Vender 'fiado' está cada vez mais raro nos mercadinhos de Fortaleza: 'era muito prejuízo'

Diversos fatores contribuíram para acabar com a modalidade baseada na confiança

Escrito por Bruna Damasceno , bruna.damasceno@svm.com.br
Folha de pauta com a frase: Não vendemos fiado. Não insista.
Legenda: A venda fiado causou prejuízos aos mercadinhos que já enfrentam concorrência de grandes supermercados
Foto: Fabiane de Paula / SVM

As ‘bodegas’ de bairro resistiram ao boom de supermercados e à popularização do cartão de crédito nas últimas décadas, mas precisaram desistir da venda fiado para sobreviverem. Hoje, as cadernetas podem até dividir o espaço do balcão com baleiros e balanças, mas só são usadas para atender a uma rareada clientela fiel. 

Segundo a Associação Brasileira de Supermercados (Abras), o Ceará tem, pelo menos, 195 grandes empresas do setor para concorrer com essas mercearias. A entidade também calcula que o cartão de crédito foi a forma de pagamento mais utilizada (29,6%) pelos consumidores brasileiros em 2021. 

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Depois, foi o dinheiro (27,4%) e o débito (22,4%). Já outras modalidades que não envolvem tecnologia ou cheque correspondem a apenas 2,1%. Além da maior oferta de negócios e das mudanças de comportamento, a inflação dos alimentos em dois dígitos afastou parte dos clientes dos mercadinhos. 

Nesse contexto, os pequenos empreendedores relatam que a caderneta teve de ser eliminada para amortecer as perdas financeiras. Sebastião Andrade, de 65 anos, que tem um mercadinho há quatro décadas, no bairro Mondubim, em Fortaleza, já não vende fiado há 20 anos nem aderiu a outros modelos de crédito.

“Primeiro, fomos tirando do caderno quem não pagava. Depois, ficaram umas 10 pessoas que a gente conhece mesmo e sabe que paga. Só que antes o pagamento ficava para o mês, agora é por quinzena”, diferencia. 

Legenda: No Mondubim, mercearia aberta há 40 anos conserva boa parte do mobiliário e das práticas de quando começou as atividades
Foto: Thiago Gadelha

Ele destaca que os fregueses também reduziram o consumo desde o início da pandemia de Covid-19, em 2020. Atualmente, lista, as compras são miudezas: cigarro, balinhas, um quilo ou outro de alimento e de industrializados. “Com a crise, as vendas diminuíram muito mais. Além disso, a maioria quer comprar no cartão, aí precisa ir para o ‘mercantil’ mesmo”, diz. 

No bairro Parangaba, a mercearia do Antônio de Souza, de 58 anos, resiste há duas décadas. Apesar de já aceitar cartão de crédito, não é possível parcelar. A caderneta também é para poucos. 

“Faz tempo que não vendo fiado. Muita gente pede, mas só temos mesmos uns oito fregueses que compram assim, porque são conhecidos”, explica. “Não temos mais condições de manter. Era muito prejuízo”, recorda, acrescentando que também perdeu clientes após alta dos alimentos.  

O coordenador do MBA em Gestão Financeira da Fundação Getulio Vargas (FGV), Ricardo Teixeira, analisa que o pagamento na base da confiança é uma herança comportamental de antigas gerações de consumidores e de comerciantes. 

“A venda ‘fiado’ deixou de ser uma prática comum nos grandes centros, com alta rotatividade e um risco muito maior de inadimplência e de calote do que aquele do passado, quando clientes e comerciantes interagiam 'olho no olho', conheciam as famílias e a seriedade de propósitos por décadas”, lembra.

“E, claro, os cartões de crédito também contribuíram para a migração do mercadinho para os supermercados”, completa.

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Consumidores passaram a evitar os mercadinhos para driblar a inflação

Ricardo Teixeira explica que os supermercados conseguem oferecer preços mais competitivos porque compram em grande escala, diferentemente dos pequenos negócios. Além disso, têm maior variedade e um ambiente mais organizado e agradável para atrair as compras por impulso.

A economista e vice-presidente do Conselho Regional de Economia do Ceará (Corecon), Desirée Mota, observa que o aumento da inflação e das taxas de juros também pressionaram mudanças de comportamento de consumo nos últimos anos, incluindo a demanda pelo ‘atacarejo’.

“Hoje, as pessoas fazem pesquisas e encontram supermercados mais vantajosos que os mercadinhos”, ressalta. Outro ponto, acrescenta, é que a pressão inflacionária aumenta a busca por pagamento via cartões de crédito. “E isso só é possível em supermercados maiores, porque eles têm um poder maior de barganha”, frisa. 

Relação com cliente é a chave que mantém as portas dos mercadinhos abertas

Legenda: Apesar de já aceitar cartão, o clima é mesmo de coisa antiga no Mercadinho São Matheus
Foto: Fabiane de Paula

O coordenador do MBA em Gestão Financeira da Fundação Getulio Vargas (FGV), Ricardo Teixeira, avalia que as compras em mercadinhos são feitas por conveniência, comodidade e por hábito.

Além disso, destaca, permitem uma experiência diferente das impessoais que ocorrem em estabelecimentos maiores.

“A compra nos pequenos estabelecimentos inclui a experiência da proximidade, da cumplicidade dos donos/gestores da marca do estabelecimento com seus clientes. Os clientes são fiéis e se preocupam com a sobrevivência da empresa e dos donos do comércio”, finaliza. 

 

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