População em situação de rua cresce durante pandemia

Na ausência de dados atualizados sobre a quantidade de pessoas vivendo na rua, entidades que lidam com esse grupo na cidade estimam possível duplicação no número após piora em indicadores econômicos e sociais. Com a crise, desemprego e contratos cancelados, a população de rua aumentou

Escrito por Nicolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: A população de rua cresceu no Ceará durante a pandemia
Foto: José Leomar

É relato comum nas redes sociais, onde o humor esconde um fundo de impaciência, as pessoas se sentirem como as únicas permanecendo em casa por mais de três meses, respeitando o isolamento por causa da pandemia do coronavírus no Ceará. Contudo, há centenas, talvez milhares, de outras nas ruas de Fortaleza, que não cumprem a medida por não terem sequer um cubículo para habitar. São homens e mulheres, crianças e idosos, cujas trajetórias de vida levaram a um teto de sol e estrelas.

Nos últimos três meses, o número de pessoas nas ruas da Capital visualmente cresceu. Pelo menos, às vistas de entidades que realizam trabalhos sociais com elas, dada a ausência de apuração oficial recente. O último censo realizado pela Prefeitura de Fortaleza sobre essa população, em 2014, contou 1.718 desabrigados, concentrados principalmente no Centro e na Avenida Beira-Mar.

Contudo, o Fórum da Rua de Fortaleza acredita que houve defasagem mesmo naquela época. "As instituições que trabalham com isso acham que, desde esse tempo, já passava facilmente de 2 mil. Com a pandemia, esse número pode ter duplicado.

Só na Praça do Ferreira tem cerca de 300 a 350 pessoas rotativas. Sempre ficamos com pé atrás nesse número, mas nunca tivemos pernas para acompanhar", observa Marcelo Meneses, coordenador do movimento Fortaleza Invisível, que há dois anos desenvolve ações de assistência social junto a esse público.

Segundo ele, a pandemia agravou problemas principalmente econômicos, levando pessoas a saírem de casa em busca de alimentação e outras formas de ajuda. A burocracia para buscar o auxílio emergencial do Governo Federal também comprometeu a situação, embora ele também não descarte a atuação de "aproveitadores" em busca de donativos e de usuários de drogas que veem na rua maior acesso a substâncias ilícitas.

A secretária-executiva da Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), Patrícia Studart, confirma aumento "significativo" na demanda pelos serviços públicos. Nos dois Centros de Referência para População em Situação de Rua (Centro Pop), a média diária entre 100 e 150 atendimentos cresceu para 250. "Tivemos de nos adaptar porque não era algo esperado", afirma. Ela explica ainda que parte do público é formada por trabalhadores autônomos cuja subsistência dependia do comércio funcionando.

Desde o início da pandemia, a Pasta abriu três abrigos temporários para a população de rua, disponibilizando 170 vagas. Além disso, instalou dois galpões de higiene pessoal, nos bairros Praia de Iracema e Centro, que oferecem bebedouros, banheiros e chuveiros. Outros contêineres serão implantados na Parangaba, Messejana e no Mucuripe.

Legenda: Não há estimativa atualizada de quantas pessoas vivem nas ruas atualmente
Foto: Natinho Rodrigues

"Também abrimos um espaço de isolamento social para quem tem suspeita de Covid-19, mas a população de rua quase não foi acometida, só passaram 10 pessoas. Além disso, continuamos com distribuição da alimentação nas praças, logradouros e nos Centros Pop, além da entrega de álcool em gel", diz Studart.

Para Leila Paiva, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará (OAB-CE), a falta de dados claros prejudica a atenção dada ao grupo. "O censo é necessário para formalizar qualquer política pública eficaz. Além dos dados quantitativos, precisamos saber as territorialidades porque, hoje, essas pessoas não estão mais só no Centro da cidade, por isso é importante conseguir monitorá-las".

A advogada reforça que, na observação empírica, a retração da economia durante a pandemia pode ter "empurrado involuntariamente" muitas pessoas para a linha da pobreza. Embora não realize atendimentos diretos, a OAB recebeu relatos de famílias que perderam inclusive a condição de pagar aluguel.

Entre as comunidades mais afetadas no radar do Fortaleza Invisível estão o "Oitão Preto" e o Moura Brasil, vizinhos ao Centro, mas a população de rua está espalhada por toda a cidade: nos arredores das lagoas da Parangaba e Messejana, nas proximidades do Cuca Mondubim, sob o viaduto que dá acesso ao Eusébio e nas avenidas a caminho da Câmara Municipal de Fortaleza.

São pessoas levadas a viver de trocos ou sobras do que já foi novo - como um sanduíche ou um pacote de biscoitos -, estranhas às demais por ocuparem espaços públicos entendidos pela maioria como áreas de passagem.

"São chamados de mendigos e drogados, confundidos com ladrões e vagabundos, embora esses termos não possam ser aplicados a toda a população de rua - pelo contrário. O que os marca é a heterogeneidade. Não digo que não existam problemas de álcool e outras drogas, mas a sociedade reage como se fossem só aquilo", diz Andréa Esmeraldo, doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará e trabalhadora da assistência social na Capital.

A pesquisadora chama atenção especial para o aumento da violência doméstica durante o isolamento, situação capaz de levar mais mulheres às ruas, principalmente pela redução da oferta de redes públicas e voluntárias de atenção, que não estão funcionando ou estão de forma reduzida.

Em outubro de 2019, a Prefeitura acatou recomendação do Ministério Público do Ceará (MPCE) para realizar, em 2020, um novo censo estatístico da população em situação de rua. No entanto, segundo Studart, as próprias empresas solicitaram o cancelamento do processo licitatório, que só deve ser reaberto após a pandemia. "Mas deve ser mais rápido porque o projeto já está todo estruturado", garante a secretária-executiva.

"Não conhecendo essas pessoas, não tem política pública eficiente, não se consegue segmentar o atendimento pelo impacto no orçamento. Claro que não vai ter orçamento se não se tem um mapeamento justo", considera Marcelo Meneses, do Fortaleza Invisível.

A pesquisadora Andréa Esmeraldo lembra ainda os mais de 10 anos da Política Nacional para a População em Situação de Rua, instituída em 2009, que na teoria definiu eixos como habitação, trabalho, saúde, cultura, educação e segurança alimentar, mas na prática enfrenta diversos entraves. "Se nós atendêssemos pelo menos o que está na lei, teríamos serviços assistenciais que não são apenas pontuais, mas capazes de fornecer acesso e condições para iniciar o processo de saída das ruas", finaliza.

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