"Funcionário fantasma": quais as punições para fraudes em contratações no Legislativo
No Ceará, um deputado estadual é investigado no Ministério Público após denúncia de contratação irregular
O Inquérito Civil Público instaurado pelo Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) para apurar suposta contratação de funcionária fantasma no gabinete do deputado estadual André Fernandes (PL) joga luz para uma discussão recente na legislação brasileira: não há um crime que tipifique especificamente a condição de funcionário fantasma.
O desvio de conduta, que pode gerar penalidades tanto na esfera política como administrativa, gera divergências entre especialistas sobre o enquadramento no âmbito penal. Entre as punições, caso confirmado o ilícito, estão desde o pagamento de multa até a perda de mandato.
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Em nota e em vídeo nas redes sociais, o deputado André Fernandes nega que tenha mantido o vínculo empregatício de uma funcionária que dava expediente em outro local no mesmo horário. Segundo ele, a funcionária, cujo salário é de R$ 13,8 mil, cumpriu estágio obrigatório de um curso de graduação em uma academia em Fortaleza durante seis meses. O caso segue em investigação.
Como o caso se encaixa na legislação
Apesar de ser uma expressão usada de maneira recorrente, não há tipificação específica para "funcionário fantasma" no Código Penal ou na legislação brasileira.
Advogado e presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Ceará (OAB-CE), Fernandes Neto aponta que a conduta "se amolda ao crime de corrupção, onde se estabelece desvio de dinheiro público". "A punição, após condenação, para o crime é de detenção, multa e suspensão dos direitos políticos", completa.
Já o professor de Direito Penal da Universidade Federal do Ceará (UFC), Daniel Maia discorda do enquadramento da conduta como crime. "É um ilícito que se pune nas searas administrativa e civil, mas não criminal. Para ser crime, qualquer que seja a conduta, tem que se encaixar perfeitamente (na tipificação do Código Penal)", explica o também advogado.
Professor da Faculdade de Direito da UFC, Felipe Braga afirma que podem existir "algum precedente isolado", mas que, em decisão de dezembro de 2020, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) teve entendimento de que a nomeação de funcionário fantasma não configura crime. "Do ponto de vista penal, não tem um tipo específico para isso", explica.
O julgamento foi do HC 466.378, em que a Corte entendeu que fazer pagamento a funcionário fantasma, embora possa configurar falta disciplinar ou ato de improbidade administrativa, não configura um crime específico. "Pode ser que tenha algum precedente isolado, mas como tem esse entendimento do Superior Tribunal de Justiça, acho difícil haver condenação", completa.
Daniel Maia lembra ainda que, desde o ano passado, o Senado analisa projeto de lei que altera o Código Penal para tipificar o "peculato fantasma" como crime. A conduta de receber remuneração em razão de ocupar cargo, emprego ou função pública sem desempenhar de forma habitual atividade laborativa junto à Administração Pública, os chamados funcionários fantasmas, passariam a ser enquadrados como delito.
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A proposta estabelece pena de reclusão de 2 a 12 anos, e multa, para quem cometer o crime. O tipo penal proposto pune também a autoridade para quem deveria ser prestada a atividade laborativa. O Projeto de Lei 3/2021 foi apresentado pelo senador Styvenson Valentim (Podemos-RN).
"O pagamento de funcionários fantasmas não deixa de ser um desvio de recursos em favor de poucos, mas em detrimento de muitos, sobretudo da Administração Pública”, diz o parlamentar no texto.
Perda de mandato parlamentar
Uma das penalidades mais graves para a conduta é a perda do mandato político. A punição pode ocorrer tanto na esfera política - caso seja aberto algum processo disciplinar contra o parlamentar na Casa legislativa - como pela via civil - com a investigação por improbidade administrativa.
Daniel Maia detalha que uma condenação por improbidade administrativa pode resultar ainda em "pagamento de multa, devolução do salário e proibição de exercer cargo público".
A cassação do mandato também é um risco caso a conduta do parlamentar seja enquadrada como quebra de decoro parlamentar, o que ocasionaria processo no Conselho de Ética. Neste caso, as penalidades podem ser advertência ou censura; suspensão temporária do exercício do mandato por até 30 dias; ou a perda de mandato.
O deputado André Fernandes já teve o mandato suspenso por este período em agosto de 2020. Na época, ele acusou, sem provas, o então deputado estadual Nezinho Farias (PDT) de integrar facção criminosa.
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Processo no legislativo estadual
No caso da quebra de decoro parlamentar, o processo deve ser analisado pelo Conselho de Ética, para exame exclusivo dos aspectos éticos, e, a seguir, à Comissão de Constituição e Justiça.
A análise precisa cumprir uma série de etapas, como:
- O deputado alvo da denúncia será notificado e deve apresentar, no prazo de 10 sessões ordinárias, a defesa escrita e apresentar provas.
- Caso não seja apresentada defesa, o presidente do Conselho irá nomear defensor que terá mesmo prazo para oferecê-la.
- Após a defesa ser apresentada, o Conselho terá 30 dias para proceder com diligências, caso necessário;
- Na sequência, o deputado denunciado ou o defensor terão o prazo de 10 sessões para apresentar razões finais de defesa;
- Logo após, o Conselho de Ética e a CCJ terão o prazo de cinco sessões ordinária para apresentar o parecer pela procedência ou não da denúncia;
- Caso seja considerado procedente, projeto de resolução será encaminhado à Mesa Diretora no sentido de perda de mandato;
- Após serem lidos no expediente, os pareceres serão incluídos na Ordem do Dia para votação;
- O acusado terá direito a fazer sustentação oral por 30 minutos na sessão do Conselho de Ética e CCJ e, no Plenário, terá direito a 45 minutos.
A penalidade é, então, decidida pelo Plenário do legislativo estadual, com votação secreta e depois de assegurada "ampla defesa". A provocação para denúncia deve ser feita pela Mesa Diretora ou por partidos com representação na Assembleia.
Com tantas instâncias envolvidas, Fernandes Neto ressalta a independência de investigação que cada esfera tem.
"Todas essas searas são independentes. Não precisa de condenação penal, para a ação administrativa ou para a proposição do processo parlamentar", exemplifica.