Clube Santa Cruz: forró de gafieira, bingo e festa marcam os domingos no Centro de Fortaleza

Sinônimo de resistência e encontros, casa detém público fiel e acena para novos visitantes enquanto conserva aura raiz do salão de dança

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Celebrar a vida no Clube Santa Cruz está na ponta dos pés e no cheiro no cangote
Foto: Ismael Soares

Esquina da Padre Mororó com a São Paulo. A luz do poste é forte. Chega gente. Na entrada, um segurança de semblante calmo recolhe bilhetes. Tem churrasco e bebida ao redor, som alto de música brotando de dentro. O movimento é intenso, dá para notar. Mas também é pacato. Vibra diferente.

É mais um domingo nas imediações do Clube Santa Cruz, Centro de Fortaleza. O interior da casa espelha o externo. Passado o portão de entrada, o amplo espaço revela corpos e corpos dançantes. A banda de forró emenda sucessos, para delírio dos presentes. Celebrar a vida está na ponta dos pés e no cheiro no cangote. Bonito de ver.

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A sensação é de ingressar num portal, adentrar em outro tempo. Mesas de plástico ao redor do salão, venda de alimentos à base de fichinha e dezenas de ventiladores para aplacar o calor comprovam a teoria. Homem paga R$15 para entrar; mulher, R$10. “Não pretendemos mudar nada”, dizem os arrendatários do local. Mudar para quê? A tradição consagra o Santa Cruz.

O público responde com gosto ao costume de frequentá-lo. Todo domingo é dia. Não existe saudosismo: passado e presente coexistem, e talvez até futuro, nesse pedaço importante da cultura de Fortaleza. Mudou quase nada desde que Francisca Nunes começou a marcar presença no recinto. A idade da dona de casa é alinhada à da maioria que ali está. Tem 53.

Legenda: A dona de casa Francisca Nunes frequenta o Clube há nove anos
Foto: Ismael Soares

“Vai fazer nove anos que eu frequento o Clube. Moro no Álvaro Weyne. Descobri por meio de um casal amigo, muito festeiro. Me viciaram em vim pra cá”, conta entre um bailado e outro em frente à mesa que adotou como preferida. Adoeceu do joelho durante um tempo, mas nem isso diminuiu a vontade de estar ali. Voltou o quanto antes.

“Amo forró. Até eu morrer, vou dançar. E aqui é calmo, não tem violência. As pessoas bebem, mas não tem briga. Só ando em lugar que é assim”. Na mesa da matriarca, itens indispensáveis em qualquer outra mesa ao redor: cervejinha, tira-gosto, um pouco d’água. Em algumas, até leque. Tem calor que ventilador nenhum dá jeito. 

Legenda: Entrar no Santa Cruz é feito dobrar na rua de casa: todo mundo se conhece
Foto: Ismael Soares

Amizade é outro ponto importante. Estar no Santa Cruz é feito dobrar na rua de casa. Todo mundo se conhece. E a quem não foi apresentado ainda, o enlace é rápido. De repente, já estão unindo mesas, dividindo pinga, chamando para dançar. Dona Francisca reitera: “É bom demais, eu gosto”. E continua no arrasta-pé.

Como tudo começou

As origens do Clube são incertas. Conforme Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, tudo indica que a Associação Desportiva e Recreativa Santa Cruz Futebol Clube tenha surgido no início de 1982 – uma vez os estatutos referentes à fundação serem registrados no Cartório Melo Júnior em 29 de abril daquele ano.

Apesar de, pelo nome, ser uma agremiação desportiva de futebol, a sede, na esquina das ruas Padre Mororó e São Paulo, sempre promoveu "festas dançantes memoráveis". “Creio eu que foi o que ajudou a manter o clube vivo”, arrisca o jornalista e pesquisador. À boca miúda, contudo, outras versões se sobrepõem.

Legenda: Fachada do Clube Santa Cruz: entre as ruas Padre Mororó e São Paulo, a sede dominical do Forró de Gafieira
Foto: Ismael Soares

Há seis anos arrendatário do estabelecimento, o músico José Bezerra Bandeira, o famoso Zé Bandeira, 69, afirma que a associação nasceu na década de 1970. Durante um período – também incerto – foi desativada pelos sócios, funcionando novamente mediante aluguel por outros empreendedores. Nunca mais parou de lá para cá.

“O funcionamento tradicional é aos domingos, de 18h30 às 23h. Mas, aqui e acolá, a gente aluga para outras pessoas fazerem evento – aos sábados, por exemplo”, situa o forrozeiro. Outra peculiaridade são as atrações, capazes de animar qualquer um: as bandas Zé Bandeira, Zé Iris, Zé Ivan, Dinho, Xote Swingado, Bota pra Cima e Soares do Sax são algumas.

Por sua vez, é o Forró de Gafieira que caracteriza o lugar. De tão importante, o gênero musical foi parar na Câmara Municipal de Fortaleza quando, em 2020, sediou uma sessão solene em homenagem a ele. O momento foi promovido pelo vereador Márcio Martins (União Brasil). No texto do requerimento, há uma menção ao Clube Santa Cruz.

Legenda: Clube Santa Cruz se firmou como palco para forrozeiros e sanfoneiros descendentes de Luiz Gonzaga
Foto: Ismael Soares

Lá, consta que o Movimento da Gafieira nasceu na já citada década de 1970. À época, existia a boemia da alta sociedade que o “gueto” (classe popular) não podia frequentar. O jeito foi criar um movimento de forró próprio. Juntamente com samba e choro – chamado Forró de Cabaré – a iniciativa se expandiu, difundindo-se na região do Pirambu.

O Clube Santa Cruz surgiu depois disso, levando para o palco forrozeiros e sanfoneiros descendentes de Luiz Gonzaga (1912-1989), mas também primando por outros segmentos – a exemplo de Forró de Gafieira, Choro e o Samba cantado (brega). O Forró de Gafieira, por sinal, é variação rítmica e musical genuinamente cearense.

Os primeiros registros remontam aos clubes de forró instalados na periferia de Fortaleza há mais de 40 anos – tradição passada entre gerações de amantes. Na sequência, o gênero ganhou escolas de danças e casas de forró que ainda remanescem no centro da cidade, com destaque para o Clube Santa Cruz.

“A característica do gênero é o modo peculiar dos dançantes, que se alternam entre movimentos de cortejo da dama ao mais evoluído jogo de dança, tendo no tablado a execução de músicas afeitas ao samba, choro e forró. Numa fusão, formam o Forró de Gafieira”, completa o requerimento.

Festa com bingo

Faz sentido. Foi nessa dinâmica corporal que encontramos o casal de professores Samanta Fortes, 34, e Caio Teixeira Silveira, 28. Destacam-se na multidão pela idade destoante da maioria ali. Os motivos para ocupar o ambiente são os mesmos do restante, contudo: encontraram ali um lugar tranquilo e amplo para dançar forró.

“Tem alguns forrós na cidade que as pessoas vão pra namorar e tal. Mas aqui é basicamente pra dançar”, destaca Samanta. “Não moramos muito perto, mas vale a pena o deslocamento para estar aqui”. Na primeira vez que foram ao espaço, há alguns meses, não levaram ninguém, era visita de experimentação. Agora, já foram acompanhados.

Legenda: O casal de professores Samanta Fortes e Caio Teixeira Silveira vai pela segunda vez ao Clube, e pretende retornar
Foto: Ismael Soares

“O público daqui tem uma pegada mais de bolero, e a gente gosta muito. Ficamos até observando os casais mais antigos dançarem para que possamos aprender”, confessa. Mirem talvez na dupla José Pereira, 72, e Rita Maria, 66. O motorista e a dona de casa são amigos e há oito anos dançam no Santa Cruz.

Para seu José, a experiência é de estar em casa. “Por isso a gente frequenta sem medo. Moro no Tancredo Neves, mas todo domingo eu tô aqui. Em vez de estar em casa assistindo televisão, enferrujando, venho pra cá. Dançar é saúde”, festeja. Dona Rita não fica atrás. A maquiagem chega a borrar de tanto encostar o rosto no rosto do parceiro de baile.

Legenda: O motorista José Pereira e a dona de casa Rita Maria são amigos e há oito anos dançam no Santa Cruz
Foto: Ismael Soares

“Conheci esse lugar por causa dele. Em outros espaços é mais apertado, mas aqui é folgado. Moro no Autran Nunes e só saio daqui às 21h30. Tenho dois filhos e quatro netos, mas nenhum herdou essa vontade de dançar forró. Uma pena”, gargalha.

De repente, a banda silencia. Todo mundo se aquieta. É hora do bingo, outra prática célebre no Clube. O prêmio aguardado, de R$100, faz com que a atenção reine, bem como o clima de camaradagem. Risadas de um lado, vivas do outro, e tudo se consome. 

Agora a pista de dança é  liberada. O Santa Cruz renasce em movimento. No próximo domingo – e no outro e no outro – será possível ouvir sanfona e triângulo ao longe, a coisa linda do forró. E sentir suor na pele e a vida se expandindo. Pode entrar. É sempre festa.

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