Ceará perde energia suficiente para abastecer 16 milhões de casas; entenda o curtailment
Fenômeno obriga usinas a reduzir a geração de energia renovável por falta de infraestrutura ou baixa demanda
Um relatório realizado pela empresa ePowerBay mostra que o Ceará já perdeu quase 3,3 milhões de megawatts-hora (MWh) devido ao fenômeno do curtailment (cortes de geração), entre outubro de 2021 e setembro de 2025.
O termo se refere à limitação da geração de energia imposta a usinas de grande porte quando o sistema é incapaz de escoar toda a energia gerada por fontes renováveis, devido à falta de infraestrutura ou baixa demanda.
De acordo com o diretor técnico e cofundador da ePowerBay, André Felber, levando em consideração que o consumo mensal de uma residência é, em média, de 200 quilowatts-hora (kWh), o acumulado de perda energética do Ceará seria capaz de abastecer 16,5 milhões de casas por um mês.
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O resultado coloca o Estado em quarta posição no ranking de maiores perdas energéticas acumuladas no Brasil de acordo com o relatório, atrás do Rio Grande do Norte (12.517.169 MWh), da Bahia (10.380.512 MWh) e de Minas Gerais (4.197.469 MWh).
“No último mês (setembro) as perdas no Ceará foram da ordem de 396 mil MWh. Isso seria algo como 1,98 milhão de residências (em um mês). Se considerar quatro pessoas por residência, (beneficiaria) 7,92 milhões de pessoas no mês de setembro”
O relatório considera apenas cortes de geração (curtailment) segundo informações do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) em 11 estados: Rio Grande do Norte, Bahia, Minas Gerais, Ceará, Piauí, Pernambuco, Paraíba, São Paulo, Rio Grande do Sul, Maranhão e Santa Catarina.
Ainda de acordo com a pesquisa, de outubro de 2021 a setembro de 2025 o Brasil acumulou 35,14 milhões de MWh em perdas energéticas. Setembro deste ano registrou o recorde de perdas, com 4,6 milhões de MWh, um aumento de 12,9% em relação a agosto de 2025 (4,1 milhões de MWh).
Curtailment no Ceará deixou de ser pontual e se tornou estrutural
Os dados mostram que, em 2024, o percentual de perda energética cearense variou de 0,7% a 23,7%. Já em 2025 os números oscilaram entre 10,8% a 35,8%, com o pico sendo registrado em fevereiro. Em setembro, último índice registrado, o percentual de perda energética foi de 29%, sendo o terceiro maior entre os estados analisados.
Na visão do secretário de Ciência, Inovação e Desenvolvimento Tecnológico de Caucaia, Machidovel Trigueiro Filho, os números evidenciam que o problema do curtailment no Ceará deixou de ser pontual e se tornou estrutural.
“Há a iminente necessidade de recriação do Sistema. A perda de até 5% pode ser considerada aceitável para ajustes técnicos. Acima de 10%, já há comprometimento econômico. Os picos acima de 30% no Ceará são críticos e comprometem a atratividade dos projetos, gerando preocupação”
Quais os impactos dos cortes para a economia do Ceará?
O gerente de desenvolvimento sustentável na Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), Joaquim Rolim, também demonstra preocupação com o cenário. O especialista salienta que os patamares de perda energética do Brasil estão entre os maiores do mundo, sendo o Ceará um dos estados mais afetados.
“O curtailment provoca grandes perdas e apreensão em toda a cadeia produtiva do setor. O que mais preocupa é o fato de que o problema dos cortes de geração se iniciou há dois anos, vem se agravando e as ações ainda não foram capazes de frear o problema”, ressalta.
O especialista lembra que o fenômeno impacta diretamente a economia do Estado. Seria o caso de indústrias de grande porte de aerogeradores e pás eólicas instaladas no Ceará, responsáveis por propiciar grande quantidade de emprego e renda e negativamente afetadas pelo problema.
"Os impactos poderão afetar também os municípios do Estado, pois estudos mostram que as usinas de geração propiciam aumento da ordem de 13% na arrecadação dos municípios, além de avanços superiores a 20% no Índice de Desenvolvimento Humano e Produção de Bens e Serviços (PIB)"
O que é o curtailment e por que ele ameaça o avanço das energias renováveis
Machidovel Trigueiro classifica o cenário cearense e brasileiro no setor elétrico como paradoxal: enquanto existe uma rápida expansão da geração de energia, especialmente das fontes renováveis (solar e eólica), esse avanço produz um excedente de energia que sobrecarrega e desafia a capacidade de escoamento e gerenciamento do ONS, especialmente em horários de baixa demanda.
Ele explica que, para manter o equilíbrio do sistema, muitas vezes é necessário reduzir a produção de hidrelétricas ou até desligar usinas renováveis.
"Esse cenário provoca perdas econômicas: os empreendedores enfrentam o chamado curtailment (redução forçada da geração), que compromete a viabilidade de projetos, gera insegurança regulatória e expõe a ineficiência do sistema", observa.
"Mesmo com sobra de energia, os consumidores continuam pagando tarifas elevadas, pressionadas por encargos e pela falta de instrumentos para valorizar e redistribuir o excedente", afirma.
As causas principais do curtailment, de acordo com Joaquim Rolim, são:
- Geração de energia renovável cresce mais rápido que o consumo, além do maior crescimento da geração solar, com excedente de geração das 9h às 16h;
- Geração de energia renovável cresce mais rápido que a rede de transmissão;
- Restrição de geração não atinge a geração distribuída (pequenos produtores de energia), apenas usinas de grande porte conectadas ao Sistema Interligado Nacional (SIN).
Segundo o secretário executivo de Energia e Telecomunicações da Secretaria de Infraestrutura do Ceará (Seinfra), Dickson Araújo, 72% da geração do Ceará é renovável, sendo a geração solar a mais afetada pelo fenômeno do curtailment.
“A geração fotovoltaica tem sido mais afetada que a eólica, visto que essa fonte não gera energia durante a noite. Portanto, qualquer corte durante o dia representa um impacto muito maior. Além disso, durante o dia, as fontes eólicas se somam às fotovoltaicas, aumentando a penetração de renováveis e gerando maiores níveis de corte pelo ONS”, destaca.
Soluções passam por tecnologia, armazenamento e ampliação da rede
Para Machidovel Trigueiro, as soluções a curto prazo para o problema envolvem otimizar o uso de energia por inteligência artificial, estimular o consumo flexível e investir em baterias e pequenos sistemas de armazenamento.
Já a longo prazo, o especialista cita a expansão da transmissão, o desenvolvimento de polos de hidrogênio verde, grandes sistemas de armazenamento e a atração de indústrias eletrointensivas.
“O setor privado deve inovar e investir em novas tecnologias, enquanto o setor público precisa garantir leilões ágeis de transmissão e políticas que ampliem o consumo local. O desafio, se bem conduzido, pode se tornar uma oportunidade única de reposicionamento econômico para o Estado”, sugere.
Na visão de Joaquim Rolim, a solução mais urgente é a compensação das perdas dos produtores de energia.
“Se não adotarmos providências urgentes existe o risco iminente de perdermos, inclusive, a capacidade de atração de novos investimentos nestas fontes de energia limpas e de menor custo. Estamos muito atrasados em relação ao restante do mundo”, aponta.
De acordo com Dickson, o Governo estadual “tem dado apoio às empresas que passam pelo problema (...) buscando fazer uma ponte entre elas e o Governo Federal, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o ONS e demais órgãos envolvidos”.
Além disso, o secretário salienta que “o Governo do Ceará tem buscado o diálogo constante com as empresas de geração eólica e fotovoltaica” e está em busca da “expansão no sistema de transmissão no Ceará, de maneira que possa reduzir os cortes de geração e, ao mesmo tempo, receber as novas cargas de empreendimentos como os Data Centers e o Hub de Hidrogênio Verde no Pecém”.
Em março deste ano, o Ministério de Minas e Energia (MME) criou o Grupo de Trabalho do Curtailment, no âmbito do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE). Segundo o MME, o grupo “segue atuando de forma estruturada para garantir a segurança e estabilidade do sistema elétrico brasileiro”.
Entre as medidas encaminhadas pela equipe, a pasta cita “a elaboração de diagnósticos técnicos sobre a natureza e a magnitude dos cortes, a proposição de soluções regulatórias e operacionais, além da priorização de obras de transmissão e da instalação de equipamentos que aumentem a confiabilidade da rede”.