Cenário econômico gera dificuldade ao orçamento familiar
Níveis de desemprego, de endividamento e de pobreza, além de ameaças sobre o ajuste do salário mínimo de 2020, despertam preocupação de especialistas com o desenvolvimento local
"A gente se vira do jeito que Deus permite", detalha Socorro Nobre Costa, 50, sobre como administra o ganho de 1,5 salário mínimo do marido, Jocergio Messias da Costa, 52, que atua como operador de máquina para dar conta das despesas da família. Além do casal, o rendimento também tem de suprir as necessidades das duas filhas. A dona de casa, que possui experiência como costureira, realiza alguns consertos para complementar a renda. Ainda assim, ela revela que, no fim do mês, a conta só fecha com a ajuda de alguns programas sociais, como o Bolsa Família e o cadastro de baixa renda na conta de luz.
"A gente tem que economizar ao máximo para poder dar certo. Entre as despesas fixas tem água, luz, alimentação, transporte, gás e o plano odontológico das meninas. Plano de saúde só o Jocergio que tem, porque a empresa dá", afirma Socorro. Ela detalha que o esposo também ganha uma cesta básica e que procura sempre promoções e marcas mais baratas.
O sufoco com o orçamento familiar é a realidade de milhares de cearenses. Em Fortaleza, cerca de 60,1% dos consumidores estão endividados em setembro. Apesar do número ser menor que em agosto (67,3%), o comprometimento da renda familiar, que alcançou 40,6%, é o maior da série histórica iniciada em dezembro de 2013, segundo a Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado do Ceará (Fecomércio). Em média, os compromissos a serem cumpridos somam R$ 1.508, de acordo com o levantamento. Ao mesmo tempo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informou que o rendimento médio do cearense no segundo trimestre deste ano foi de R$ 1.614. As despesas com alimentação, segundo a Fecomércio-CE, ainda são as que mais pesam no bolso do fortalezense, representando cerca de 55,1% das dívidas, juntamente com aluguel residencial (14,8%) e educação (14%).
Cartão de crédito
Na família de Socorro, o cartão de crédito é utilizado apenas em emergências, como em casos de doença ou para compras pontuais. "Quando precisamos de uma medicação, que não é algo que a gente consegue colocar no orçamento, usamos o cartão. Quando as meninas precisam de uma roupa ou calçado, juntamos o dinheirinho mês a mês ou tiramos no cartão e vamos pagando aos poucos. Mas quando usamos (o cartão), no mês seguinte já tem que economizar em outra coisa", explica a dona de casa.
A consciência dela para o uso do cartão de crédito, entretanto, falta a parte dos consumidores. Segundo a Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), 77% dos brasileiros utilizaram cartão de crédito pelo menos uma vez nos últimos 12 meses. Desses, 15% admitiram ter o pagamento de alguma fatura em atraso, enquanto 86% não sabem a taxa de juros mensal a pagar por entrar no rotativo.
Além disso, quase um a cada dois brasileiros que utilizam o cartão de crédito no último ano ficou com o nome sujo e outros 32% tiveram o cartão bloqueado por falta de pagamento. A possível falta de planejamento pode acabar saindo caro.
Levantamento do núcleo de dados do Sistema Verdes Mares, aliando diversos os indicadores econômicos e utilizando a metodologia da plataforma Bons Investimentos, atestam que, ao atrasar a fatura do cartão por um mês, o consumidor pode pagar cerca de R$ 196,04 só de juros, levando em consideração a dívida média do fortalezense em setembro (R$ 1.508) e a taxa média do juro rotativo neste mês (12,99% ao mês). Com três meses de atraso, o gasto com juros soma R$ 667,89.
Salário mínimo
Socorro diz considerar baixo o valor do salário mínimo para suprir todas as necessidades inerentes a uma família. Ela revela que há meses em que o ganho do marido quase não dá para pagar todas as contas. "Não sobra nada. Têm vezes que dá justamente por conta da mixaria que eu ganho fazendo conserto. Tem semana que tiro R$ 25 ou R$ 30, mas tem semana que nem isso. Mas, graças a Deus, não temos o nome sujo e está tudo em dias", orgulha-se.
Ela acrescenta que, para fazer alguma reforma em casa ou trocar algo que está quebrado, o esposo precisa fazer hora extra. A Constituição Federal estabelece que o mínimo deve dar conta das despesas com alimentação, moradia, educação, saúde, vestuário, higiene, transporte, lazer e previdência social para toda a família e não apenas para o trabalhador como está no imaginário da população. O supervisor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Reginaldo Aguiar, destaca que o mínimo se mostra um dos melhores mecanismos de distribuição de renda e minimização de pobreza.
"Ele (salário mínimo) permite que os mais vulneráveis tenham acesso ao básico para viver com dignidade. Em julho de 1940, quando foi pago pela primeira vez, o salário mínimo era o equivalente ao valor de R$ 1.957,29. Ou seja, o que temos hoje (R$ 998) só corresponde a 50,99% do que foi pago lá no início", dispara.
Segundo pesquisa do Dieese, divulgada em agosto, o salário mínimo necessário para garantir os direitos previstos na Constituição para uma família composta por dois adultos e duas crianças deveria ser de R$ 4.044,58. Para 2020, a previsão do Governo Federal é de que o mínimo vá a R$ 1.039, R$ 1 a menos que a estimativa inicial divulgada em abril (R$ 1.040). O valor não tem ganhos reais, ou seja, é corrigido apenas pela inflação. A justificativa para a redução é de que, a cada R$ 1 a mais no mínimo, seria gerado um custo de R$ 298,2 milhões a mais no orçamento.
"Não dar continuidade à política de valorização do mínimo certamente vai fazer que a diferença entre ricos e pobres aumente, vamos ter mais bolsões de miséria, vamos ter piores condições de vida, de arrecadação, de produção e menos benefícios para a sociedade brasileira. Teremos um País pior", completa Aguiar.
A política a qual ele se refere é a que estabelece ganhos reais para o salário mínimo. O Governo Federal chegou a considerar a possibilidade de congelar o mínimo em períodos de dificuldades fiscais como forma de garantir mais fôlego ao orçamento para organizar as contas, mas a proposta foi descartada.
O supervisor técnico do Dieese lembra ainda que o salário mínimo começou a apresentar ganhos reais ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso. "Se pegar o salário de 1994, quando foi instituído o Plano Real, e reajustar apenas pela inflação, hoje ele seria apenas R$ 403,42. Com esse cálculo conseguirmos ter a ideia da importância dos ganhos acima da inflação", reforça Aguiar.
Soma de fatores
O professor do curso de Economia Ecológica da Universidade Federal do Ceará (UFC), Aécio Alves de Oliveira, alerta para a soma de fatores negativos pelos quais a economia passa. "O problema agora é que temos uma convergência de fatores: desemprego, subocupação e salário mínimo em queda, em termos reais. Isso vai refletir no consumo das famílias, no endividamento, na impossibilidade de pagar os empréstimos porventura contraídos", afirma.
Ele acrescenta que os problemas acabam desestruturando as famílias. "Uma sociedade em que, se você não tem dinheiro, não existe. Se o dinheiro é curto, você vai ter uma existência curta". Para ele, a perspectiva é de piora. "À medida em que as famílias perdem poder de compra, as empresas não vão vender. Não vendendo, a produção retrai, mais empregos são perdidos".
Conforme o IBGE, o consumo das famílias passou a ficar negativo no primeiro trimestre de 2015, quando caiu 0,6%. Somente no segundo trimestre de 2017 é que o índice voltou a ficar no azul (0,9%). No segundo trimestre deste ano, dado mais recente, o indicador se elevou em 1,6%.
Sobre a justificativa do Governo para a redução de R$ 1 no salário, Oliveira aponta que a estratégia não é a melhor e que a medida poderá ter o efeito contrário ao esperado. "Quando você arrocha o salário, cria problemas, inclusive de arrecadação. Porque é um efeito rebote, termina voltando contra o Governo. As compras diminuem, a arrecadação diminui, e o Governo vai ter dificuldade em arcar com seus compromissos".
Recuperação
Apesar de toda a dificuldade, a saúde financeira das famílias parece estar se recuperando mais rapidamente que a das empresas. As operações de crédito para pessoas físicas no Estado têm aberto vantagem em relação às operações para pessoas jurídicas.
Segundo relatório do Banco Central (BC), em 2018, R$ 40,9 milhões foram emprestados a pessoas físicas no Ceará, um crescimento de 9,4% em relação a 2017. O valor para as empresas, no entanto, foi de R$ 32,4 milhões, volume 3,6% menor que no ano anterior.