Legislativo Judiciário Executivo

O que muda com a criação da Política Nacional da Primeira Infância para o cuidado de bebês e crianças

O PontoPoder entrevista três especialistas com forte atuação no tema para saber quais as repercussões da nova legislação sancionada por Lula

Escrito por
Luana Barros luana.barros@svm.com.br
(Atualizado às 10:55)
Menina faz pose em frente a uma parede com desenhos infantis
Legenda: A Política Nacional para Primeira Infância foi instituída por decreto presidencial na última quarta (6), início do Mês da Primeira Infância
Foto: Fabiane de Paula

A garantia da absoluta prioridade das crianças, com uma perspectiva integral e integrada da Infância, usada para fortalecer, ampliar e qualificar o acesso a bens e serviços públicos na Primeira Infância: esses são apenas alguns dos objetivos da Política Nacional Integrada da Primeira Infância (PNIPI), criada por decreto presidencial no dia 6 de agosto, marcando o Mês da Primeira Infância.

Assinada pelo presidente Lula, na última quarta-feira (6), a PNIPI será coordenada pelo Ministério da Educação, mas também deve envolver outras pastas da Esplanada dos Ministérios, como Planejamento e Orçamento, Desenvolvimento Social, Igualdade Racial e Saúde. Além disso, a perspectiva é de que haja uma coordenação "intersetorial e integrada de políticas setoriais destinadas à criança na primeira infância" em articulação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. 

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No texto do decreto presidencial, são estabelecidas uma série de ações práticas que devem ser adotadas para garantir a execução da PNIPI, como a elaboração de plano de ação estratégico e a criação de indicadores para o monitoramento das ações adotadas em cada eixo estruturante da Política Nacional. 

Mas, na prática, o que muda com a criação da Política Nacional? O PontoPoder conversou com três especialistas com atuação na temática da Primeira Infância para entender quais os impactos da criação de uma Política Nacional voltada às crianças nos primeiros anos de vida. 

Foram entrevistadas:

  • Jade Romero, vice-governadora do Ceará e secretária da Proteção Social, pasta responsável pela temática da Primeira Infância no Estado.   
  • Claudia Vidigal, atual representante da Fundação Van Leer no Brasil — instituição holandesa que atua globalmente focada no apoio a crianças na Primeira Infância;
  • Mariana Luz, CEO da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal — instituição que atua pela promoção do desenvolvimento pleno de todas as crianças brasileiras desde os primeiros anos de vida. 

Confira a análise das entrevistadas do PontoPoder sobre a Política Nacional Integrada da Primeira Infância: 

Diário do Nordeste – O que muda nas políticas públicas para a Primeira Infância, inclusive no Ceará, com a instituição da Política Nacional Integrada da Primeira Infância?

Jade Romero, vice-governadora e secretária de Proteção Social do Ceará
Legenda: A vice-governadora Jade Romero é secretária de Proteção Social, pasta responsável pela temática da Primeira Infância no Ceará
Foto: Thiago Gadelha

Jade Romero – A Política Nacional surge como um guia para os estados, trazendo diretrizes que irão orientar a criação ou adequação de políticas públicas estaduais e municipais, com um olhar de unidade no País. Acredito que esse olhar unificado, respeitando, obviamente as especificidades e diversidade de cada região, de cada estado, nos ajuda a pleitear novos projetos, obras, recursos e outras possibilidades ao Governo Federal.

Aqui, no Ceará, abrimos as celebrações do Agosto Verde, mês que marca a primeira infância, com a assinatura pelo governador Elmano de Freitas, do Plano Estadual da Primeira Infância. O plano traz 12 metas para a infância cearense que passam pela redução da mortalidade infantil e materna, da extrema pobreza infantil, da insegurança alimentar, entre outras.

Felizmente — e graças a um trabalho coletivo no Governo do Estado, com a participação de 15 secretarias — temos uma política estadual em total consonância com a Política Nacional da Primeira Infância. 

Outro ponto importante é o olhar integral e integrado à infância que prevê a PNPI. O que a Política Nacional quer é que olhemos a criança como um todo, entendendo que as políticas públicas precisam chegar de forma integrada. Temos políticas de saúde, educação, assistência social, igualdade racial, direitos humanos, entre outras, olhando juntas e dialogando sobre ações para a primeira infância. E isso já acontece no Ceará.

Por fim, é importante ressaltar que a Política Nacional está sob coordenação do Ministério da Educação. Temos à frente do MEC, o ministro Camilo Santana, que iniciou, em sua gestão como governador, o Programa Mais Infância Ceará que hoje é um dos maiores programas de desenvolvimento infantil do País. Então temos, com certeza, um ponto positivo para o Estado, que é referência na Educação e também na Infância.

Cláudia Vidigal, atual representante da Fundação Van Leer no Brasil — instituição holandesa atua globalmente focada no apoio a crianças na Primeira Infância;
Legenda: Claudia Vidigal representa a Fundação Van Leer no Brasil — instituição holandesa atua globalmente focada no apoio a crianças na Primeira Infância
Foto: Divulgação

Claudia Vidigal – Com a instituição da Política Nacional Integrada, o primeiro aspecto, que é o que todos nós temos falado muito, é sobre a integração de dados. É esse esforço coletivo da Esplanada (de Ministérios) na integração das bases de dados – do Cadastro Único, do MEC, do Ministério da Saúde — para que a criança possa ser enxergada em sua integralidade e que a gente possa acompanhar o seu desenvolvimento integral a partir das várias dimensões do seu desenvolvimento. Então esse é um aspecto: a integração de dados que faz com que a gente consiga enxergar a criança em sua em todas as suas dimensões na política pública. 

Um segundo aspecto diz respeito ao pacto federativo, que é o regime de colaboração entre governo federal, estadual e municípios. Para a gente atingir os objetivos de uma Primeira Infância plena, é preciso que esses três entes tenham a sua participação. Então, se a educação infantil é responsabilidade finalística dos municípios, a infraestrutura e o apoio do Estado para que isso ocorra é fundamental, e o financiamento, o apoio e as diretrizes do governo federal também são fundamentais. 

Então, eu dei um exemplo de uma política finalística, mas acho que a política nacional  demanda essa integração, o bom funcionamento do pacto federativo.

Tem um terceiro aspecto, que também aparece na política, que é relacionado à comunicação com as famílias. Tem ali uma meta, ainda não tão detalhada, mas uma meta expressa de melhorar a comunicação dos governos com as famílias, portanto, apoiando as famílias no desenvolvimento, no suporte ao desenvolvimento dos seus filhos, e fazendo valer o artigo 227 da Constituição, que já está refletido também no Estatuto da Criança e do Adolescente, que é a prioridade absoluta dos direitos das crianças e adolescentes. Por que do artigo 227? Porque no artigo 227, fala assim: "É dever de estado, família e sociedade". 

E por vezes a gente vê as famílias sozinhas nesse missão do cuidado com as crianças. E é importante retomar o dever do Estado junto às famílias. Por vezes, não é que a criança precisa, aos 3 meses de idade, entrar numa creche. Pelo contrário, idealmente, muitas delas poderiam permanecer com suas famílias se tiverem estratégias que possam apoiar essa família, (como) licença-maternidade estendida, licença-paternidade, todas essas políticas que podem apoiar a família a exercer melhor o seu papel de cuidado. Ainda vai precisar detalhar essa política, e eu fiquei muito feliz que o decreto traz um período de 30 dias para o plano de ação. 

Esse plano deve trazer um pouco mais de detalhamento do que virá, porque, é o que eu falo: a Política Nacional é um passo importantíssimo na direção certa, mas ela não é uma revolução. Nada muda amanhã se a gente não começar a mudar as nossas práticas no cotidiano, como gestores públicos e como sociedade civil também. Então, por enquanto, nós temos uma sinalização importantíssima e um passo grande e importante na direção certa, mas as ações mesmo ainda estão por vir. 

Mariana Luz
Legenda: Mariana Luz é CEO da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal
Foto: Divulgação

Mariana Luz – A PNIP é uma grande aposta que o governo faz, que o Brasil, nesse momento, escolhe como uma estratégia de combate à pobreza, de combate à fome, de combate às desigualdades. 

Por outro lado, de fato, ela é a política mais complexa que a gente lançou nesse país, justamente por ela ser intersetorial, então, ela requer que diversas pastas trabalhem de forma conjunta nos três níveis do pacto federativo. Então, União ao lado dos Estados e municípios para conseguir, de fato, chegar nas crianças e nas mães que mais precisam com esse olhar de prioridade, de urgência e de, de fato, oportunidade que a Primeira Infância é e representa do ponto de vista de retorno de investimento. 

Então, o que muda, a partir do lançamento da política, é que o país fez essa escolha. Agora, o que de fato vai fazer mudar a vida das crianças que mais precisam é a gente implementar a PNIP e implementá-la com qualidade. Isso vai depender muito do trabalho colaborativo e da liderança política também, tanto do presidente como de governadores e prefeitos. 

No caso do Ceará, na semana passada o Governo do Estado do Ceará lançou uma política estadual para a Primeira Infância. Então a gente sabe que existe uma trajetória no Governo do Ceará em ter a Primeira Infância como escolha, implementar programas e serviços. Agora, isso precisa estar coordenado com o que é esse foco da implementação federal para que isso possa ser implementado tanto no estado como nos municípios do Governo do Estado do Ceará.

O Ceará é um dos poucos estados que já tem uma política e que já tem excelentes referências de programas de Primeira Infância que estão sendo implementados. Então isso é muito positivo e coloca o Ceará numa posição pioneira para inclusive receber a política nacional.

Diário do Nordeste – Existe a previsão de um banco de dados único sobre a Primeira Infância. De que forma isso deve ajudar o governo federal, mas também gestões estaduais e municipais no cuidado com bebês e crianças?

Jade Romero – Atualmente, os dados referentes à infância vêm de fontes diferentes. Quando nós queremos, por exemplo, analisar a pobreza, precisamos de dados que vão além da renda, e passam por saúde, educação, e outros, uma vez que a pobreza é uma questão multifatorial.

Hoje, essa análise é muito mais complexa, pela diversidade de fontes e metodologias de pesquisas. Com o banco de dados, nós teremos a reunião e a análise desses dados, além da previsão de criação de um indicador da primeira infância. Esse indicador vai falar sobre a situação nacional e também dos estados, facilitando o acompanhamento e monitoramento das políticas desenvolvidas.

Claudia Vidigal – Veja, se nós temos um banco de dados unificado, a gente consegue criar alguns alertas de risco para que a gente possa proteger as crianças e favorecer o desenvolvimento integral. Vou dar um exemplo: se a gente tiver clareza, pela base de dados que entra pela saúde, a criança vai tomar vacina lá aos 4 anos de idade e a gente descobre que a criança está fora da escola, porque os dados estão integrados, a gente cria um alerta de risco para essa busca ativa, porque toda criança de 4 anos precisa estar na escola no nosso país.

Com esse alerta de risco, a gente pode criar alertas de risco para adolescentes grávidas que saem das escolas, a gente pode criar alertas de risco para crianças que não estão tomando vacinas, a partir da base de dados da Educação. A gente começa a enxergar numa política os problemas que outra política poderia estar enfrentando e as oportunidades de melhor cuidado a partir de outras políticas.

É essa dança entre as dimensões do desenvolvimento humano que a política nacional pretende favorecer. Uma dança um pouco mais orgânica mesmo para que as gestões públicas possam enxergar a criança, o problema que ela está vivenciando a partir de uma política favorecendo outra. Isso é a intersetorialidade, de fato. A intersetorialidade ela só acontece se a gente puder enxergar um problema que um setor poderia apoiar dentro de outro setor. 

A gente costuma dizer que, na primeira infância, as dimensões do desenvolvimento humanos são indissociáveis. A criança precisa de boa nutrição, de boa saúde, de aprendizagem precoce, de proteção. Ela precisa de todas essas dimensões contempladas e cuidadas de forma indissociável. E nesse sentido é importante que a gente enxergue a criança, em cada uma das políticas, de forma também integrada. 

Mariana Luz – O conceito da base de dados é muito importante, porque uma das principais impossibilidades que gestores públicos têm de fazer a política se integrar é justamente porque eles não têm as informações das diferentes pastas, e sobretudo porque muitas vezes os cadastros são diferentes no campo da assistência ou da saúde ou da educação, o que torna impossível fazer o cruzamento das informações e portanto da gestão da política pública. 

E a lógica de se ter um sistema integrado de dados é fazer uso de tecnologia, integrar as informações para que a gestão municipal, estadual e até federal possa ter uma melhor eficácia no cruzamento. 

Muitas vezes, e sobretudo por causa das crianças e das famílias mais vulneráveis, a invisibilidade dessas famílias para a própria política pública é onde a gente mais precisa atuar, é onde a gente mais precisa identificar, é onde a gente mais precisa encontrar e, de forma ativa, buscar essas famílias para inseri-las nos programas, nos serviços.

Esse sistema tem esse grande objetivo de fazer essa gestão, por meio da tecnologia. Uma gestão eficiente e que tenha uma interface, uma interoperabilidade com os sistemas existentes, mas também com as esferas estaduais e municipais.

Diário do Nordeste – E do ponto de vista da gestão pública, e do avanço do País, qual a importância de priorizar a Primeira Infância dentro das políticas públicas?

Jade Romero – A primeira infância tem um poder de transformação da sociedade. Sabemos da janela de oportunidades que significa esse período da vida, dando as bases do desenvolvimento humano. Sendo assim, investir na infância é investir em toda a formação da sociedade.

Quando cuidamos da saúde na primeira infância, temos adultos mais saudáveis. Na educação, temos uma resposta no mercado de trabalho dessa criança quando adulto, melhor saúde mental ao longo de toda a vida. O economista James Heckman, Nobel de Economia, tem pesquisas que falam sobre a eficácia do investimento na primeira infância. 

Há pesquisas que apontam que investir um dólar na criança nos traz um retorno de até sete dólares na vida adulta. Então estamos falando da construção de uma sociedade mais justa, mais saudável e também de investimentos mais assertivos. 

Claudia Vidigal – A importância é total. Por que eu digo isso? Porque nós temos o prêmio Nobel de Economia que já demonstra que, se a gente quer transformar um país, é pelo começo da vida que a gente tem mais chances de conseguir uma mudança profunda e duradoura. James Heckman, o prêmio Nobel de 2000, trouxe a equação de retorno do investimento na primeira infância.

A gente está falando aqui da economia. Eu posso te falar também da psicanálise, da psicologia, da pedagogia, da neurociência. Todas essas ciências já traziam a importância do começo da vida para o desenvolvimento humano. Então, nós temos evidências de todos os campos científicos mostrando a importância do começo da vida.

Mas a gente ainda tem, na visão popular, a leitura de que as crianças, de que esse comecinho da vida não é tão importante, que muito pouco acontece. 41% das pessoas do nosso país acreditam, segundo pesquisa do Datafolha que foi lançada essa semana, que a etapa mais importante no desenvolvimento humano é depois dos 18 anos. 

A gente ainda tem um processo de compreensão da importância desse momento da vida, que é um momento em que, se a gente não oferecer a oportunidade de um bom começo para todos, com 3 anos de vida, uma criança já é vítima da desigualdade do nosso país. Então, a gente precisa assegurar que, se a gente quer enfrentar a desigualdade, a gente precisa começar pelo começo da vida. É dar o bom começo para todos e, a cada etapa do desenvolvimento, criar oportunidades para que as crianças possam se desenvolver plenamente. Não sobreviver, mas atingir o seu pleno potencial. 

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Precisa ser no começo da vida, porque a gente vê que crianças que chegam na escola aos 4 anos, que já não foram vacinadas, que já não têm uma boa nutrição, que viveram em situações de agressão, de violência, elas já chegam em pé de alta desigualdade para aproveitar o que virá depois. E aí esse abismo da desigualdade só se aprofunda.

Mariana Luz – Todas as evidências mostram que a Primeira Infância é a política de mais retornos. Para a economia, para a melhora do emprego, da renda, da geração de salários mais altos, justamente porque ela tem um retorno para o investimento na área da Educação. 

Uma criança com Primeira Infância bem vivida aprende até três vezes mais ao longo de toda a sua jornada escolar. Isso diminui evasão, aumenta a alfabetização na idade certa, aumenta a conclusão dos estudos, a possibilidade dela ir para outros estudos, justamente porque a partir da formação de uma base cognitiva sólida, ela tem essa capacidade de avançar nessa trajetória escolar. 

Ela melhora a saúde, todo o sistema de saúde pública. Primeiro, porque ela tira pessoas do sistema de saúde, uma vez que ao fazer melhores escolhas, as pessoas têm menos doenças crônicas, menos propensão ao vício, como o uso de cigarro, drogas, álcool e isso melhora a saúde dessa pessoa, diminui a saúde crônica. Mas também porque ela vai ter, do ponto de vista de saúde mais ampla, de saúde mental, de uma saúde integrativa, ela vai estar também melhor. 

Na segurança pública, a Primeira Infância tem resultados importantes, justamente por uma lógica eficiente de prevenção de propensão ao crime, à violência, e a repetir padrões de violência que são tão presentes, infelizmente, nas crianças hoje, que sofrem inúmeros abusos e negligências, violências sexuais e físicas. É uma forma de a gente combater isso desde o berço e de uma forma estrutural. Assim como o racismo, ela tem esse outro grande benefício. 

E é o conjunto desses benefícios que torna a Primeira Infância essa política tão eficiente. O Nobel de economia James Heckman ganhou justamente pela equação do Heckman que trazia que o investimento de um dólar na primeira infância traz um retorno de sete dólares. E qual a equação que faz isso? Eu sempre digo: qual a equação que tem o investimento inicial baixo um retorno rápido e duradouro no longo prazo? Então, quem não quer isso? Quem que não faz a escolha para o país? Agora, precisa ser uma escolha agora porque, para o Brasil ser esse Brasil de uma economia forte, um país soberano, um país mais produtivo, mais feliz; ele precisa investir na criança agora, hoje, e de forma prioritária.

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