“A Última Floresta” deveria ser assistido pelos membros do STF antes do julgamento do marco temporal
Filme alerta para os perigos de não ouvirmos os povos indígenas, especialmente agora
Chorei umas três vezes assistindo o filme “A Última Floresta”, de Luiz Bolognesi, com roteiro assinado ao lado do xamã e líder político Yanomami Davi Kopenawa. É difícil ver e ouvir sobre pessoas que já habitavam e cuidavam deste país 500 anos antes dele ser apresentado ao resto do mundo sem se sensibilizar com o desrespeito a qual estão submetidas até este exato momento.
Basta pensar que, enquanto escrevo sobre isso, pelo menos mil indígenas acampam em Brasília há mais de uma semana a fim de pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) por um direito originário.
Na semana passada, esse número era ainda maior: cerca de 6.000 membros de 176 povos diferentes, incluindo os Yanomami, deixaram temporariamente “a última floresta” que nos resta e da qual são os verdadeiros protetores com o objetivo de barrar a tese do “Marco Temporal”.
Com julgamento previsto para esta quarta-feira (1º), após sucessivos adiamentos, este critério restringe a demarcação de terras apenas aos territórios que já eram ocupados pelos indígenas antes da data de promulgação da Constituição de 1988. Mas saber que a história de expulsão desses povos de seus locais de origem começa em 1.500 e se estende até os dias de hoje já deveria ser o suficiente para discordar.
Não sendo, a obra audiovisual do mesmo diretor de “Ex-Pajé” (2018) apresenta outros argumentos de forma bastante didática. Quem sabe entendendo a fundo que essa decisão afeta não só os povos indígenas, mas todos que precisam de matas e rios preservados para sobreviver, fique mais fácil de julgar.
Garimpo ilegal
Em maio de 2022, completam-se 30 anos que as Terras Indígenas Yanomami (TIY), localizadas ao norte do Brasil e ao sul da Venezuela, foram homologadas. Mas os problemas com o garimpo persistem, pondo em risco a água, os peixes, o solo, o ar e a saúde da comunidade com o mercúrio liberado durante a atividade ilegal na região.
Para se ter uma ideia, um volume estimado em 100 toneladas do metal neurotóxico foi utilizado em 2019 e 2020 para extração de ouro na Amazônia, e os perigos dessa atividade são devidamente apresentados em “A Última Floresta”.
Mas não é com números que os Yanomami chamam nossa atenção nessa obra audiovisual. É no acompanhar do dia a dia deste povo, numa conexão mais íntima com aquilo que realmente importa - a vida -, que entendemos o que às vezes pode parecer distante demais da nossa realidade, ainda que não seja.
Aproximações
É certo que o banho de rio, a caça do alimento e a noite escura não pertencem ao cotidiano dos não-indígenas, mas o convívio em família, as relações conflituosas com o “mercado” e as questões de gênero evocadas pelo filme, por exemplo, bem dizem do muito que nos aproxima.
Ver as mulheres indígenas assumindo o protagonismo que lhes pertence, a despeito de um passado em que isso não era tão evidente assim, é inspirador. E isso se percebe na fala de uma das participantes do filme.
Os antepassados não ensinam à toa. Criar uma associação de mulheres seria bom. Poderíamos trocar mais cestos por alimentos. Os cestos ensinados por Mamurona. Assim, poderemos depender menos dos homens. Nós, mulheres, podemos tecer mais, se estivermos juntas”, expressa.
Em outro diálogo marcante da obra, o líder Davi Kopenawa, 65, que já foi ameaçado de morte pelos garimpeiros por defender o território indígena nas últimas décadas, alerta um dos mais jovens a não se aliar com aqueles que enxergam na terra apenas uma fonte de dinheiro.
As mercadorias deles podem enfeitiçar a gente. Eles parecem bons. Querem ajudar. Mas quando você fica sozinho, ninguém se importa com você, e você passa fome. Tem fome e não tem o que caçar. Não te dão um lugar para dormir. Somente na nossa floresta você pode dormir em paz”.
E o xamã avança na discussão, deixando explícita a ferida que separa inclusive garimpeiros de empresários e, por que não, das autoridades políticas brasileiras.
O filme tece críticas diretas à falta de fiscalização do Governo Bolsonaro, evidenciando que, em 2019, mais de 20 mil garimpeiros voltaram a invadir o território Yanomami, levando também a Covid-19 para as aldeias.
Ao mesmo tempo, cumpre-se a promessa de campanha do atual presidente, que ainda em 2017 afirmou que"não terá um centímetro quadrado demarcado", discurso já reproduzido outras vezes, após tomar posse.
Quando diz sim ao “Marco Temporal”, portanto, é como se o governo sinalizasse aos povos indígenas de todo Brasil - cada um em uma situação diferente no que diz respeito ao processo de demarcação -, que essa invasão será legalizada e, a curto, médio ou longo prazo, todos nós perderemos com isso.
Quem puder, assista “A Última Floresta” e faça coro aos indígenas antes que seja tarde demais, afinal “quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar”. (Davi Kopenawa)
Onde assistir:
Itaú Cultural Play
Pré-estreia nacional e exclusiva
2 de setembro de 2021, das 19h às 23h
No site e nos Apps IOS e Android
Classificação indicativa: 10 anos
Conversa sobre A Última Floresta, com Luiz Bolognesi e Dário Kopenawa
3 de setembro de 2021, às 18h
Duração: 60 minutos (aproximadamente)
No YouTube do Itaú Cultural
Classificação indicativa: Livre
*Estreia nos cinemas brasileiros em 09/09/2021