Crise com EUA reforça união do STF e dá mais protagonismo a Alexandre de Moraes, avalia pesquisadora
A jornalista e cientista política Grazielle Albuquerque pesquisa política e sistema de justiça, além de ser autora do livro "Da lei aos desejos: o agendamento estratégico do STF"
A recente ofensiva do presidente dos Estados Unidos (EUA), Donald Trump, contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), pode ter um efeito interno oposto ao pretendido por críticos do magistrado e da Corte. A avaliação é da jornalista e cientista política Grazielle Albuquerque, que pesquisa política e sistema de justiça, além de ser autora do livro "Da lei aos desejos: o agendamento estratégico do STF".
Ela é entrevistada no podcast PontoPoder Contexto deste sábado (2). Grazielle aponta que a sanção do ministro pela Lei Magnitski, que impõe restrições financeiras a seus alvos, tende a reforçar o espírito de corpo dos ministros e consolidar ainda mais a Corte como uma instituição coesa diante de pressões políticas externas e internas.
As sanções contra Moraes foram anunciadas na última semana, após uma articulação internacional liderada pelo deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL), filho do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
“As notícias que chegam, a partir das sanções ao Alexandre de Moraes, é de que o Supremo ganhou um novo espírito de corpo, está mais fechado”, afirma Graziella, que vê no momento atual uma continuidade do fenômeno de personalização do Judiciário.
A pesquisadora também comenta sobre o nível de visibilidade que Moraes tem atualmente, seja no Brasil, seja no exterior. Ela relembra que figuras como o ex-ministro Joaquim Barbosa e o ex-juiz Sergio Moro inauguraram uma era de juízes-heróis, que culmina, agora, na exposição em torno de Moraes.
“Não estou colocando todos no mesmo pacote, não estou dizendo que são iguais, estou dizendo que o fenômeno da individualização do juiz, de um juiz que você passa a ter amor ou ódio, acho que, sim, volta para o Joaquim Barbosa, mas não acho que esses três personagens sejam completamente iguais, longe disso. Só que o fenômeno me parece ser contíguo”, acrescenta.
Para a pesquisadora, o protagonismo de Moraes não é uma construção isolada, mas o resultado de um cenário institucional em que o Supremo foi empurrado para o centro das disputas políticas. Embora o aumento da visibilidade traga riscos, também amplia o peso da Corte como contrapeso diante de crises entre Executivo e Legislativo, segundo Albuquerque.
CONFIRA A ENTREVISTA COMPLETA:
Na última quarta-feira, dia 30, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou uma série de medidas contra o Brasil, o chamado Tarifaço do Trump, mas um dos alvos foi o ministro Alexandre de Moraes, alvo de sanções financeiras. Como você analisa esse cerco dos Estados Unidos contra o Moraes? Qual o impacto disso para a Corte?
Primeiro, isso é completamente inédito, eu desconheço outra situação dessa magnitude, é realmente algo bem significativo. Podemos analisar essas consequências de diversas formas. Uma delas — a mais pontual desse momento em que nós estamos falando —, é uma espécie de fortalecimento do espírito de corpo da Corte. Sobretudo se voltarmos para um passado recente, vamos lembrar de algumas rusgas internas do Tribunal e discussões que até viraram meme, mas, especialmente depois do governo Bolsonaro e dos ataques à Corte, houve um espírito de corpo mais significativo. Não que não haja divergências, mas houve um movimento de entender que o Tribunal era uma instituição como um todo.
Esses ataques ao Supremo Tribunal Federal — a partir, inclusive, da carta do Trump, em que os dois primeiros parágrafos já se referiam ao Supremo e ao ministro Alexandre de Moraes —, e, em especial agora, com a sanção da lei que restringe diversos aspectos da relação do ministro com empresas dos Estados Unidos, mostram uma mudança de cenário. Vale ressaltar que a lei atinge não só ele, mas também a esposa e os filhos.
Então, o que a gente tem, inclusive por notícias de bastidor e pela própria cobertura da imprensa, é a percepção de um posicionamento mais fechado do Supremo em defesa do ministro, entendendo isso como uma forma de defender o próprio Tribunal.
Você comentou sobre não haver outro momento em que a evidência da Corte ficou tão clara, mas em quais outros momentos da história o Supremo teve grande visibilidade? Houve alguma situação próxima do que estamos vendo agora? Ou, de fato — e você até já antecipou um pouco essa resposta —, nunca houve um precedente? Porque hoje temos a Corte julgando ex-presidentes, ex-ministros, generais, e enfrentando uma pressão internacional que, aí sim, me parece algo realmente inédito.
Se a gente parar para pensar, o Supremo pós-1988 — ou o Judiciário, que aqui eu estou me referindo o Supremo como Judiciário por alguns motivos que depois posso esclarecer — tem uma presença na sociedade, na política e nos meios de comunicação muito significativa e muito diferente do que acontecia antes. A gente talvez tenha algum momento (de destaque) ali no Brasil Império, mas, na história da República, não temos um protagonismo tão grande do Supremo.
Do ponto de vista da visibilidade, há alguns marcadores que, nas minhas pesquisas, eu chamo de turning points, pontos de virada. (O primeiro deles é) o impeachment do Collor — que nos parece distante, mas é o meu ponto zero — , porque, apesar de ser um julgamento político feito pela Câmara e pelo Senado, quem preside as sessões é um ministro do Supremo, que em 1992 era o Sidney Sanches. Ali, se começou a falar de Supremo. Depois, em 1999, uma pauta que acabou não indo à cabo, que foi a pauta da CPI do Judiciário, mas ali, de novo, o Supremo tem um potinho de visibilidade.
No final dos anos 1990, surgem casos de corrupção envolvendo o Judiciário, como o do Nicolau dos Santos Neto, no TRT de São Paulo, e o do Rocha Mattos, com a venda de sentenças. Tem até um livro excelente sobre isso, “O Juiz no Banco dos Réus”, do jornalista Frederico Vasconcelos, que acompanha o Judiciário pela Folha de S.Paulo há muitos anos. Aí mais um pouco de uma discussão que nos anos 2000, em 2004, é coroado com a reforma do Judiciário, a Emenda 45. Para você ter noção,foi só ali que a Folha de S.Paulo colocou, pela primeira vez, um repórter fixo para cobrir o Supremo. Antes, você tinha repórteres volantes e começou a ter um setorista.
Você tem uma crescente, aí vem o mensalão, que, para mim, é a grande mudança de chave. Não estou falando da denúncia, mas do julgamento, que durou de 2012 a 2013 — quando foram julgados os embargos. Foram dois anos com o Tribunal completamente tomado por essa pauta, com uma cobertura intensa na TV. E ali você tinha o cidadão comum falando de “embargos infringentes”, o que era algo completamente inédito, mas, ao mesmo tempo, quando a gente olha com os olhos de agora, parece não só distante, mas algo bobo e até singelo. É uma coisa desmedida.
Você citou o mensalão e, nessa época, o ministro Joaquim Barbosa ganhou grande destaque, personalizou a imagem do Tribunal. Agora, tem o Moraes. Antes do mensalão, havia esse costume de ter uma figura que centralizava a imagem da Corte em uma pessoa ou o mensalão também estreia isso?
O que aparece nos meus estudos é justamente que o mensalão é o ponto de virada do juiz-herói. É quando surge a figura do Joaquim Barbosa com uma capa, sendo comparado ao Batman, ganhando destaque de forma muito individualizada. Logo depois tem isso com o Sergio Moro, em outra perspectiva — fora do Supremo —, mas ele aparece em bonecos infláveis nas praças, vestido com a roupa do Super-Homem, e isso encantou muita gente. Lembro, inclusive, de um artigo maravilhoso da Eliane Brum, publicado no The Guardian em março de 2016, em que ela diz: 'O incrível caso do juiz que não se furta ao papel de herói'.
O Alexandre de Moraes talvez seja essa última versão dessa questão do heroísmo. Não estou colocando todos no mesmo pacote, não estou dizendo que são iguais, estou dizendo que o fenômeno da individualização do juiz, de um juiz que você passa a ter amor ou ódio, acho que, sim, volta para o Joaquim Barbosa, mas não acho que esses três personagens sejam completamente iguais, longe disso. Só que o fenômeno me parece ser contíguo, digamos assim. Então, temos esses pontos de virada, esses turning points, mas, com a dimensão do que a gente tem hoje, de fato é completamente inédito.
Qual balanço você faz dessa visibilidade? Quais as vantagens e desvantagens dessa exposição? E aproveito também para te perguntar sobre a questão da personificação em uma figura, isso enfraquece ou fortalece a institucionalidade?
Esse é um fenômeno de um tempo, e não é só um fenômeno brasileiro. Eu vou convidar o ouvinte que nos escuta a dar uma busca, digita assim: “RBG, Ruth Bader Ginsburg”. É o nome de uma juíza, uma ministra da Suprema Corte dos Estados Unidos, que faleceu há alguns anos e que se tornou uma figura completamente pop no país. Você vai ver camisetas, bottons e canecas com o nome dela. Vivemos em uma sociedade muito midiática, e essa tendência de (criação de) personagens acontece.
A novidade é pensar isso dentro do Judiciário, que é um poder, como se dizia antigamente: “É um ilustre desconhecido”. Não se sabia quem eram os ministros do Supremo. Eu tendo a achar, primeiro, que esse é um fenômeno que vai além do Judiciário. Ele expressa um movimento de personificação, mas vai além dele. Precisamos ver o que vai acontecer, não dá para fazer futurologia, mas acho que traz perigos complicados para o Judiciário. O Executivo e o Legislativo são dois poderes que precisam do voto, eles dependem que alguém olhe para um candidato e se apaixone. Quem estuda marketing político trabalha com isso. Desde Getúlio Vargas até o candidato a vereador do interior, todos precisam conquistar o eleitor.
Agora, um juiz vai ficar 30, 40 anos exercendo aquela jurisdição, vai ficar perto de uma década naquela comarca, então como ele vai conseguir estar atrelado à lei? O desenho do Judiciário é contramajoritário, é contra a maioria. O Executivo e o Legislativo representam a maioria, mas o Judiciário não é para ser assim, é para estar mais atrelado a um desenho de um arcabouço. Não é que ele não possa mudar o entendimento ao longo do tempo, mas ele muda em larga escala. O Judiciário é como um transatlântico, não é uma jangada que muda de direção com qualquer vento. Senão, ele perde a legitimidade.
O que eu acho perigoso é que, quando você tem esse tipo adesão à figura de um magistrado, você está colocando ele no campo da política, da política quase eletiva. Eu costumo comparar o Judiciário a um disjuntor. Quando tem um curto-circuito na sua casa, o disjuntor barra, freia tudo para evitar que algo pior aconteça. A função do Judiciário é essa, dizer: “opa, pera aí, calma, vamos ver o que a lei e a Constituição estão dizendo”. Se ele entrar demais na briga cotidiana e comezinha da política — e não estou dizendo que ele não tenha um papel político, ele tem, mas a forma de exercer esse papel é outra —, aí a coisa complica.
Temos visto acusações recentes do Legislativo contra o Judiciário sobre uma suposta invasão de funções. São reclamações de que o STF estaria querendo legislar e avançar sobre outras prerrogativas dos congressistas. Como você analisa essas críticas, elas têm algum fundamento ou são apenas para pressionar a Corte?
Já tínhamos um problema anterior na relação entre Executivo e Legislativo, e o Judiciário entra nisso. No modelo clássico brasileiro de rearranjo pós-1988, tem uma expressão clássica da ciência política que é o "presidencialismo de coalizão". Mesmo na ditadura militar, havia muito poder concentrado nas mãos do Executivo, quando ocorre a abertura política, surgem os novos partidos políticos e se forma um arranjo entre Executivo e Legislativo. Nesse arranjo, o Executivo sempre teve muito poder, inclusive poder de barganha junto ao Legislativo.
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Chamamos de "presidencialismo de coalizão" porque o Brasil tem muitos partidos, ao contrário de outros países onde geralmente há uma relação mais bipartidária. Ainda assim, o Executivo conseguia, via líderes, formar uma coalizão e tocar o seu governo. Essa disfunção foi se dando ao longo dos anos 2000, mas deixou de dar conta. Hoje, você tem um Legislativo com o poder do dinheiro sem o ônus da cobrança, porque manda emenda e não se sabe para onde, ninguém sabe como é, como não é, e você tem um Executivo muito refém disso. Então, o Judiciário entra em um problema que, desse aspecto, é anterior a ele — é um problema entre Executivo e Legislativo. Contudo, há uma questão paralela a essa disfunção entre Executivo e Legislativo, porque o desenho que (a Constituição de) 1988 fez para o Brasil foi o de criar um Judiciário com um papel político de anteparo ao autoritarismo. A gente passou mais de 30 anos em um regime militar e, em 1988, se desenhou o que chamamos de sistema de justiça.
Na Constituição, se você procurar as funções essenciais à Justiça, vai encontrar Defensoria, Ministério Público, enfim, aquela ideia que tínhamos apenas do Judiciário passa a ser uma ideia mais ampla de Sistema de Justiça, quase como um sistema solar. Então, eu tenho a Defensoria, o Ministério Público… É muito mais gente para bater na porta da Justiça; tenho uma legislação muito mais ampla: direito do consumidor, direito ambiental, coisas que antes nem existiam ou não tinham essa proporção.
O que eu estou querendo dizer com isso? O Judiciário e o Sistema de Justiça passam a ser um anteparo importante para garantir a existência de um sistema democrático, para evitar aquele superpoder autoritário que existia antes de 1988. Isso faz com que o Judiciário, de fato, tenha muito poder. Mas esse poder maior já estava desenhado em 1988. Ele foi se ampliando ao longo dos anos 1990 por outros motivos que a gente pode comentar, mas essa configuração quase caótica de hoje, está ligada a uma disfunção anterior entre Legislativo e Executivo.
Inclusive, vemos muito essa crítica de que o Judiciário está avançando, invadindo funções, mas sempre que há uma mínima necessidade, sempre que há uma oportunidade, os poderes acionam o STF. Tivemos o caso das emendas, o Judiciário tomando a frente para dar algum nível de transparência, a questão do aumento do IOF, em que o Executivo buscou o STF… Então o Judiciário é alvo das pedras, mas também é buscado como abrigo.
Na verdade, a gente tende a enxergar a presença do Judiciário na política como uma relação de causa e efeito imediata, e não é assim. Por exemplo, nos anos 1990, a Emenda Constitucional nº 3 regulamentou a ADC, Ação Direta de Constitucionalidade. Isso foi uma articulação do Executivo que acabou dando mais poder ao Supremo. Isso não impede que o Supremo, mais à frente, tenha criado uma coisa chamada mutação constitucional, em que diz: “Não, agora isso aqui é um tema constitucional, eu que resolvo.” Então acontece, sim, de o Judiciário ter ganhado gosto por ter mais poder, e acontece também de ele ser provocado por outros poderes. Essas coisas não são excludentes.
A relação do ex-presidente Jair Bolsonaro com o Supremo sempre foi muito acirrada, especialmente com o ministro Alexandre de Moraes, talvez o alvo preferido dele. Como você enxerga essa postura? É parte do jogo político ou, de fato, há um confronto, uma intencionalidade em criar uma cisão com o STF?
Falamos de dois pontos conjunturais até agora: o primeiro, que é a disfunção entre Executivo e Legislativo no jogo político brasileiro, e falamos também desse modelo de sistema de justiça político, de anteparo ao autoritarismo, desenhado pela Constituição de 1988 — que, inclusive, acho que é um desenho mais latino-americano. Eu estava comentando isso com uma amiga, a Thaís Dias, professora de Direito, quando vinha pra cá, e a gente dizia que, curiosamente, esse desenho de um Judiciário como anteparo ao autoritarismo acabou funcionando. Por que estou lembrando desses dois pontos? Porque eles ajudam a responder, mas há um terceiro ponto de análise conjuntural. Há um movimento, em especial da extrema direita no mundo, de ataque às instituições e, em particular, ao Judiciário. Temos uma farta literatura sobre isso.
Eu, pessoalmente, junto com dois colegas, fiz uma pesquisa sobre os ataques no período eleitoral de 2022 e 2023. Essa pesquisa foi feita em parceria com a Universidade de Erfurt, na Alemanha, com Regina Cazzamatta e o Augusto Santos. Pegamos dados da plataforma “Fato ou Boato”, do TSE, e mapeamos de 2018 a 2023. Em 2022, você consegue ver como e quando os ataques deixam de ser às urnas e passam a ser diretamente aos ministros do Supremo e do TSE. Com isso, não estou dizendo que você não possa criticar o Judiciário, o Supremo ou o TSE. As instituições são e devem ser (criticáveis), é saudável. Crítica é uma coisa, ataque é outra.
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Então, essa questão Supremo e Bolsonaro tem características brasileiras, mas também é parte de algo maior. Diversos poderes judiciários pelo mundo têm sofrido ataques. E, no caso do Brasil, há um componente fundamental porque o Judiciário é quem organiza a eleição. A gente vinha, especialmente sob o governo Bolsonaro, em um batidão de críticas ao processo eleitoral, às urnas eletrônicas, etc. Isso tudo se concentrou também em uma crítica ao Judiciário por conta disso, porque o Judiciário é o grande orquestrador do processo eleitoral. Então, sim, tem um traço brasileiro, mas precisamos enxergar isso de uma maneira maior. Há uma ideia maior de que você precisa ser "antisistema", de que o sistema não funciona, a urna não funciona, o voto não funciona, a justiça não funciona... Estou soltando palavras, mas, de maneira geral, tem um descrédito institucional que embala algo que, no Brasil, tem suas características próprias.
No Brasil, o STF foi alvo, inicialmente, de protestos, seguidos de ameaças e até chegar a uma tentativa concreta de golpe, inclusive com previsões de execução de ministros da Corte. Você avalia que a resposta do Supremo a tudo isso foi adequada à gravidade dos atos? Em algum momento houve excessos?
A resposta foi adequada, embora a gente possa, sim, questionar alguns excessos. O difícil de questionar excessos é que estamos vivendo uma exceção gigantesca, que parece não ter fim. Como é que você vai usar um parâmetro “normal” em uma situação completamente fora da normalidade? Vamos comparar com os Estados Unidos, por exemplo. Tivemos aqui o 8 de janeiro de 2023, quando foram invadidos a sede do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, que, diferente dos outros dois, não é um poder eletivo, ele representa justamente algo contramajoritário. Nos Estados Unidos, o Capitólio, que foi invadido, é a sede de um poder eletivo. A Suprema Corte de lá não foi invadida.
Então, temos aqui algo com um componente global, mas com características muito específicas. E eu vejo, apesar dos excessos — que a gente pode, sim, discutir, como a duração de determinados inquéritos e processos, ou a motivação de certas decisões —, um aprendizado institucional do Supremo. Em geral, há uma tentativa de não repetir os erros cometidos, por exemplo, na Lava Jato. Vou te dar alguns exemplos. Após o 8 de janeiro, o ato que ocorreu, aquele passeio pela Praça dos Três Poderes, não foi só do Judiciário, foi um apelo democrático onde o Executivo e o Legislativo estavam juntos.
Você pode criticar o ministro Alexandre de Moraes, não é disso que estou falando, mas as decisões dele são referendadas pela Primeira Turma do Supremo. Não são decisões monocráticas sem a anuência dos seus pares. Até onde se acompanha, é possível ver um cuidado com o devido processo legal. Todo mundo vê na TV os advogados falando, citam até “O Pequeno Príncipe” como sendo de Maquiavel, brincam, pedem mais tempo pra tomar café da manhã... Isso não me parece nada que viole direitos humanos ou cerceie o direito de defesa. Então, no geral, vejo um cuidado muito grande do Supremo em dar uma resposta firme, mas com muita atenção aos trâmites do devido processo legal. O que não significa que não se possa criticar determinados pontos. O problema é esse, a situação é tão fora da curva que a gente até perde o parâmetro para a crítica.
E o Alexandre de Moraes se tornou essa figura central na contenção de atos antidemocráticos e no enfrentamento direto ao bolsonarismo. Há uma expectativa de que, com o tempo, ele vá se distanciando dessa centralidade e a Corte como um todo passe a aparecer mais. Contudo, a cada dia, novos atos e processos surgem, e ele continua ganhando visibilidade. É possível traçar um caminho para essa transição?
Você mencionou meu livro, "Da lei aos desejos: o agendamento estratégico do STF", e um ponto central desse estudo é que existem dois fatores na comunicação do Judiciário: a dinâmica comunicacional, que é essa coisa mais amiúde da relação entre assessoria e jornalistas; e o contexto. A comunicação sempre responde a um contexto. Você mesmo começou a entrevista dizendo: “Não poderíamos deixar de comentar hoje”. Isso é o assunto do, para quem estuda Comunicação, isso é a Teoria do Agendamento, é o que está agendado hoje. É difícil imaginar um ministro que se descole de um contexto que o tempo todo chama sua imagem para o holofote. Primeiro, você tem uma carta citando o nome do ministro, depois tem a aplicação de uma lei… É difícil.
Veja que a resposta do Supremo foi uma nota institucional, embora seja possível responder de outra maneira, mas a resposta foi mais formal. O que estou dizendo é que o contexto importa muito e estamos em um contexto de polarização. É difícil construir uma estratégia efetiva de comunicação que não dialogue com o contexto. Dito isso, em um plano mais normal, fora da exceção, quem muito dá o tom da comunicação de um tribunal é o presidente. Ele escolhe o assessor de comunicação. Ele não dá o tom sozinho, mas ele é um peso importante. Um exemplo, o ministro Marco Aurélio, quando foi presidente do STF, criou a TV Justiça. Acho pouco provável que ela deixe de existir, mesmo com muitos outros ministros presidindo a Corte depois dele. Ele deu uma tônica, e quando ele criou, nem todo mundo era favorável à criação. Em um cenário mais normal, teríamos um presidente do Supremo que poderia dar essa tônica.
Teremos a presidência do (Edson) Fachin, que vai assumir no lugar do Barroso. O Fachin é muito mais discreto, então seria possível esperar uma comunicação mais institucional da Corte, mas quem manda é o contexto. A minha pesquisa diz isso, a teoria do agendamento estratégico, que eu desenvolvi durante o doutorado, diz isso: "É o contexto que dá oportunidade e constrangimento". Se o contexto continuar polarizado e continuar puxando essa figura do do juiz-herói, do “Xandão”, dessa imagem mais centrada no sujeito, eu acho difícil que você não tenha um agendamento ligado a esse contexto.
Grazielle, uma postura que tem chamado muito a atenção é a do ministro Luiz Fux. Ele tem tido posições que destoam dos pares da turma, do colegiado que ele integra. Essa é uma postura relevante para o cenário político a partir de agora ou é uma discordância mais pontual?
Tem duas coisas que são importantes. A primeira é que estamos falando sobre o Supremo, Alexandre de Moraes, Xandão… Toda essa discussão está olhando muito para o agora, mas vamos lembrar do que falei, de que estava todo mundo assistindo ao Jornal Nacional em casa e falando sobre embargos infringentes no julgamento do mensalão. O brasileiro tem começado a entender como o sistema de Justiça funciona, e tem discutido sobre decisões, sobre votos.
Lembro que, na Avenida Paulista, em dezembro de 2016, eu comecei a ver cartazes com o nome de ministros e seus votos, isso virou uma tônica tão grande que as pessoas hoje discutem e comparam os votos dos ministros, inclusive com quem não é ministro, de magistrados de primeiro grau. Isso vai ter um efeito para além do Fux, para além do Alexandre de Moraes, estaremos mais atentos às decisões do Supremo e da magistratura. Isso é uma novidade. Antes, a crônica política falava de como o deputado votava, mas a crônica política não falava como o juiz votava, isso vai começar a aparecer.
A outra questão é que estamos analisando o Fux no contexto das decisões da Primeira Turma, onde ele era uma voz dissidente e que flexibilizava em relação à postura da Primeira Turma em geral no que concerne à denúncia de golpe, à tentativa de golpe, mas não sei como isso vai ficar agora, porque as notícias que chegam, a partir das sanções ao Alexandre de Moraes, é de que o Supremo ganhou um novo espírito de corpo, está mais fechado. Realmente, eu não sei como é que isso vai ter uma configuração a partir de agora. E aí também distinguir o que é uma postura institucional e o que é o direito ou a posição do magistrado de ter seu voto, que inclusive pode divergir de um outro, ou seja, o recado institucional e o voto do ministro têm que ser diferenciados.