Aos domingos, você deveria visitar o Complexo Estação das Artes e te dizemos o porquê

Inaugurado em março, mas ainda em obras, prédio abre as portas para o público uma vez por semana com programação de lazer

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Um dos espaços queridinhos do público, os antigos trilhos são sensação no Complexo Cultural Estação das Artes Belchior
Foto: Fabiane de Paula

Preciso dizer a você. O dia em que conheci o Complexo Cultural Estação das Artes Belchior foi o dia em que uma grande amiga partiu. Era nove da manhã. No caminho, “Everything I Own”, do Bread. No Centro, a fina solidão dos domingos abria espaço para o encontro. Fui chegando com outras pessoas. Pais de mãos dadas com os filhos. Ciclistas em sossegado movimento. Idosos e passinhos miúdos no chão. Tanta coisa revestida de vida.

Era como a minha amiga queria que o mundo estivesse: pleno de existência. A Estação das Artes faz isso com a gente. É passar pela entrada e sentir um tempo outro. De repente, revivemos o burburinho da Estação Ferroviária João Felipe, atravessamos os trilhos, descobrimos paisagens. Tudo diferente, mas igual. A programação do complexo cultural muda a cada domingo, sempre acontecendo das 9h às 12h. Convite.

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Neste dia em que te conto, a primeira atividade foi a visita guiada pelo acervo arqueológico encontrado durante as obras de restauro do equipamento. Dezenas de pessoas concentradas no belíssimo painel assinado pelo desenhista, pintor e escultor Descartes Gadelha. O trabalho, de 1970, reúne detalhes da Estação João Felipe. Gadelha é ex-funcionário da Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA) e, não à toa, teve o quadro restaurado para o ambiente.

Legenda: Visita guiada pelo acervo arqueológico encontrado durante as obras de restauro do equipamento
Foto: Fabiane de Paula

Vanessa Rodrigues – coordenadora do Programa de Salvamento Arqueológico do sítio localizado na Estação, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – conduziu o momento pela terra. Fascinante perceber a Arqueologia mais próxima. Havia curiosidade, sobretudo depois da descoberta de um canhão no ambiente. 

“A importância desses momentos é mostrar como realmente a gente trabalha. Temos um ofício árduo, que precisa ser valorizado. Ainda sinto que as pessoas, por desconhecimento, não valorizam tanto o patrimônio”, defende. “É deslumbrante dizer, ‘fui num sítio arqueológico’. Mas o que está por trás disso? Não é como na Europa, onde encontramos castelos e pirâmides. A Arqueologia do Nordeste brasileiro é diferente”.

Cores, crianças, quitutes

Terminado o instante, bancos originais da Estação João Felipe são a melhor opção para quem busca descanso ou conversa. Restaurados, acrescentam mais uma camada de transporte ao passado. “Onde você está sentado, sua avó talvez sentou quando era menina”, diz uma mãe a um filho. O garotinho ergue a vista. Espanto.

Mas logo corre para as outras atividades. Tanto na Gare – como é chamado o pavilhão principal da Estação das Artes – como no entorno, a dinâmica é intensa. De um lado, a atriz Paula Yemanjá conta histórias com teatro, em narrativas escolhidas mediante ajuda dos pequenos. Do outro, as mesmas crianças se lambuzam de tinta ao colorir a extensa faixa de papel no chão. Oficina de criação de cataventos completam a atmosfera lúdica. Ventura.

Legenda: Movimentação na Gare – como é chamado o pavilhão principal da Estação das Artes
Foto: Fabiane de Paula
Legenda: Oficina de cataventos conquistou o público infantil
Foto: Fabiane de Paula
Legenda: Exposição "Nos Trilhos do Tempo", com fotografias de Chico Gomes e Regivaldo Freitas
Foto: Fabiane de Paula
Legenda: Público atravessa as aberturas luminosas no piso; é onde estão trilhos antigos
Foto: Fabiane de Paula
Legenda: Bancos originais da Estação João Felipe são a melhor opção para quem busca descanso ou conversa
Foto: Fabiane de Paula
Legenda: Sob o comando de DJ Maarji, músicas clássicas e contemporâneas, nacionais e internacionais, se aproximam
Foto: Fabiane de Paula

Barraquinhas com quitutes são festival de cheiros. Tapioca, cuscuz, acarajé. Na sequência, bebida ou sorvete? As pessoas decidem, se unem, confraternizam. Distintas gerações em contato, e a Estação compreende isso. Não faltam contemplações por parte dos mais velhos. Observam a antiga placa de inauguração do lugar e suspiram. Aos mais jovens, oportunidade. Atravessam as aberturas luminosas no piso. É onde estão trilhos antigos. Sentem o tempo.

Ali perto, Gilson de Freitas, 29, multiplica empadas. O salgadeiro é um dos moradores do bairro Moura Brasil. Com ele, vários outros do local também comercializam produtos no Complexo. São fruto de intensa dedicação por meio da Escola de Gastronomia e Hotelaria do Ceará - Senac. “Eu pegava o antigo trem e agora, olha só, estou aqui nesse espaço. Comecei as vendas com um depósito e um sabor de empada. Daí, precisei incluir mais sabores e o negócio foi crescendo”, festeja ao lado do pai, Jurandir de Freitas.

Legenda: Gilson de Freitas é morador do bairro Moura Brasil e, junto ao pai, vende empadas na Estação das Artes
Foto: Fabiane de Paula

Diretor do Mercado Gastronômico, João Lima qualifica a iniciativa. A cultura alimentar na Estação das Artes não somente é fortalecida como envolve a integração da cadeia produtiva inteira. No total, seis restaurantes compõem o espaço. “Consideramos o Mercado a casa da gastronomia cearense. A ideia é que, em breve, junto dos restaurantes, haja uma loja, espécie de ‘CeArt da Gastronomia’. É o Ceará de comer que está aqui dentro. A política do menos brownie, mais bolo mole; menos cookie, mais bulim”.

Próximos trilhas

Avançamos nos trilhos. As próximas estações se achegam, e há música. Sob o comando de DJ Maarji, clássicos e contemporâneos, nacionais e internacionais, se aproximam. “Música é sobre sentidos. Para mim, o sentido que a Estação das Artes passa – pelo espaço aberto, pela História – é a coisa da energia, do sol, de quem somos. A música que eu toco tenta viajar por diferentes ritmos e períodos, sendo um pouco como a Estação: vai e volta”, dança.

Fluxo irrefreável, captado também pelas lentes de Chico Gomes e Regivaldo Freitas. Imagens dos dois fotógrafos compõem a exposição permanente “Nos Trilhos do Tempo”, na qual o cotidiano da antiga ferrovia ganha textura emocionada. São homens, mulheres, crianças, trabalhadores e trabalhadoras ocupando o centro, morando na permanência. Registros de brincadeiras, leituras, cansaços e sonhos. Existências possíveis.

Do interior dos vagões para a nova fisicalidade que a Estação das Artes encerra, o futuro reserva novidades. Secretário da Cultura do Ceará, Fabiano Piúba adianta o interesse por expandir a programação exclusiva dos domingos também para os sábados. Antecipa também que os demais equipamentos do complexo cultural – Mercado Gastronômico, Centro de Design, Museu Ferroviário e Pinacoteca do Ceará, além da novas sedes da Secretaria da Cultura do Ceará e do Iphan-CE – deverão ser entregues no segundo semestre deste ano.

Até lá, os ambientes onde estarão cada espaço continuam visíveis ao público. Durante a semana – e por isso a visitação acontece, por enquanto, somente aos domingos – a instalação de sistemas de refrigeração prepara o terreno para o novo. “Não faz sentido estarmos abrindo tudo agora porque envolve questões de segurança do trabalho”, afirma o secretário. “Aqui tá só um pedacinho do que vai ser”. Ansiedade.

Legenda: Demais equipamentos do complexo cultural – entre eles, o Centro de Design, Museu Ferroviário e Pinacoteca do Ceará – deverão ser entregues no segundo semestre deste ano.
Foto: Fabiane de Paula

Sentimento de João Batista Salmito, 52. Feito eu, o engenheiro agrônomo também estreava na Estação das Artes. Fotografava a família nos trilhos, junto aos cactos, quando confessou: “Esperava encontrar mais coisas aqui, porque é um equipamento que foi anunciado há muito tempo. Pensei que haveria uma programação mais ampla. É interessante o que é ofertado, mas, num piscar de olhos, se vê tudo. Dada a extensão de todo o complexo, poderia haver mais – incluindo informações sobre a própria história do local”.

Natural de Baturité, o estudante Anderson Oliveira, 18, segue o trajeto do tio. Além de reiterar a fala do parente, comenta sobre a arborização do espaço, indicando sugestões. “A visita foi boa, mas é preciso que se invista em mais árvores, até pra soprar vento. Chega um momento, principalmente devido ao uso máscara, que fica bem difícil permanecer no lugar. De resto, a experiência foi muito boa, divertida e interessante”.

Esposa de João Batista, a artista e professora Ana Patrícia Moura, 33, completa o trio de vivências ao lado do pequeno João Pedro, 2. “É muito emocionante estar aqui, especialmente após a pandemia. Claro que sempre queremos muito mais, e isso é bom. Mas já fiquei muito feliz pela programação. A nossa esperança é que haja cada vez mais atrações, com especial atenção também à inclusão de famílias e crianças”, diz, mencionando que o filho é autista.

Legenda: Da esquerda para a direita, João Batista Salmito, o pequeno João Pedro, Ana Patrícia Moura e Anderson Oliveira: primeira vez na Estação
Foto: Fabiane de Paula

Terminado o diálogo com as pessoas e os ambientes, dou uma última volta no Complexo. Quero sentir o invisível. Junto a amigas, festejo o aniversário de nossa fotógrafa, Fabiane de Paula. Faço um lanche – pedaço de bolo, depois a empada feita por Gilson de Freitas. Sento nos bancos e atravesso a entrada. A arquitetura, tão bonita, sorri. É tudo branco e reluzente. Na praça, os skatistas fazem as últimas manobras. Ciclistas se direcionam ao bicicletário. Na próxima semana, tem mais. A fina solidão dos domingos começa a pairar de novo.

Mas não é tristeza: melancolia que fica depois de uma manhã bem vivida. E estar no Complexo Estação das Artes é sempre manhã. Dia em que uma grande amiga foi embora. Dia em que também ganhei um lugar. “Everythin I Own”.

 

Serviço
Domingo no Complexo Cultural Estação das Artes Belchior
Rua Dr. João Moreira, 540, Centro. Horário: 9h às 12h. Gratuito e aberto ao público. Obrigatória a apresentação do comprovante de vacina contra a Covid-19 conforme decreto estadual vigente. Programação disponibilizada semanalmente nas redes sociais do Instituto Mirante - @institutomiranteceara


PS: A grande amiga que cito neste texto é Maria Evenice Barbosa Neta – a eterna Netinha – falecida no dia 29 de maio de 2022. A ela, o agradecimento por manhãs e dias inteiros felizes.

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