Vizinhos compartilham barracos, fogareiros e comida após perderem casas em incêndio em Fortaleza
Fogo transformou 13 moradias em cinzas, expondo o perigo de um problema tão grande como histórico: o déficit habitacional
Eram quase 4h do domingo de carnaval quando o fogo se acendeu como primeira luz do dia. Iniciado num barraco, o incêndio logo se espalhou aos outros e acordou no susto quem vive na Comunidade do Gengibre, espremida entre bairros nobres de Fortaleza, como Cidade 2000 e De Lourdes.
No total, 13 barracos erguidos com papelão, madeira e materiais reciclados viraram cinzas, com tudo dentro, de documentos a animais de estimação. Outros 3 precisaram ser derrubados para impedir que as chamas continuassem se alastrando.
Os moradores, agora, se ajudam, se dividem para morar "de favor" nos barracos que restaram.
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O Diário do Nordeste esteve no local, na manhã dessa quarta-feira (22), para entender: quais as necessidades mais urgentes de quem já não tinha nada e, ainda assim, perdeu tudo?
Para o catador Francisco José dos Santos, 46, a prioridade é uma só: a saúde da mãe. Maria Lima dos Santos, idosa, ainda sente os efeitos da fumaça tóxica, mesmo 3 dias após o incêndio. Quando viu o barraco em chamas, ela se recusou a sair.
“Sabe como é fogo, né? Num barraco de tábua, é de repente. Só deu tempo dizer ‘tá pegando fogo, mãe, vamo sair!’ E ela atrás dos documentos e do dinheiro. Eu tirava, ela voltava”, narra o filho.
Hoje, a “fumaça preta” se converte em sintomas como náuseas e diarreia, agravadas pela falta do medicamento controlado, que também se perdeu. Por medo, Maria se recusa a ir ao hospital.
Identidade, CPF, título, o papelzinho pra fazer o transplante de córnea, o remédio dela que só compra com receita… O pouco que a gente tinha, perdemos tudo. Só não perdemos a vida.
‘Foi um sufoco’
Genro e vizinho “de parede” de Maria, o catador Carlos Davi, 29, viu todos os animais de estimação e todos os objetos conquistados “com suor” serem destruídos. Ele dormia com a esposa e os 4 filhos no barraco de três cômodos, quando ouviu gritos. Fogo.
“Peguei o Biel (de 3 anos, asmático) e corri com ele. Não lembro como tirei ele de dentro. Quando lembrei dele de novo, pensava que ele tava aí dentro queimando”, diz, apontando para onde ficava a casa, com a voz embargada pelo que poderia ter acontecido.
“Foi um sufoco. Eu ia morrendo, tentando salvar os meninos, os documentos. Respirei muita fumaça, tô com a garganta ardendo até agora”, relata o jovem, sorrindo vez ou outra. Comento sobre isso. E ele chora. Soluça.
A gente ri pra não chorar. A gente perdeu tudo, moça. Mas não adianta ficar só na tristeza. Minha mulher tá sem comer, só chorando desde domingo. Então fico fazendo brincadeira pra ela se animar, fico sorrindo, tentando ajudar.
O barraco da família de Davi era um dos mais “estruturados”, e ficava logo ao lado do local onde o incêndio se iniciou. Todos os móveis – armário, televisão, som, cama, ventilador – haviam sido encontrados no lixo e consertados, pouco a pouco, para equipar o “lar”.
Davi até tentou jogar água para debelar as chamas: “mas quanto mais água, mais fogo.”
‘Salvei só os documentos e a vida’
Água e fogo, aliás, se tornaram preocupações históricas da comunidade. Água porque, “todo inverno”, invade os barracos pelo chão e pelo teto. Fogo porque, em 2022, outro incêndio já havia ocorrido lá. Sem providências. Reincidência anunciada.
Vivendo no local há 4 anos, Conceição de Souza, 47, foi uma das primeiras a erguer um teto improvisado por lá, dividindo o espaço com os 4 filhos. A realidade foi mostrada em 2021 pelo Diário do Nordeste, no documentário “Sobre viver em tempos de pandemia”.
De lá para cá, dois anos depois, só o fogo foi capaz de mudar a realidade.
Por volta de 9h30 de ontem (22), quando o entulho queimado começou a ser recolhido por um trator da Prefeitura de Fortaleza, Conceição já tinha voltado de uma manhã de reciclagem. “Tem que trabalhar”, ela justifica, segurando numa sacola tudo o que restou além da própria vida.
“Eu tinha umas roupinhas que vendia num bazar, perdi tudo. Manequins também. Só salvei os documentos e a vida, que é o necessário. Sem a vida, a gente não constrói nada.”
Meu pensamento é ir pra um canto melhor, uma moradia melhor. Mas por enquanto, tenho que arranjar uma madeirinha de um canto e de outro pra levantar (o barraco) de novo. É a moradia da gente.
Outra urgência, agora, é conseguir roupas e material escolar para os filhos. Os uniformes, livros e cadernos foram destruídos pelo fogo.
‘As pessoas julgam’
Desde que soube do incêndio, a empreendedora Dayane Costa, 28, se mobilizou para levar alimentação às famílias: que permanecem por lá, na rua ou alocadas de favor em barracos vizinhos.
“A comunidade onde eu moro é igualzinha aqui, a maioria mora em casas improvisadas. E então a gente pediu ajuda aos comerciantes do bairro e vem duas vezes por dia, no café da manhã e no jantar”, diz, enquanto enche os copos das crianças com iogurte.
Ela, o esposo e uma amiga cozinham. Optaram por levar tudo pronto, porque as famílias sequer teriam onde cozinhar.
A ligação de Dayane com a Comunidade do Gengibre são as pessoas. Ela afirma que trabalhou com mulheres que vivem no local e que, agora, estão sem teto algum.
“As pessoas julgam quem mora aqui, dizem que é porque não querem nada. Mas as meninas, por exemplo, sempre se esforçaram, trabalharam pra conquistar o pão pros filhos. Querem uma moradia digna, mas por falta de opção vivem aqui”, lamenta.
O que diz o poder público
A reportagem questionou a Prefeitura de Fortaleza sobre que medidas foram e serão adotadas em relação às demandas da Comunidade do Gengibre. A gestão confirmou, em nota, que atendeu à ocorrência de incêndio por meio da Defesa Civil, no domingo.
“Os agentes verificaram a situação de 4 famílias que estavam presentes e fizeram a entrega de material assistencial, acompanhados por uma liderança comunitária da área. Foram entregues 6 cestas básicas, 6 mantas, 6 redes e 7 lonas plásticas”, lista a prefeitura.
Em relação às questões de moradia, o Município afirmou apenas que “atende a população interessada, por meio de cadastro gratuito, permanente e autodeclaratório que pode ser realizado nas Centrais de Acolhimento das Regionais”.
A nota garante ainda que a gestão “enviará equipes da Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) ao local para realizar cadastro social das famílias, identificando as principais demandas de assistência”.
De acordo com a prefeitura, 150 famílias foram beneficiadas com unidades habitacionais, em outubro de 2020, “Todas as famílias que viviam em condições precárias e vulneráveis a processo de alagamento foram removidas”, diz a nota.
“Sobre projetos habitacionais, a Prefeitura aguarda as diretrizes do novo Programa Minha Casa Minha Vida lançado, no último dia 14 de fevereiro, pelo Governo Federal”, acrescenta.
Quantas comunidades vão queimar?
Peço licença, leitor, para falar em primeira pessoa. Quando soube do incêndio no Gengibre, domingo, lembrei da Conceição, aquela que entrevistamos em janeiro de 2021. Ao chegar à comunidade, ontem, vi que o barraco dela virou cinzas. O pouco que havia se foi.
Em 2021, fomos lá justamente para mostrar o que faltava. Em meio a uma pandemia gravíssima, era preciso estrutura, casa saneada, comida, conforto, álcool em gel, internet para estudar. Conceição e os filhos não tinham nada disso. Faltar era verbo de ordem.
Dois anos depois, o cenário só não era exatamente o mesmo porque era muito pior. E a primeira conclusão que me veio à cabeça é a de que estamos parados no tempo. Ou de que, pelo menos, o movimento que se faz é mínimo diante do que se necessita.
O déficit habitacional, gente sem casa ou em moradias precárias, é gritante em Fortaleza. É grave, é urgente. A Comunidade do Gengibre é só um exemplo de como a insuficiência do poder público sobre isso é grave e pode ser letal. Há idosos doentes, crianças que escaparam por pouco.
Poderia ter sido pior. E muito. Quantas comunidades vão precisar virar cinzas para serem vistas, notadas, sentidas? Para quantas uma solução concreta, suficiente, virá enquanto é tempo?