Ceará ganha ‘Dia da Arte Transformista’; conheça história do movimento cultural no Estado

Das boates e desfiles dos anos 80 aos concursos de beleza nos bairros da Capital, entenda quem fez e qual a importância do transformismo

Escrito por Ana Beatriz Caldas , beatriz.caldas@svm.com.br
Registro do Miss Ceará Gay de 1986, na boate Hippopotamus
Legenda: Registro do Miss Ceará Gay de 1986, na boate Hippopotamus
Foto: Ademar S/Arquivo Diário do Nordeste

A partir de 2025, o Ceará ganha um novo marco para celebrar a arte e a diversidade: o Dia Estadual da Arte Transformista, que será celebrado anualmente no dia 29 de junho – um dia após o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP+. Proposto pela deputada Lia Gomes (PDT), o projeto de lei (PL) que institucionaliza a data foi aprovado na última quinta-feira (21) na Assembleia Legislativa e lança luz sobre um segmento artístico que, além de abrilhantar a cena cultural da cidade, gera renda e oportunidades para diversos profissionais, especialmente de grupos minorizados.

A data escolhida para celebrar o transformismo cearense foi escolhida em homenagem à Boate Casa Blanca, inaugurada em 29 de junho de 1984, que por anos foi um dos principais palcos da Capital para artistas que desafiavam as normas de gênero em shows, performances e figurinos extravagantes.

A cena da arte transformista cearense, porém, começou antes do nascimento da Casa Blanca – e persiste até os dias de hoje. Quem conta parte dessa história é o diretor de televisão e produtor cultural Fábio Nobre, que viveu uma das épocas de ouro da cena de montação da Capital. 

Segundo Fábio, a origem do movimento em Fortaleza se deu no fim dos anos 70, a partir de uma série de shows do grupo TransAção, de Recife (PE). Inspirados pelos pernambucanos, artistas cearenses começaram a montar seus próprios coletivos, como o Metamorfose, cujos membros interpretavam músicas de grandes nomes da MPB, como Gal Costa, Maria Bethânia e Ney Matogrosso.

Matéria do Diário do Nordeste de 29/10/82 destaca uma apresentação do grupo Metamorfose em Fortaleza
Legenda: Matéria do Diário do Nordeste de 29/10/82 destaca uma apresentação do grupo Metamorfose em Fortaleza
Foto: Reprodução/Arquivo Diário do Nordeste

Nessa época, esses artistas da dublagem eram conhecidos como transformistas – mas dentro desse segmento havia também as drag queens, que, segundo Fábio, investiam em “um visual mais colorido e diferente, uma maquiagem mais pesada”. 

“Hoje, acredito que o nome transformista ficou mais 'ultrapassado' com o sucesso das drags como Pabllo Vittar e Gloria Groove, que fizeram com que todas agora fossem conhecidas como drag queens, deixando o termo mais popular”, explica o produtor. “Mas aqui em Fortaleza ainda usamos bastante o nome transformista para shows, eventos, espetáculos”, explica.

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Além da Casa Blanca, outro clube famoso da época foi a boate Navy, que também recebia muitos shows de artistas transformistas. Mas o palco mais conhecido da geração atual de entusiastas dessa arte – incluindo Fábio – surgiria apenas no ano 2000: a boate Divine, que foi um dos pontos mais efervescentes da noite de Fortaleza por quase 15 anos.

Boate funcionava na rua General Sampaio, no Centro de Fortaleza
Legenda: Boate funcionava na rua General Sampaio, no Centro de Fortaleza
Foto: Gustavo Pelizzon/Arquivo Diário do Nordeste

Fábio Nobre, Adma Shiva, Camilly Leycker, Neto Guerra e Leandra Bruna Houston em festa na Divine, em 2002
Legenda: Fábio Nobre, Adma Shiva, Camilly Leycker, Neto Guerra e Leandra Bruna Houston em festa na Divine, em 2002
Foto: Arquivo pessoal

“A Divine é conhecida como a boate que foi o celeiro de grandes nomes e artistas”, conta Fábio. “A casa tinha shows na sexta, sábado e domingo, sem interrupções, e pontualmente, na hora marcada”, completa. 

Conforme Nobre, durante o período em funcionamento, cerca de 400 artistas passaram por lá – incluindo grandes nomes da cena cearense, como Gisele Almodóvar (personagem do ator Silvero Pereira), Denis Lacerda, Aurineide Camurupim e Skolastica. Outra artista que se destacou foi a apresentadora Lena Oxa, considerada uma das estrelas da era Divine.

A apresentadora Lena Oxa foi uma das grandes estrelas da Divine nos anos 2000
Legenda: A apresentadora Lena Oxa foi uma das grandes estrelas da Divine nos anos 2000
Foto: Fernanda Oliveira/Arquivo Diário do Nordeste

Na época, a boate era considerada o único palco dedicado aos artistas transformistas, com bons cachês e um público que entendia e celebrava a arte. “Todas as artistas que estavam ou participaram dos shows almejavam ser uma diva da Divine. Era como uma medalha de grande artista”, recorda Fábio.

Concursos de beleza geram empregos e revelam talentos

Desfile de Letícia Andrade durante o Top Gay Ceará 2024
Legenda: Desfile de Letícia Andrade durante o Top Gay Ceará 2024
Foto: Divulgação

Com o encerramento da Divine em janeiro de 2015, os palcos voltados para performers se tornaram raros e as oportunidades de empregabilidade diminuíram. No fim de 2022, uma nova casa surgiu no Centro da Cidade, com o intuito de trazer de volta o espírito das boates LGBTQIAP+ de antigamente: a Valentina Club, que hoje recebe shows, festas e outros eventos que contemplam não só transformistas, mas artistas de diversos segmentos.

Porém, nesse hiato, uma outra categoria do segmento voltou a se fortalecer no Ceará: as competições de beleza voltadas para transformistas, como os concursos de misses de bairros da Capital e o concurso estadual Top Gay Ceará.

No Brasil, os primeiros grandes concursos de beleza transformista datam da década de 70. O Miss Brasil Gay, principal desses certames até hoje, teve sua primeira edição em 1977, e começou como uma espécie de “paródia” dos concursos de Miss Brasil tradicionais.

Atriz, diretora, roteirista e apresentadora de concursos de beleza, Layla Sah tem acompanhado esse movimento há mais de uma década. Ela explica que a atual dinâmica de concursos no Estado acontece da seguinte forma: durante todo o ano, ocorrem concursos em alguns bairros da cidade, que elegem as misses de Fortaleza. 

As ganhadoras têm direito a participar do concurso estadual, o Top Gay, que leva a vencedora para a disputa da faixa mais desejada do País: a de Miss Brasil Gay, certame que acontece anualmente em Juiz de Fora (MG).

Concurso inclui performances, looks de gala e mais; na foto, Letícia Andrade e seu Traje Típico no Top Gay 2024
Legenda: Concurso inclui performances, looks de gala e mais; na foto, Letícia Andrade e seu Traje Típico no Top Gay 2024
Foto: Divulgação

“Hoje, o maior e mais importante concurso na cidade é o Top Gay, por fomentar esses outros concursos de bairro”, destaca a artista. A fala de Layla traz reverência e orgulho. Há dez anos, ela é a responsável por apresentar o concurso estadual – se ausentou apenas na edição deste ano, que ocorreu no fim de julho, porque estava filmando um novo projeto fora da cidade.

A atriz destaca que os concursos vão além da concorrência entre as candidatas: “Eles também fomentam empregos, trabalhos de estilistas. Na sua grande maioria, pessoas da cidade, do estado: maquiadores, cabeleireiros, a equipe técnica que faz parte do concurso”.

Do Ceará para o mundo

Top Gay Ceará 2024 teve 11 candidatas
Legenda: Top Gay Ceará 2024 teve 11 candidatas
Foto: Reprodução/Barbarizou

Organizado pelos companheiros e sócios Vladimir Libério e Irivan Simplício, o Top Gay Ceará foi criado em 2008, com o intuito de dar visibilidade ao trabalho de artistas transformistas cearenses e eleger “a miss das misses”. No início, a competição contemplava apenas bairros da Capital; depois, o certame passou a receber representantes da Região Metropolitana e do interior do Estado. 

Por quase uma década, as candidatas se apresentaram em um clube no bairro Vila União. Em 2016, com a profissionalização do trabalho, veio também a necessidade de um palco maior, e o concurso passou a acontecer no Theatro José de Alencar. Idealizador do Top Gay, Vladimir se orgulha ao dizer que o número de concorrentes é sempre significativo – em 2017, o concurso chegou a ter 27 candidatas, ranking “digno” de um concurso nacional.

Mas, para ele, a maior contribuição do concurso é o que acontece fora da passarela. Cada edição gera, em média, de 80 a 100 empregos diretos e indiretos – e muitos novos talentos no mercado de moda e beleza.

“Não é só um concurso de beleza transformista, ele tem todo um contexto social. Muitos meninos que estiveram na plateia do Top Gay ao longo dos anos hoje são estilistas renomados, aderecistas, cabeleireiros, maquiadores”, destaca Vladimir. “Todas as nossas Top Gays fazem dublagem, fazem shows. O Top Gay abre as portas de boates, de palcos, e elas conseguem ser, depois do reinado, artistas renomados e reconhecidos em todo o Estado”.

O analista de qualidade e estilista Nandin Andrade, 26, foi quem subiu ao palco do Theatro José de Alencar para ser coroado na última edição do Top Gay Ceará, no fim do mês passado. Artista que dá vida à miss Letícia Andrade, Nandin teve sua trajetória reconhecida após uma década de muito trabalho no mundo transformista. 

De início, ele se apresentava apenas nas quadrilhas juninas, por achar que concursos de beleza eram muito distantes de sua realidade. Mas o próprio movimento junino, porém, foi responsável por apresentá-lo ao Miss Gay Beberibe, onde competiu por quatro anos. 

Em 2023, decidiu participar do Miss Gay José Walter, considerado uma das maiores seletivas para o Top Gay, e foi coroado, passando a representar o bairro que o acolheu a nível estadual. Neste ano, conquistou a faixa mais cobiçada do Ceará – e irá representar o Estado no próximo Miss Gay Brasil, em agosto de 2025. 

Letícia Andrade, durante coroação do Top Gay 2024
Legenda: Letícia Andrade, durante coroação do Top Gay 2024
Foto: Divulgação

“Foi uma das noites mais incríveis da minha vida, foi tudo mágico e muito emocionante, não consegui conter as lágrimas. Naquele momento senti que todo esforço e dedicação valeram a pena”, conta Letícia. “Como Top Gay, tenho o dever e a responsabilidade não só representar o Ceará, mas sim ser o meu estado, e fazer com que outras meninas que sonham em ser miss venham participar das seletivas”, destaca.

Concursos de bairros ainda encontram desafios

Parte importante da base do movimento transformista cearense contemporâneo, os concursos de miss que acontecem nos bairros são responsáveis por projetar alguns dos maiores talentos do Estado, mas não sem dificuldades.

Coordenador do Miss Gay Metropolitana, que reúne artistas de cidades próximas a Fortaleza desde 2015, Tchelo Belchior conta que um dos principais desafios é encontrar apoio e patrocínio para as competições, além de um número constante de competidores.

“Devido à falta de candidatas, é como se não nos dessem crédito, porque de uns tempos pra cá tem diminuído muito o número de gays que gostam da arte transformista e apostam nos seus sonhos, por causa de comentários maldosos”, lamenta.

O produtor conta que vê o concurso justamente como “empoderamento, coragem e reconhecimento de ser quem se é”, tanto para quem participa competindo quanto para quem mantém o evento funcionando “de forma clara e transparente, com eleição no voto direto”. 

Outro importante concurso local, desta vez na Capital, o Miss Gay Bom Jardim começou há 17 anos e se dedica, desde o início, a impulsionar os talentos de mulheres trans da região. Segundo o coordenador do evento, Moacir Mansor, o concurso tem como intuito primordial retirar estigmas sobre essa população.

O projeto começou em parceria com a quadrilha Junina Coração Sertanejo e hoje também atua como seletiva para o Top Gay Ceará, com o intuito de possibilitar destaque estadual e nacional às concorrentes.

“Cada ano tem um tema e um aprendizado para cada uma”, destaca Moacir. “Cada uma busca sua produção e nós, idealizadores desses sonhos, buscamos parcerias dos comerciantes, amigos e simpatizantes LGBTQIAP+ para que tudo seja impecável: apresentação, trajes, posturas de miss e a disputa do [campeonato] cearense”, conclui.

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