos conta Francisco Querino Lourenço (66), o "Chico do Caranguejo". Natural de Aracati, a lida do empresário começou aos seis anos. Vendia as cordas acompanhado do pai nas ruas de Fortaleza.
Naquele tempo era tratado como 'comida de pobre'. Inclusive, se vendia dentro dos ônibus, praças e feiras. O rico não sabia o que era caranguejo. Se comia mesmo por necessidade. Com o tempo passou a ser comida de rico. Naquele tempo, nem sabiam o que era comer caranguejo. Vendia na periferia e Centro. Toda feira de bairro tinha caranguejo".
O pai de Chico trazia o caranguejo de Aracati. Depois, o produto começou a vir de outros municípios como Camocim e Chaval. Aos 12, já era conhecido pelo apelido que hoje brilha no letreiro do estabelecimento. "Mas, foi se acabando. O pessoal não respeitava, pegava tudo, fêmea, macho. Pegavam tudo e não tinha noção. Hoje é diferente. Há 18 anos só pesca o macho, fêmea não pega" situa.
Do comércio ambulante, Chico passou a ter outro foco e fornecer o produto a barraqueiros da Praia do Futuro. Para atender a demanda de pedidos, arrendou um ponto no local para servir de depósito. Aos poucos, foi se chegando a ideia de aproveitar o espaço. "Depois do caranguejo, comecei a vender uma cervejinha", lembra.
E Chico enumera, tinha algo em torno de oito cadeiras para atender. Hoje, a "Quinta do Caranguejo" é conhecida além das fronteiras do Estado. Perguntado sobre sua contribuição com este fenômeno, o comerciante é sucinto. "Tenho muita alegria. Uma honra muito grande, graças a deus".
Na próxima reportagem, na sexta (30), do especial Praia é Vida, você embarca com a gente para Amontada para conhecer a história de mulheres que abrem a cozinha de casa para servir as delícias do mar. Elas fazem turismo comunitário, protagonizando os sabores e saberes do litoral cearense.