O que o fim da escala 6x1 tem a ver com o crescimento da população? Entenda medida adotada em Tóquio
A professora de geografia Iana Soares, de 43 anos, viu-se obrigada a adiar o sonho da maternidade devido à extensa carga horária exigida pela profissão. “Após nove anos de carreira, precisei reduzir minha jornada para mudar os planos”, conta. Hoje, mãe de um menino de 7 anos, ela desistiu de ter o segundo filho pela mesma razão.
Foi considerando a necessidade de prevenir o desestímulo vivenciado por muitos trabalhadores, como o caso da cearense, que Tóquio decidiu adotar, a partir de abril de 2025, uma semana de trabalho de quatro dias.
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O objetivo da medida é proporcionar mais tempo para a vida pessoal, contribuindo assim para reverter a queda da taxa de natalidade, um problema enfrentado tanto pelo Japão quanto pelo Brasil. Diante desse cenário, questiona-se se o fim da escala 6x1, atualmente em discussão, também poderia ser uma solução eficaz para os brasileiros.
Para fontes especializadas, contudo, no contexto local, a redução da jornada de trabalho não seria suficiente para esse problema demográfico porque envolve questões mais complexas, como fatores culturais e, principalmente, a desigualdade de renda.
No Brasil, inclusive, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que propõe o modelo mais flexível justifica a mudança para priorizar “o equilíbrio entre vida profissional e pessoal”, com foco na saúde do trabalhador, mas não aborda diretamente taxas de natalidade, fecundidade e mortalidade.
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Por que o Ceará precisa olhar para esse aspecto na economia
A queda da taxa de natalidade pode levar ao envelhecimento populacional, sobrecarregando os sistemas de saúde e previdência e reduzindo a oferta de mão de obra.
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Segundo o doutor em Demografia e professor do Departamento de Estudos Interdisciplinares da Universidade Federal do Ceará (UFC), Julio Alfredo Romero, o Ceará passa por mudanças significativas, como a queda da taxa de fecundidade de 2,58 nos anos 2000 para 1,51 por mulher em 2023, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Acredita-se que essa tendência de queda se mantenha nas próximas décadas, atingindo um patamar ainda mais baixo, estimado em 1,4 filho por mulher entre 2034 e 2037”, observa.
Além da queda da taxa de fecundidade, aponta, o aumento da expectativa de vida também contribuiu para as mudanças demográficas no Ceará. Em 2000, a expectativa ao nascer era de 71,5 anos, enquanto em 2023 chegou a 77,1 anos, aproximadamente.
Diante dessas mudanças demográficas da população, o mercado de trabalho passará por um redesenho nos próximos anos. Conforme Romero, esse processo exigirá a implementação de políticas públicas como o incentivo à qualificação profissional para atender às novas demandas.
Por que o fim da escala 6X1 — sozinho — não reverterá a taxa de natalidade no Brasil
De acordo com Romero, o declínio da taxa de natalidade é resultado de um conjunto de fatores socioculturais complexos, e a jornada de trabalho, embora relevante, não é o fator determinante.
Ele pondera, contudo, que a flexibilização da escala proporcionaria uma melhor conciliação entre vida profissional e pessoal, especialmente para as mulheres, contribuindo indiretamente sobre as decisões reprodutivas.
“Alguns estudos sugerem que a oferta de creches e educação infantil de qualidade pode incentivar as pessoas a terem filhos, ao proporcionar maior segurança quanto ao futuro e à qualidade de vida que poderão oferecer a seus filhos”, avalia, destacando a necessidade de serviços públicos como política pública eficaz para aumentar a taxa de natalidade.
Mudança de paradigma social deve ser considerada
O doutor em Psicologia e professor do curso de Psicologia da UFC Sobral, Iratan Saboia, pondera que a decisão sobre ter filhos é multifatorial, envolvendo aspectos históricos, como as mudanças nos papéis de gênero e a motivação para formar uma família grande.
"Antigamente, os filhos funcionavam como força de trabalho para os pais, como era na sociedade rural, quando se tinha vários filhos para trabalhar na propriedade, cuidando dos animais, aumentando a capacidade produtiva e a renda da família", reflete.
“Hoje em dia isso não acontece. O filho se torna, na verdade, um investimento de longo prazo, porque se investe na saúde e na educação dessa criança até os 18, 20, 24 anos. Quando ele ingressar no mercado de trabalho, não irá retornar o dinheiro para a casa, mas para constituir sua própria vida. Então, isso é um paradigma muito diferente, que a mera diminuição da jornada do trabalho não consegue lidar”, compara.
Redução da jornada não tem o mesmo impacto econômico para população mais vulnerável
Saboia destaca que a jornada reduzida de trabalho impacta de forma desigual diferentes grupos populacionais. Mulheres, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade social, mães solo e com múltiplos filhos, enfrentam desafios adicionais.
“Vamos pensar que essa pessoa tem uma redução na jornada de trabalho. Você acha que essa pessoa vai ter mais tempo para cuidar dos filhos ou vai sobrepor uma nova carga de trabalho para poder ganhar um pouco mais para dar um pouco mais de conforto para essas crianças, a segunda hipótese é muito provável”, analisa.
“Se essa família tem uma alta vulnerabilidade, a tendência é sobrepor trabalho porque tem um problema anterior: a renda. Se não damos a condição miníma de subsistência, como está garantida na constituição de 1988, ela não tem como usufruir o tempo porque o problema real é comer, se vestir e morar, sendo a temporalidade do trabalho uma questão secundária”, reforça.
Outro ponto, acrescenta, é que a cultura japonesa, caracterizada por um individualismo mais introspectivo em comparação à latina, justifica a decisão de adotar jornadas de trabalho mais curtas para incentivar o engajamento na vida amorosa.
Além disso, a partir de setembro de 2025, Tóquio implementará uma política pública complementar ao oferecer creches gratuitas para crianças em idade pré-escolar.
O impacto da jornada e da renda para a decisão
A professora Iana, citada no início desta reportagem, optou por reduzir sua carga horária profissional para dedicar mais tempo ao filho. Com o intuito de complementar sua renda, iniciou a produção de doces nos finais de semana, atividade que mantém até os dias atuais.
Com uma rotina ainda intensa, ela, que mora em Cascavel, atua como professora em escolas localizadas nos municípios de Beberibe e Pindoretama, na Região Metropolitana de Fortaleza, ministrando aulas nos turnos matutino e vespertino, além de dedicar as noites aos estudos de uma segunda graduação.
“Tudo isso fez com que eu não quisesse ter mais filhos. A gente fica se preocupando com quem deixaria a criança, com tantas horas fora de casa. É preciso pensar em creche, alguém confiável que possa cuidar dela, é muito complicado”, relatou.