Como os Tribunais de Contas impactam o desenvolvimento econômico de estados e municípios

Reportagem especial traz um caso de isenção tributária voltada para privilegiar servidores municipais para exemplificar como os Tribunais de Contas podem agir para coibir a má gestão de recursos públicos

Escrito por Bruna Damasceno , bruna.damasceno@svm.com.br
Fachada do TCE
Legenda: Em 2023, o Tribunal de Contas do Estado do Ceará chegou aos 88 anos
Foto: Ismael Soares /SVM

Já pensou como seria não precisar mais pagar IPTU? Não é um desejo realizável no Brasil, exceto os casos de isenção social e imunidade tributária. No Ceará, contudo, servidores municipais, inclusive comissionados — categorias com essa obrigação perante a lei —, foram dispensados do pagamento pelas gestões de Aquiraz, Eusébio, Fortaleza e Juazeiro do Norte, totalizando perda de R$ 25,1 milhões aos cofres desses municípios.

A Capital, que pratica a desoneração considerada inconstitucional desde 1972, detém a maior fatia do montante (R$ 24,9 milhões). O feito foi identificado por uma fiscalização do Tribunal de Contas do Ceará (TCE), em 2021, quando o órgão recomendou a suspensão do privilégio, entre outras medidas.

A vantagem financeira foi concedida nos anos de 2020 e 2021, período crítico para as contas públicas em razão da pandemia de Covid-19. Além do IPTU, três das quatro gestões citadas (ver infográfico) abriram mão da cobrança do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) de servidores públicos, somando R$ 3,7 milhões.

Segundo o secretário de Controle Externo do TCE, Carlos Nascimento, os municípios fiscalizados chegaram a instituir leis para conceder o benefício. 

“Ao praticar essa isenção, deixa-se de arrecadar. No nosso entendimento, isso não poderia ser feito por ser uma renúncia de receita ilegal”, observa. “Utilizamos a própria constituição, que diz não haver tratamento diferenciado para os servidores públicos em relação à arrecadação de tributos”, completa, citando o artigo 50, inciso II, da Constituição Federal de 1988. 

Nascimento enfatiza que as medidas não beneficiaram a sociedade, como ocorre com isenções fiscais voltadas para atração de investimentos, cuja expectativa de retorno abrange geração de emprego e renda nas regiões incentivadas. 

Um entre tantos, o caso foi registrado em um passado recente, mas demonstra uma demanda atual e constante pela fiscalização de práticas ilegais, controle e eficiência das verbas de estados e municípios. Em 2022, o TCE identificou a utilização indevida do Sistema de Preços (SRP) para execução de obras no Estado. Com isso, mais de R$ 600 mil foram devolvidos pelas empresas aos cofres municipais e R$ 132 milhões de licitações foram revogadas ou anuladas. 

Situação semelhante foi encontrada nos recursos para o transporte, merenda escolar e material didático de colégios de 10 cidades cearenses, também em 2022. Foi recomendada a devolução de R$ 400 mil e o reajuste de R$ 120 mil para evitar superfaturamento.

Agora, em 2023, o TCE estima fiscalizar R$ 14 bilhões em 70 municípios cearenses, incluindo 14 secretarias. Para fontes especializadas, essa atuação dos Tribunais de Contas é crucial para coibir má gestão, fraude e corrupção, além da eficiência do dinheiro público, contribuindo com o desenvolvimento econômico regional.

Qual o impacto dessa renúncia fiscal para a população?

Fachada da Sefin
Legenda: O valor deixado de arrecadar com apenas uma taxa pode até não ser considerado representativo a depender do orçamento de algumas cidades. Fortaleza, por exemplo, teve R$ 10,7 bilhões para investir em 2023, conforme a Projeto de Lei Orçamentária Anual (POA). Os R$ 24 milhões que deixaram de ser recolhidos pela Capital parecem baixo diante desse montante, mas isso não deixa de significar menos dinheiro em caixa para a prestação de serviços públicos
Foto: Thiago Gadelha / SVM

O pagamento de impostos é dever de todos. É por meio dessa contribuição que os governos obtêm verbas para áreas prioritárias, como saúde e educação. Atualmente, os tributos de competência municipal são três: IPTU, ITBI e o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS).

Conforme o doutor em economia e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Joseph Vasconcelos, a receita oriunda do IPTU é uma das maiores fontes de arrecadação própria que uma cidade possui.

“Conceder isenções nessa modalidade de tributo pode desequilibrar o orçamento municipal e impactar na saúde financeira dos municípios que tomam este tipo de decisão”, explica. 
Joseph Vasconcelos
Doutor em economia e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Pelas regras atuais, o IPTU não tem destinação obrigatória. Assim, o montante recolhido com esse tributo entra no bolo da captação de recursos municipais. Ou seja, quando ocorre a desidratação de um imposto, o valor total no caixa reduz e, consequentemente, a capacidade de financiar melhorias de serviços e de infraestrutura pública também. 

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Para Vasconcelos, o instrumento de renúncias fiscal requer cautela e deve ser usado de maneira estratégica para incentivar os setores produtivos na promoção de mais atividade econômica e gerar compensação no futuro. 

“Não me parece que a decisão em relação ao IPTU tomada por esses municípios venha nesse sentido, muito pelo contrário, parece mais uma medida para atender a uma pressão de determinado grupo social”, avalia. 

“Do ponto de vista do equilíbrio das contas públicas, o efeito é ainda mais grave pelo fato do período definido para tal ação se tratar de um momento em que os gastos com a pandemia foram ainda maiores”, observa.
Joseph Vasconcelos
Doutor em economia e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

No Brasil, a população de baixa renda, idosos, órfãs e outras pessoas em situação de vulnerabilidade têm direito à isenção do IPTU, a depender da legislação municipal, além da imunidade tributária concedida a templos religiosos. 

O que dizem as prefeituras sobre o caso

Em nota, a prefeitura de Fortaleza disse ter sido notificada, em 16 de novembro de 2022, "para prestar esclarecimentos acerca da concessão de isenção fiscal dos tributos IPTU e ITBI para servidores públicos, desde 1972".

"As razões de justificativa foram enviadas em 05 de janeiro deste ano e, ainda, não houve decisão por parte do Tribunal até a presente data", afirma (leia nota completa no fim da matéria).  Segundo a prefeitura, as renúncias já estão incorporadas à previsão de receita estabelecida na Lei Orçamentária, "de modo que não exercem impacto adverso sobre os resultados fiscais de Fortaleza". 

Já a gestão de Eusébio informou ter tomado as devidas providências, enviado à Câmara Municipal e ao Tribunal de Contas, que acatou e arquivou o processo. A reportagem não conseguiu contato e nem obteve retorno de e-mail enviado para Juazeiro do Norte até a publicação desta matéria. No site do município, uma nota informa a suspensão do privilégio. Aquiraz não enviou um pronunciamento sobre o caso até o momento.  

A guarda da lei e os impactos na economia 

O professor de Economia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Diego Carneiro, explica haver dispositivos legais para limitar as ações de quem exerce poder em nome da população, como a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e o arcabouço fiscal — substituído pelo teto de gastos. 

“Todos esses mecanismos atuam no sentido de impedir o gestor de cometer alguma imprudência fiscal que prejudique o fornecimento dos serviços públicos no futuro. Para além desses instrumentos, precisamos de um sistema para garantir o cumprimento das suas regras”, analisa. 

Para o economista, além da participação da sociedade no controle de gastos dos governos, são necessárias instituições para desempenhar esse trabalho, como o Ministério Público e os Tribunais de Contas, cujo foco é a auditoria financeira das finanças públicas.

Ele acrescenta que essa atuação contribui para a saúde econômica das cidades, sobretudo das menores, onde o setor público tem grande importância para a economia local. “Desse modo, se houver algum problema de sustentabilidade, se a prefeitura não tiver recurso para pagar a folha salarial, por exemplo, isso terá um impacto significativo sobre os demais elos da cadeia produtiva desse município”, destaca.

“Isso gera repercussões sobre o comércio, com redução da demanda e as demais atividades que dependem desses recursos. Então, o papel dos Tribunais de Contas, nesses casos, é garantir ou evitar chegar numa situação de insolvência”, completa. 

Outro ponto, lista, está relacionado à eficiência do uso do dinheiro público, permitindo prestar uma maior quantidade de serviços a um menor custo, além do controle da alocação de gastos prevista na LRF. “As prefeituras normalmente usam subterfúgios para poder contratar mais pessoas. Por exemplo, utilizam a contratação de serviços de terceiros, mas a terceirização não é considerada na folha de pagamento”, exemplifica. 

“Os tribunais devem estar o tempo todo se atualizando para antever situações de possíveis descumprimentos da legislação, que, às vezes, não é expresso, mas é tácito, ou seja, o espírito da lei foi violado”, frisa. 
Diego Carneiro
Doutor em economia e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC)

O professor observa que outra fonte de problemas em todos os órgãos são as licitações, sobretudo nas prefeituras. “Pode haver direcionamento de licitação, alguns municípios têm poucas empresas, inclusive. Não é incomum ouvirmos falar em casos de corrupção envolvendo obras etc. Então, são situações em que os Tribunais de Contas devem atuar também com atenção redobrada”, sublinha.

O presidente do Instituto Rui Barbosa (IRB)e vice-presidente do TCE Ceará, Edilberto Pontes, esclarece que as fiscalizações feitas pelos órgãos monitoram a utilização dos recursos públicos, garantindo que sejam investidos de maneira eficiente em projetos e programas que contribuam para o desenvolvimento econômico das regiões, principalmente as que mais precisam.

“Ao identificar e investigar irregularidades financeiras, os Tribunais de Contas ajudam a combater a corrupção, o que é essencial para criar um ambiente favorável aos negócios e ao investimento”, ressalta. 

“Atuando na avaliação da eficácia das políticas públicas implementadas pelos governos locais e fornecendo informações que podem levar a ajustes e melhorias nas estratégias de desenvolvimento econômico, passam a desempenhar um relevante papel para regiões, estados e municípios que necessitam de maior atenção dos governos, em suas diversas instâncias”, enfatiza. 
Edilberto Pontes
Presidente do Instituto Rui Barbosa (IRB)e vice-presidente do TCE Ceará

Para ele, no contexto específico do Nordeste e do Ceará, as ações da corte são particularmente relevantes devido aos desafios econômicos que a região pode enfrentar. As recomendações e auditorias, salienta, melhoraram gestão pública, podendo resultar em economias e direcionamento adequado de recursos para áreas-chave do crescimento financeiro.

Tribunais terão papel fundamental para efetivação do arcabouço fiscal 

Aprovado neste ano, o arcabouço fiscal terá a missão de manter as despesas do governo abaixo das receitas, com implementação a iniciar a partir de 2024. Esse é apenas um dos desafios para a gestão e finanças públicas na atualidade. Nesse contexto, o coordenador de Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil, Jefferson Nascimento, acredita que os Tribunais de Contas serão cruciais.

“O regime substituto do teto de gastos é pautado pela lógica da austeridade. A questão dessa análise técnica é algo de extrema importância. Serão R$ 18 bilhões a mais ou a menos na saúde”, calcula. 

“É um tipo de debate que vai, cada vez mais, se intensificar com a dificuldade arrecadatória em razão da Reforma Tributária, fazendo com que esses elementos sejam importantes para definir a quantidade de recursos. Outra discussão é o pagamento dos precatórios, envolvendo R$ 95 bilhões”, lista. 

“É fundamental uma boa fiscalização e de maneira transparente, e os Tribunais têm um papel crucial, ainda mais em um país como o Brasil, uma república federativa com políticas em nível federal, estadual e municipal. Essa estrutura joga a favor da boa utilização dos recursos públicos e é modelo. Estamos em 60 países e vemos o Brasil como um bom exemplo”, destaca. 
Jefferson Nascimento
Coordenador de Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil

Jefferson ponderou, no entanto, haver uma necessidade de linguagem mais acessível por parte da corte para a população compreender sobre o uso do dinheiro público e como os Tribunais de Contas atuam nesse sentido. 

Transparência também contribui para o desenvolvimento econômico

O gerente de Programas da Transparência Internacional – Brasil, Renato Morgado, destaca que a clareza e o acesso às informações são fundamentais para a prevenção e o combate à corrupção, contribuindo para a detecção de eventuais práticas ilícitas pelos órgãos de controle, pelos cidadãos e pela própria administração pública. 

“Nessa mesma direção, possuem um efeito de inibição de desvios, na medida em que agentes públicos ou privados dispostos a cometer atos de corrupção saberão que os riscos de serem identificados e punidos serão maiores”, avalia.

“A transparência também contribui para o desenvolvimento econômico ao criar um ambiente de negócios mais ético e previsível. Isso produz condições para o aumento do investimento privado e público nos estados com melhor desempenho de transparência”, complementa. 
Renato Morgado
Gerente de Programas da Transparência Internacional – Brasil

Para Morgado, ao realizar e disponibilizar os relatórios de auditoria, os Tribunais de Contas fomentam a transparência pública, possibilitando ao cidadão uma melhor compreensão da gestão pública.

Para desempenharem cada vez melhor suas funções, lembra, esses órgãos precisam aprimorar a sua própria transparência, criar mecanismos de diálogo e controle social e implementar boas práticas de integridade. 

“Esse último ponto deve incluir o debate sobre os critérios de escolha e nomeação de conselheiros, a independência e existência de quadro de servidores concursados para a realização das auditorias, a implementação de planos de integridade e o fortalecimento de corregedorias e ouvidorias”, reforça.

O que os tribunais têm feito para ser transparentes e fortalecer a democracia? 

Fachada do TCE
Foto: Ismael Soares

Para o presidente do IRB e vice-presidente do TCE Ceará, Edilberto Pontes, os Tribunais de Contas têm garantido o fortalecimento da democracia brasileira por meio de várias frentes, além da fiscalização financeira orçamentária para evitar o desperdício e o mau uso do dinheiro público. 

“Se observarmos sob a ótica da legalidade, os Tribunais verificam se os atos administrativos estão em conformidade com a legislação, garantindo que as ações do governo estejam de acordo com as normas estabelecidas, o que é fundamental para o Estado de Direito”, afirma.

Outro ponto está relacionado ao julgamento de contas de gestores públicos. Nesses casos, a corte pode aplicar penalidades se houver irregularidades, “contribuindo para a responsabilização e a integridade na administração pública”. No quesito transparência e acesso à informação, divulgam relatórios e informações sobre suas atividades. 

Pontes acrescenta que, em relação à atuação como órgão de Controle Externo da Administração Pública brasileira, os Tribunais são órgãos independentes, “ajudando a equilibrar os poderes e a garantir que os governos atuem de forma responsável e de acordo com os interesses da sociedade”.

Em 2022, o portal eletrônico do Tribunal de Contas do Estado do Ceará recebeu Selo Diamante, alcançando 100% do Índice de Transparência, do Programa Nacional de Transparência Pública (PNTP). A média alcançada pelos 31 tribunais de contas avaliados foi 86,42%. 
 

Leia nota de prefeitura de Fortaleza

"A Prefeitura de Fortaleza foi notificada pelo Tribunal de Contas do Estado - TCE, em 16 de novembro de 2022, para prestar esclarecimentos acerca da concessão de isenção fiscal dos tributos IPTU e ITBI para servidores públicos, desde 1972. As razões de justificativa foram enviadas em 05 de janeiro deste ano e, ainda, não houve decisão por parte do Tribunal até a presente data.

Vale destacar que o Ministério Público, provocado pelo Tribunal de Contas, também pediu esclarecimentos à Prefeitura de Fortaleza a respeito do tema abordado. Após resposta deste órgão, o MP acatou as razões apresentadas, considerando que foram prestadas as diligências cabíveis, e que não houve ilicitude ou ilegalidade da Secretaria Municipal das Finanças no que tange as isenções tributárias para os servidores públicos municipais ativos e inativos quanto ao IPTU e ao ITBI, haja vista que ela está cumprindo a legislação pertinente, determinando assim, o arquivamento do processo.

O montante dos incentivos fiscais mencionados está relacionado às renúncias previstas nos dispositivos legais da Lei Orgânica do Município, mais especificamente nos Artigos 141 e 142. Essas renúncias já estão incorporadas à previsão de receita estabelecida na Lei Orçamentária, de modo que não exercem impacto adverso sobre os resultados fiscais de Fortaleza". 

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