Em meio a uma busca por governabilidade no Congresso Nacional e com o intuito de atender a demandas de aliados prometidas durante a campanha eleitoral, o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à frente do Palácio do Planalto ainda escolhe nomes e realiza ajustes na estrutura de autarquias e empresas públicas, inclusive as que possuem incidência direta no Nordeste.
A estratégia adotada pelo mandatário aponta, inclusive, para a inserção de figuras que não estiveram em seu palanque durante o pleito. Em maio, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), comandada pelo ex-deputado federal e candidato derrotado ao governo de Pernambuco, Danilo Cabral (PSB-PE), aliado de Lula, passou a contar com dois apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL): o ex-deputado federal Heitor Freire (União-CE) e José Lindoso de Albuquerque Filho.
Freire passou a assumir a diretoria de Gestão de Fundos, Incentivos e de Atração de Investimentos, responsável pela análise da destinação de verbas dos programas do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE). Lindoso, por sua vez, assumiu a cadeira de diretor de Administração da instituição. Ambos chegaram à superintendência como indicados do União Brasil, partido do Centrão que negocia cargos em diversas instâncias do governo e tem sob sua tutela três ministérios.
O FNE, gerido pela Sudene em parceria com o Banco do Nordeste, é o principal instrumento financeiro da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) para a região. É dele que saem os valores que fomentam atividades produtivas de diversos setores da economia, como o agropecuário, industrial, agroindustrial, turismo, comércio, serviços, cultural e infraestrutura. O orçamento previsto para o fundo em 2023 é de R$ 34,61 bilhões.
O Diário do Nordeste contatou Heitor Freire por meio de mensagens de texto. Contudo, o ex-representante do Ceará na Câmara dos Deputados não respondeu aos questionamentos.
Movimentações também expressivas aconteceram no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) um mês antes, em abril, quando 19 superintendências em estados brasileiros passaram a ter novos titulares. No Nordeste, a "dança das cadeiras" ocorreu em oito das nove chefias estaduais. As mudanças ocorreram após uma onda de ocupações e protestos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), grupo da base do Partido dos Trabalhadores e principal interessado nas ações do órgão.
Naquela ocasião, embora tenha sido alvo de pressões do MST, o único superintendente nordestino que permaneceu no cargo foi Wilson Cesar de Lira, do Incra de Alagoas, primo do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Ele está no posto desde o governo de Michel Temer (MDB). Os atos dos movimentos sociais exigindo a exoneração do atual superintendente incluíram a ocupação da sede do órgão no estado.
Criado pelo Regime Militar durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici, em 1970, o Incra é quem promove a política de regularização fundiária no país. Nos anos em que Bolsonaro esteve no poder, a instituição teve seu cofre estrangulado, as atividades de desapropriação de propriedades e assentamentos de famílias foram zeradas e substituídas pela concessão de títulos de posse. Em 2022, último ano da gestão anterior, a entrega destes instrumentos chegou a ser suspensa. As mobilizações do MST tentam reverter o esvaziamento.
Capilaridade e tamanho dos órgãos disputados
Os casos citados ilustram não somente uma disputa vista em outras unidades, empresas públicas e divisões, como também mostram o poder de realização de entrega que tais máquinas têm nos estados e municípios que estão no raio de atuação delas. Vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional, a atuação da Sudene contempla 2.074 municípios, localizados em estados do Nordeste, em Minas Gerais e no Espírito Santo.
A cobiça por órgãos estatais situados no território nordestino teve início logo nos primeiros meses de montagem do atual governo. Além dos já citados, foram disputadas vagas na gestão do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) e da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), pelo União Brasil; nas superintendências do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), por governistas e movimentos; e pela permanência da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), por membros do Centrão.
Segundo o cientista político e professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Cláudio André, tais órgãos são caros aos políticos porque delineiam políticas públicas que têm uma relação direta com as gestões municipais.
"O que elas fazem é exatamente conseguir chegar na ponta, do ponto de vista da governança e da aplicação de recursos orçamentários que impactam diretamente na ação das prefeituras, portanto nas bases eleitorais que esses políticos têm relação direta", pontua, salientando que as assimetrias econômicas da região influenciam nesta estruturação.
Assim como a Sudene, a Codevasf e o Dnocs possuem orçamentos robustos. Juntas, as duas instâncias acumulam, segundo a previsão orçamentária deste ano, cerca de R$ 3,1 bi, volume financeiro impulsionado em grande parte pelo direcionamento de emendas por parlamentares com bases eleitorais situadas em cidades onde tais organismos governamentais atuam. Durante o Governo Bolsonaro, ambos os órgãos foram destinatários do chamado "Orçamento Secreto".
O interesse no direcionamento de montantes via emendas é expediente recorrente dos congressistas. A frequência com que ele é usado, salienta a professora Priscila Lapa, doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), se dá pela forma como são percebidas as transferências: "As emendas são hoje um mecanismo tão valioso ou até mais valioso do que os cargos em si. Não que não fossem no passado, mas hoje ganhou muita relevância, pela expansão dos mecanismos e capacidade de interferência no orçamento público".
"Essas estatais têm uma relação local forte, os prefeitos e vereadores conseguem facilmente identificar de que forma os recursos foram alocados, mas não existe um controle social claro sobre elas. As pessoas em geral sabem de forma muito remota o que cada estatal dessa executa e entrega para a população', considera Lapa.
Com atribuições que vão desde a realização de ações de apoio à produção até obras de infraestrutura nas localidades em que está inserida, a estatal é comandada pelo grupo ligado ao líder do União Brasil na Câmara, o baiano Elmar Nascimento, e ocupou o noticiário nos últimos anos por conta de suspeitas de corrupção. Um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU), divulgado em julho do ano passado, indicou sobrepreço e falta de planejamento em licitações para a compra de tubos na Bahia.
Durante os primeiros meses deste ano, a situação se repetiu e outro relatório apontou para a existência de indícios de superfaturamento e irregularidades em licitações para a pavimentação de vias na Bahia, em Sergipe e no Amapá, e uma auditoria diagnosticou falhas nos critérios de distribuição e na fiscalização de equipamentos doados pelo governo federal, ao encontrar um caminhão, um trator e caixas d'água na fazenda de um vereador do União Brasil no município de Cocos (BA).
Visando coibir ocorrências de mau uso do dinheiro público, a Controladoria Geral da União (CGU) criou, em maio, o Prisma. Inicialmente implementado na Codevasf e no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Ministério da Educação, o programa ainda opera como um piloto e deverá ser expandido para outros eixos da administração pública federal.
No caso do Dnocs, que junto com o Banco do Nordeste é o principal órgão federal no estado do Ceará, as coordenações estaduais seguem a mesma lógica das demais. A presença do atual diretor-geral, Fernando Marcondes de Araújo Leão, no cargo é mais uma prova da capacidade de articulação do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), com relação à alocação de pessoas próximas em cargos do Executivo federal.
Exonerado em 1º de janeiro pelo presidente Lula, Leão foi readmitido treze dias depois, por intervenção de Lira. As coordenações do órgão de enfrentamento à seca nos estados nordestinos também obedecem ao mesmo modo de organização.
O Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que também tem expressividade na aprovação de pautas no Legislativo, caminha na mesma esteira de negociações pautando nomeações no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), gerido pelo Ministério dos Transportes, do emedebista e ex-governador alagoano Renan Filho. Entre abril e o início de julho deste ano, sete superintendências regionais do departamento no Nordeste tiveram suas chefias substituídas.
Neste período citado, foram trocados em razão de indicações políticas do MDB e do Partido Social Democrático (PSD) os superintendentes do DNIT nos estados de Alagoas, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, Sergipe, Bahia e Pernambuco. Entre chegadas e partidas, apenas foram mantidos os responsáveis pelas divisões estaduais do departamento no Maranhão e no Piauí.
Disputas são comuns a outros partidos aliados
Embates que se equilibram entre a conciliação entre setores podem ser vistos neste estágio da administração federal sob a batuta do presidente Lula (PT), como na escolha de figuras do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), cujas atribuições impactam diretamente no setor econômico e também nos interesses de ambientalistas que historicamente simpatizam com as pautas lulistas.
Na região Nordeste, quatro substituições foram feitas nas chefias do Ibama no Piauí, Ceará, Sergipe e Maranhão. Todas as pessoas estão ligadas a partidos políticos de esquerda. As alterações acontecem também nas demais representações estaduais e buscam adequar o perfil de cada uma delas ao do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), da ministra e deputada federal licenciada Marina Silva (Rede).
Escolhido nesta leva, o superintendente do Ibama no Ceará, o ex-vereador Deodato Ramalho (PT) disse encarar o ocorrido como algo "natural dentro do processo democrático". "Quando você tem uma proposta de governo que sai vitoriosa, evidentemente, os órgãos dirigente vão ser ocupados por quadros que tenham o perfil com a gestão que se inicia", reforça.
Embora só tenha chegado depois, ele afirma que essa prerrogativa já estava sendo buscada antes, nos primeiros dias do ano: "No nosso caso, do Ibama, tínhamos um superintendente interino que já vinha tocando dentro desta pauta de compromissos do novo governo, isso foi em janeiro. Desde lá a gente já vem recuperando essa pauta ambiental que tinha sido desmontada no governo anterior".
"Nossa atuação vai estar dentro desse foco, desse objetivo, de retomar no Brasil uma pauta ambiental virtuosa, buscando recolocar a nação no cenário internacional como comprometida com a sustentabilidade e com o respeito a natureza", ressalta Ramalho, considerando que agora há um afinamento com a direção nacional do órgão e com o MMA.
Para o professor Cláudio André, dada a baixa capacidade de investimento das prefeituras e a necessidade de apoio dos governos estaduais e do governo federal, a ocupação dos espaços tem importância para as agremiações partidárias, independente do espectro político. Ele pondera, no entanto, que o modo com que isso é operado não é uma especificidade de políticos nordestinos. "Entendo que há outros cargos-chave que também são de interesse dos partidos no Sudeste e no Sul", reflete.
Especialista no assunto, ele diz acreditar que o marco de seis meses de mandato do Partido dos Trabalhadores no Planalto estreia uma nova fase e a adoção de uma estratégia muito mais negociada. "O governo Lula começou com uma governabilidade transitória, colocada para um gabinete ministerial que a gente sabia que não representava, não tinha o retrato da maioria do Congresso, conforme a lógica do presidencialismo de coalizão. E o governo só passa a abrir essa negociação depois de seis meses", disse, comparando a situação a um "test-drive".
A recriação da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) é sintomática destas tratativas. Extinta através de uma medida provisória publicada por Lula em janeiro, a repartição foi resgatada em junho pelos parlamentares, que alteraram o texto de outra medida, a de reestruturação da Esplanada. Após a manobra, Alexandre Ribeiro Motta, funcionário de carreira, foi alçado à presidência interina até a conclusão da reformulação da fundação. A organização pública que toca ações de saneamento básico e saúde ambiental é visada pela classe política pela abrangência nacional e pelo potencial de aplicação direta de recursos.
PP e PSD disputam a direção da Fundação. No Ceará, há uma indicação clara para o cargo, o ex-vice-governador Domingos Filho (PSD). Ele mesmo admitiu que está escalado para a função, em entrevista ao colunista Wagner Mendes.
De acordo com o estudioso, a presentificação política de Lula e dos aliados que buscam obter dividendos políticos a partir da ocupação de cargos antecipa, sobretudo, a costura de acordos e a preparação de players competitivos nas disputas de 2024 e 2026, dois próximos pleitos eleitorais.
"Agora, depois da perspectiva da economia, da melhora da imagem do governo, da estabilidade política nacional e internacional, o Centrão senta na mesa para negociar. É muito importante perceber que, apesar do controle do orçamento hoje ser exercido pelo Legislativo, é muito interessante estar no governo, aliar um manejo mais direto e projetar lideranças políticas", complementa.
O poderio da Caixa Econômica Federal (CEF), banco público federal distribuído por todo o país e com habilitação para o financiamento e a formalização de convênios para obras e ações, entrou no raio e é vislumbrado por essa bancada mais ao centro. Em março, a CEF criou outro mecanismo que ampliou ainda mais a aproximação com os entes públicos, as Salas de Cidades e Estados.
Ao todo, foram criados inicialmente 13 espaços físicos, com a promessa de que seriam inaugurados outros de forma gradativa. Os locais são dedicados ao atendimento técnico, institucional e negocial de prefeituras e governos estaduais. Especulações dão conta de negociações para a saída da presidenta, Rita Serrano, para dar lugar a um quadro técnico indicado pelos partidos de sustentação.
Fase remonta acontecimentos do passado
A pressão de siglas como PSD, União Brasil e PP remonta a mesma que foi exercida pelo MDB e sua grande bancada de parlamentares em 2004, na busca por espaços na Esplanada dos Ministérios. A situação causou a primeira reforma ministerial da primeira passagem de Lula pela cadeira de presidente da República. Agora, em 2023, o petista tende a fazer uma nova reformulação.
Priscila Lapa atribui a proeminência desta ala partidária a transformações no processo político brasileiro ocorridas a partir de 2018. "Houve uma reorganização dentro da cena partidária, com conquista de espaços por algumas legendas até então consideradas menores e outras foram perdendo protagonismo. Isso é muito característico de momentos de transição de ciclos políticos", considera a docente.
"O União Brasil e o PP agregam alguns requisitos importantes, como grande capilaridade no território nacional e muito recurso partidário e eleitoral. Com isso, conseguem ter poder de barganha com governos e compor maiorias em casas legislativas. São partidos hoje sem maiores compromissos com agendas ideológicas características da polarização atual e por isso souberam fazer o caminho do "meio" entre o lulismo e o bolsonarismo", complementa.
Ela enfatiza que, assim como nas outras duas temporadas do Executivo sob a batuta do petista, o Nordeste passou a ter uma evidência dentro do contexto nacional e os conflitos por protagonismo regional ficaram mais acirrados. Entretanto, na avaliação dela, a definição de cargos em decorrência de critérios políticos se dá em condições arriscadas. "Sempre que há a sobreposição dos interesses políticos, a dinâmica da produção de políticas públicas tende a ser prejudicada. Não significa que sempre será, mas o risco é muito alto, até porque falta controle social e transparência", finaliza.
As assessorias de comunicação da Secretaria de Relações Institucionais e da Casa Civil da Presidência da República - a quem compete, respectivamente, o apoio ao presidente Lula na atuação funcional, política e institucional e na gestão dos órgãos e entidades do governo - foram procuradas pela reportagem para prestar esclarecimentos sobre quais medidas são adotadas para a nomeação de empresas estatais e demais autarquias citadas, bem como como esclarecer as possíveis interferências na gestão de políticas públicas. Não houve retorno até a publicação desta matéria.