Das ruas às bibliotecas: jovem da periferia transforma dor em dança e poema

Eduardo Africano iniciou a divulgação de seu livro “Ultrapassando as Grades e Vendo Além dos Muros” neste mês, no Centro Socioeducativo Canindezinho, para aqueles que, segundo conta, fazem parte de toda sua obra

Escrito por Natali Carvalho , natali.carvalho@svm.com.br
livro/ literatura/ negro/ papel
Legenda: Eduardo Africano escreve poesia de desabafo, “pras pessoas verem que nossa vida não é fácil. Eu fiz pra que as pessoas possam se ver na escrita, porque fala muito sobre mim e sobre o outro”, finaliza.
Foto: Divulgação

Histórias de dor redirecionadas para a escrita e para a dança. As dificuldades presentes na convivência familiar foram transformadas em poema e movimento do corpo pelo jovem Eduardo Nascimento, mais conhecido como Eduardo Africano. Aos 17 anos, o poeta e dançarino teve que sair de casa após o envolvimento do pai dele com o tráfico de drogas. Hoje, aos 26 anos, Africano divulga seu livro “Ultrapassando as Grades e Vendo Além dos Muros”, coletânea de poemas sobre superação e afeto. Além das próprias experiências, a inspiração também veio dos seus alunos do Centro Socioeducativo Canindezinho.

As vivências que compõem a obra começaram em casa. A mãe, Roberta Agapito, foi a primeira a abandonar o lar. Motivada não só por ver sua casa transformada em ponto de drogas, mas também pela violência doméstica sofrida por anos. “Desde jovem o meu pai sempre me colocou contra a minha mãe, como uma espécie de manipulação para que eu ficasse ao lado dele e o informasse sobre as ações da minha mãe, caso ela quisesse fugir de casa”, relata o escritor. Roberta fugiu aos 40 anos, mas Eduardo conta que desde pequeno sentia que estava sendo preparado por ela para o adeus. “Ela me dava conselhos e pedia para que eu parasse de cometer os erros do meu pai”.

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Legenda: Hoje com 26, Africano divulga seu livro “Ultrapassando as Grades e Vendo Além dos Muros”.
Foto: Arquivo pessoal

As ruas 

O menino negro da periferia se apaixonou pela dança, sendo essa paixão a grande motivação para que ele encerrasse o círculo vicioso de tráfico e crimes que o seu pai, segundo ele, o obrigava a cumprir. Sua única saída foi morar nas rua. E por longos três anos. Segundo o censo de 2014, o número da população em situação de rua em Fortaleza era de 1.718 desabrigados. Africano fez parte desta estatística, residindo na Praça das Flores. “Quando eu saí de casa eu consegui ver o melhor e o pior lado do ser humano. As pessoas me julgavam e direcionavam críticas sobre meu estado sem saber porque eu estava lá. Foram os outros moradores de rua que me ajudaram, mesmo quando a única coisa que eles tinham era um pedaço de papelão”.

A dança mais uma vez foi sua companhia para lidar com as situações desesperadores que as ruas apresentavam: fome, solidão, medo e desespero. Dançava break nos sinais e principalmente na Beira Mar, sendo sua forma de sobrevivência. “A dança sempre foi minha grande motivação. Eu extravasava, pegava tudo de positivo e negativo da minha vida e colocava nos passos. Foi ela que me levou pelo país, eu buscava sempre estar viajando, mesmo que fosse só com o dinheiro da passagem, para que as vivências que eu fosse adquirindo fossem combustíveis para minha dança. Eu trazia de cada região um conhecimento novo para me tornar melhor”.

Em uma dessas viagens, reencontrou a mãe. “Foi ai que entendi tudo o que levou minha mãe a sair de casa. Nós voltamos a conversar e ela me contou os abusos que sofreu nas mãos do meu pai. Nossa relação foi se fortalecendo e quando eu já tinha 19 anos, voltamos a morar juntos, como estamos até agora”.

O escritor que se alfabetizou aos 23 anos

Graças a essa dedicação, ele recebeu, aos 22 anos, um convite para ensinar dança aos jovens do Centro Socioeducativo Canindezinho. Mas por não ter concluído o ensino médio, ele foi demitido com dois meses de trabalho. “Eu saí da escola porque os professores me chamavam de burro, e se eu era assim, não tinha porque ir para lá. Eu passei a tomar aquilo como verdade. Sempre acreditei que eu realmente fosse burro e acredito que por isso eu me apaixonei pela dança, porque eu não precisava escrever e ler para ser bom”, explica.

Eduardo abandonou os estudos no segundo ano do ensino médio. Devido à necessidade do diploma para voltar a lecionar, fez o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), sendo aprovado. “As pessoas endeusam muito o papel (referência ao diploma) e acreditam que só com o ele a pessoa tem o conhecimento. Mas o conhecimento que tive na escola era superficial, não entendia o que lia, nem escrevia bem, foi a partir da poesia e dos poemas que eu passei a sentir vontade de contar aquelas histórias também”, diz. Com o diploma, voltou a ensinar no Canindezinho.

Ultrapassando as grades e vendo além dos muros

“Quando eu lembro das minhas experiências, quase sempre negativas, vejo que não era só uma pedra no caminho. Era o mundo todo”, afirma o escritor. Segundo ele, o mundo nunca está do lado daqueles que vêm da pobreza e trazem em seus corpos a negritude. De acordo com ele, as pessoas nunca o enxergavam, não importando em que momento da sua trajetória estivesse. Se fosse nas ruas era vagabundo, se fosse como escritor vendendo seu livro, era ignorado. “Isso ajudou minha escrita, pois eu colocava minhas vivências. As pessoas que colocavam 'vidas negras importam' não se importam de verdade com minha vida”, conta.

Eduardo, que continua lecionando na Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo (Seas), explica que seu livro não é apenas sobre ele, mas sobre a vida dos jovens do socioeducativo, por isso ele nunca desistiu de lança-lo mesmo levando três anos para isso. “Com 23 eu comecei a escrever o livro. Eu comecei a receber um salário e dava para minha mãe pagar a casa dela. Depois disso, eu guardava um dinheiro para pagar o livro. Levou três anos para isso. Não desisti dessa produção por que foi uma promessa que fiz e que precisava ser cumprida. Assim como eu nunca fui visto e ouvido pela sociedade, os meus alunos do socioeducativo também não”, conta.

Por isso Eduardo Africano escreve poesia de desabafo, “pras pessoas verem que nossa vida não é fácil. Eu fiz pra que as pessoas possam se ver na escrita, porque fala muito sobre mim e sobre o outro”, finaliza.

Como comprar o livro

O livro pode comprado pelo Instagram, ao custo de R$ 25. Com a aquisição, também ajuda a Companhia da Dança Sulclan, da qual Eduardo faz parte.

Leia um trecho do poema preferido do autor

Acredite em você

Já fui tranca, hoje sou a chave micha / Porta abro com sorriso / Recado todo dia dando e eu cansado do mesmo recado / Como fazer diferente sem diferença? / O diferencial é uma semente eu tô plantando / Como crer no impossível se o possível tá na tua frente? / É como crer sem crença /  As pessoas não são cegas, mas não conseguem ver o real motivo de viver / Tô falando o óbvio e você não consegue entender / Vou descrever / Tô ultrapassando as grades da consciência Indo além dos muros com as vivências