‘Eu não tinha sonhos’: cearenses alcançam mobilidade social por meio do ensino superior

Bolsas e programas de financiamento tornaram a realidade do diploma mais fácil por meio de instituições privadas

Escrito por Heloísa Vasconcelos , heloisa.vasconcelos@svm.com.br
Legenda: Leide Daiana conseguiu cursar serviço social por causa de uma bolsa de estudos
Foto: Thiago Gadelha

Aos 17 anos, é chegada a hora de fazer vestibular. Depois da prova, é cruzar os dedos para o estudo de todo um ano ter valido a pena, para enfim poder ter os cabelos raspados, o rosto pintado de tinta, e poder dizer com orgulho: passei na Federal. 

Essa história é o sonho de muitos, mas não é uma realidade que chega para todos. Apesar das vagas ainda limitadas nas universidades públicas, o aumento da disponibilidade de universidades particulares desde a década de 1970 tem tornado a peneira de passagem para o ensino superior menos fina. 

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A oportunidade de estudar em instituições particulares se tornou mais próxima com o surgimento de programas de bolsas e de financiamento estudantil. Isso permitiu histórias como as de Leide Daiana de Souza e Leide Daiane Silva que, por coincidência ou não, receberam seus nomes em referência à princesa Diana. 

As duas "Leides" desta reportagem conseguiram mudar a trajetória de vida delas e de suas famílias por meio da educação. E, assim como a primeira Lady Di, elas usam hoje seus conhecimentos adquiridos para causas sociais. 

Em busca de voos mais altos 

Hoje gerente em sustentabilidade com foco em responsabilidade social em uma empresa na Alemanha, Leide Daiane Silva, de 31 anos, não tinha sonhos em certo momento da sua vida. De família simples, moradora do bairro Bom Sucesso, em Fortaleza, ela não tentou entrar numa graduação quando terminou o ensino médio. 

A oportunidade de ingressar na faculdade veio em 2016. Ela conseguiu cerca de 95% de financiamento do curso por meio do Fies e começou a cursar Administração no período noturno. 

“Eu comecei a estudar, trabalhava o dia todo e estudava a noite e eu era apaixonada pelos projetos, como os professores eram envolvidos com a gente. Muitos dos meus professores foram meus mentores, não era só ir para aula e ver a matéria, me senti muito apoiada nesse sentido. Vindo da situação que eu vinha, eu não era que nem os outros alunos, meus pais não pagavam universidade, eu não tinha carro. Mas fui colocada em um ambiente que eu fiz amigos que tinham uma situação diferente da minha”, lembra. 

Após alguns semestres, ela descobriu que a universidade em que ela estudava proporcionava a oportunidade de cursar um ano fora do País, podendo ela receber uma dupla titulação, dois diplomas. 

Então, Leide passou um ano estudando inglês e levantou uma campanha chamada “Leide em Berlim”, que conseguiu arrecadar 60 mil reais para estudar um ano na Alemanha. E assim ela se tornou a primeira pessoa de sua família a sair do País, uma oportunidade que sequer era imaginada. 

Na universidade, ela descobriu que seu verdadeiro propósito de vida era trabalhar com sustentabilidade. Após se formar em 2020, ela voltou para a Alemanha para fazer mestrado e hoje trabalha lá, justamente nessa área.  

Antes meus sonhos eram a muito curto prazo. Quando eu trabalhava no Brasil, nesse emprego que eu tive, me perguntaram meu plano daqui a 5 anos, e eu não tinha. Eu estava muito na questão da sobrevivência, de ter que me manter. Não tinha propósito de vida, não tinha espaço para isso. Mas quando eu entrei na universidade eu comecei a ter, isso foi despertado em mim. Eu comecei a pensar no que eu queria e comecei essa jornada, comecei a sonhar. Depois veio o sonho de vir para fora, de aprender uma outra língua, e depois o sonho de trabalhar com sustentabilidade”.
Leide Daiane Silva
Gerente em sustentabilidade com foco em responsabilidade social

Hoje, entre seus sonhos, está levar os pais para conhecer o país onde mora. Ganhando em euro, ela consegue todos os meses mandar uma ajuda para a família e já até conseguiu levar a irmã para conhecer Berlim. 

“Hoje em dia eu tenho vários sonhos. A ideia é que eu possa continuar trabalhando naquilo que eu gosto, que é essa área de direitos humanos. Meu plano é continuar estudando, quero fazer um Ph.D. no futuro e ser professora universitária, quero ensinar isso que eu vivo, minha área de trabalho. Minha ideia é devolver de alguma forma. Acho que a educação é a resposta a longo prazo para todo e qualquer problema que a humanidade tem”, diz. 

Legenda: Daiane mora na Alemanha e trabalha na área de sustentabilidade
Foto: Arquivo pessoal

As parcelas do Fies ainda devem ser pagas por alguns anos, mas Leide conta que esse é um boleto que ela paga com a maior felicidade do mundo. Porque, hoje, ela pode pagar.  

“A educação para mim foi a minha forma de alavancar minha vida para outro patamar. A qualidade de vida que eu tenho hoje em comparação a minha vida no passado, antes e depois da universidade, é tipo [uma virada de] 360º. Hoje eu tenho muito mais controle da minha vida, enquanto antes eu era muito mais dependente das condições ao meu redor”, conta. 

Retribuir de onde veio 

A assistente social Leide Daiana de Souza, de 36 anos, teve de interromper seus estudos cedo. Mãe na adolescência, ela teve seu primeiro filho com 15 anos e o segundo com 18.  

Aos 20 anos ela decidiu retomar o ensino médio no bairro onde ela morava, em Caucaia, Região Metropolitana de Fortaleza. Todos os dias, ela preparava o lanche das duas crianças e levava os dois para a escola com ela, onde assistia às aulas das 19 até as 22 horas. 

A sua nota no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deu a ela uma bolsa de 50% em uma faculdade particular. Seu então marido e pai dos seus filhos a apoiou pagando o restante e, assim, ela conseguiu cursar Serviço Social. 

Legenda: Leide teve de abandonar os estudos cedo por causa da gravidez na adolescência
Foto: Thiago Gadelha

A escolha pelo Serviço Social se deu por esse ser um dos poucos cursos que a faculdade oferecia. Ela reconheceu seu lugar na profissão quando começou a estagiar, após dois anos de curso. 

“Fiz todo o trabalho de pesquisadora de campo, desenvolvi trabalhos aqui nos bairros que contemplam a Regional 5, que são 8 comunidades carentes. Siqueira, Planalto Vitória, Canindezinho. Todas essas comunidades eu passava e fazia um trabalho social com os moradores. Passei 8 anos praticamente nesse projeto, entrei como bolsista e cheguei a ser coordenadora. Aí concluí a faculdade, saí de lá e me encontrei na profissão, porque eu tinha a vivência da profissão no dia a dia, porque a minha lida era no campo todo dia com o povo”, lembra. 

Além do diploma, ela já concluiu uma pós-graduação e está começando a germinar um projeto de pesquisa para entrar no mestrado. Ela acredita que a educação é o que mudou sua vida e é o que ela pode deixar para seus filhos. 

A gente que vive do lado de cá, na periferia, nós não temos herança. Nossos pais vão morrer e não vão deixar nada, só os estudos. E é isso que eu tenho muito claro, que deixo para os meus filhos, o conhecimento que se dá e que ninguém pode tirar é através dos estudos. É o seu bem precioso, é ele quem vai te levantar, é ele quem não vai acordar algum dia e dizer que não te quer mais e ir embora”.
Leide Daiana de Souza
Assistente social

Já separada de seu primeiro marido, hoje ela mora sozinha com sua filha de 5 anos, em um apartamento que ela mesma conseguiu comprar, com seu trabalho. Esse era um dos seus sonhos que ela já conseguiu realizar. 

Legenda: Um de seus planos é começar um mestrado na Uece
Foto: Thiago Gadelha

Ela se lembra das dificuldades que teve ao longo da graduação, mas agradece à Leide do passado por não ter deixado a oportunidade passar lá em 2012. 

“Se eu te disser que foi fácil, não foi. Porque foram muitos trabalhos, seminários, por quatro anos, eu tinha duas crianças e morava muito longe da faculdade. Eu saía todo dia de casa 5h45min para 8 horas da manhã eu estar chegando na faculdade para assistir a primeira aula. A minha aula terminava meio-dia, e meio-dia eu ia para o estágio, o estágio terminava 17 horas e eu só chegava em casa 19 horas. Minha rotina era essa, era cansativa, era exaustiva. Mas assim, quando eu lembro todo o caminho que eu percorri, eu só agradeço, é só gratidão a Deus. Porque se eu não tivesse agarrado aquela oportunidade, com certeza eu não estaria aqui, eu não estaria desenvolvendo esse trabalho nas comunidades, conhecendo tão bem as comunidades como eu conheço”, narra. 

Recentemente, Leide passou em um processo seletivo importante para um cargo público. E, por uma paixão ao seu propósito transmitida em seu olhar de forma quase palpável, ela segue.  

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