Empreendedora do sertão do Ceará cria doce de leite de coco para resgatar produção regional
Com produção que respeita as safras regionais, cearense criou projeto de valorização da doceria cearense

Criar um doce de leite genuinamente cearense. Essa era a pretensão da socióloga e doceira Rafaela Medeiros, natural de Pedra Branca, no Ceará, ao perceber que os sabores da sua infância não estavam presentes no cotidiano de Fortaleza. O que surgiu a partir daí foi o Leite de Pedra, produto que conquistou clientes em outros estados e países.
Assim como outros milhares, a jovem saiu da cidade no sertão cearense para estudar e trabalhar na Capital. Ela atuou em diversas cozinhas e confeitarias, sempre notando a falta de ingredientes típicos da agricultura familiar cearense.
“Criei em casa o que seria um tipo de 'leite condensado cearense', que pudesse fortalecer a identidade doce do Ceará, valorizando as práticas do comer e fazer no engenho de rapadura doméstico”, lembra a empreendedora sobre o início do projeto, em 2018.
A receita de Rafaela evoluiu para um doce de leite com base em dois ingredientes: leite de coco natural e mel de cana-de-açúcar. Remetendo à cidade natal, batizou o produto de Leite de Pedra.
O incentivo para criar o próprio doce veio de um projeto de pesquisa sobre doçaria cearense, realizado na Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco.
Ao lado do parceiro de pesquisa, ela buscou catalogar os doces feitos com mel de cana e coco no sertão de Pedra Branca até o litoral da Capital, apoiando a produção familiar.
“Minha família foi uma forte influência, já que meu avô Zeca Medeiros foi um agricultor reconhecido na produção de rapadura de Pedra Branca e também por eu
ser a quarta geração de doceira da minha família materna”, conta.
O Leite de Pedra viaja de norte a sul do Brasil e já chegou a outros países, como Chile, Portugal e França. No território brasileiro, é consumido principalmente Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Bahia.
O doce é procurado por um público diverso, entre confeitarias, cafés e restaurantes de gastronomia brasileira.
“Nosso principal público são estudantes, pesquisadores e trabalhadores da alimentação, com foco em incentivar a preservação e a importância da sabedoria do povo trabalhador para o meio ambiente e as culturas alimentares”, avalia a cozinheira.
MAIS DE 50 SABORES, RESPEITANDO A SAZONALIDADE
O doce de leite 'tipicamente cearense' não tem conservantes químicos, leite, lactose ou glúten. É um processo de produção bem pensado, e não uma mistura de ingredientes que se encontram no supermercado.
A iguaria fica de 8h às 15h no fogo, demorando até três dias para ser feito no tacho e chegar ao pote. “Eu faço todos os processos de preparo: desde quebrar e ralar o coco, até ter contato com produtores locais e de outras regiões do Brasil, em busca de mel de engenho”, explica Rafaela.
O doce de leite de coco cremoso também recebe outras versões, como o cacau (brigadeiro com cacau 100%, finalizado com sementes de cacau agroecológico) e o pingado (doce de leite com café especial, puxuri e cumaru da Amazônia).
Há também incrementos naturais ao doce, como castanha de caju, baunilha do cerrado, chocolate branco de mandioca, amendoim, entre outros.
“Alguns desses sabores com frutas nativas são: o Leite de Pedra com pedaços de coco catolé e o sabor “Marakajá”, um sabor mais cítrico, que é o Leite de Pedra criado em homenagem ao gato-maracajá (Leopardus wiedii) feito com maracujá da caatinga e pedaços de chocolate amazônico com cupuaçu desidratado”, aponta.
Já foram criados mais de 50 sabores do doce, seguindo um cardápio sazonal, que varia conforme às safras. O objetivo do projeto é criar uma educação alimentar a partir da produção por plantas nativas do bioma.
“Existe um planejamento de colheita que respeita a sazonalidade da caatinga, bioma nativo da nossa região, possibilitando a criação de sabores que valorizem as práticas sociais e a preservação da natureza”
Cozinhar através do 'calendário da terra' remete a uma realidade que já não existe mais no contexto urbano. A doceira reitera que cada safra do doce é única e que isso tem se intensificado com a crise climática, que deixa insumos mais caros e inacessíveis.
PESQUISA DE DOÇARIA POPULAR
Tirar leite de pedra é metáfora para alcançar o que parece impossível. Na realidade de Rafaela Medeiros, a produção do doce de leite de coco foi ferramenta para isso: se dedicar aos estudos.
“Minha família descende de agricultores do interior. E apesar de haver alguns professores, a educação nunca foi um valor de dedicação. Por isso tive que migrar para a capital e tentar a vida conciliando a carteira assinada e a cadeira da sala de aula”, lembra.
A produção do doce surgiu para sustentar os estudos e retomar a pesquisa científica sobre doçaria regional. Com o avanço do projeto, a pesquisadora conseguiu ultrapassar as barreiras de Pedra Branca e descobrir também a diversidade brasileira.
Rafaela destaca a necessidade de valorizar a produção tradicional do sertão, do produtor de rapadura à pequena doceira.
“Os mestres da cultura, se não possuírem auxílio por meio de incentivos à cultura, têm que abandonar seus ofícios como profissão. Sem uma proteção, o artesão está sempre à margem de não arrecadar o suficiente para se sustentar do seu ofício”, alerta.
Além do doce, Rafaela comercializa jornais e cartas sobre a pesquisa de doçaria popular brasileira.
A expansão do projeto depende do avanço das práticas e estudos. O projeto tem um destino: se aprofundar nas questões profissionais da produção de cultura e ciência.