"Tive que reaprender a falar": pessoas infectadas na 1ª e 2ª onda da Covid ainda convivem com danos

Relatório da Escola de Saúde Pública com pacientes hospitalizados pela doença aponta fadiga, queda de cabelo e falta de ar como principais sintomas após alta

Escrito por Lucas Falconery , lucas.falconery@svm.com.br
Recuperação
Legenda: Recuperação é celebrada por Luciano com a possibilidade de retomar parte das atividades da rotina antes da doença
Foto: Arquivo pessoal

Sem imunização, quando as vacinas eram escassas, Luciano Noronha e Carlos Viana foram infectados pelo coronavírus, internados em hospitais e convivem, ainda hoje, com sequelas da doença. Os dois, mesmo sem se conhecer, representam pesquisa cearense, que aponta sintomas como fadiga, falta de ar e dificuldade para andar no pós-Covid.

Os dados parciais, aos quais o Diário do Nordeste teve acesso, são do relatório “Follow-UP” produzido pela Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/CE), vinculada à Secretaria da Saúde do Estado (Sesa). Para a análise, foram ouvidas 470 pessoas de vários municípios cearenses atendidas no Hospital Leonardo da Vinci na 1ª e 2ª onda da doença.

Entre os principais sintomas físicos do pós-Covid aparecem fadiga/cansaço, alopecia (termo para queda de cabelo), falta de ar, perda de memória. O relatório também aponta ansiedade, insônia e angústia como principais sintomas psicológicos após internamento.

“A Covid-19 é definida como uma doença multissistêmica, porque os sintomas não estão restritos ao sistema respiratório, (mas a doença) ataca diversos órgãos”, pontua Pedro Braga Neto, neurologista no Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC).

Isso explica porque o vírus pode repercutir não só nos pulmões, mas também nos sistemas nervoso periférico e central, por exemplo. “Esses pacientes podem ter sintomas como mialgia, que é dor muscular, e fadiga que podem perdurar por meses”, acrescenta.

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Esse prolongamento dos sintomas pode ser classificado como Covid longa ou sequela. Melissa Medeiros, infectologista no Hospital São José, explica que a chamada Covid longa costuma durar até seis meses. Quando ultrapassa esse período, são sequelas.

“Com a Ômicron, temos pouquíssimos casos. Não só pela variante ser menos grave, como pela vacinação. Talvez alguns sintomas a mais em adolescentes. Alguns têm referido tosse persistente, dor de cabeça, sintomas mais leves”, detalha.

As infecções pela forma variante Delta, anteriormente dominante, podem estar ligadas a quadros mais graves nos pacientes, como observa Pedro. “Provavelmente as variantes mais agressivas tenham uma chance maior de gerar mais sintomas de Covid longa”.

Para Luciano Noronha Júnior, de 42 anos, o impacto da doença chegou de forma rápida e persistente. Em maio do ano passado veio o diagnóstico positivo, na semana seguinte a internação e, logo na sequência, a necessidade de coma induzido. Foram cerca de 50 dias hospitalizado.

“Todo mundo fala que a minha recuperação foi um milagre e a questão é que sequelas ficam. Eu tenho dormência permanente nos pés, na mão e no antebraço e não tenho a mesma força na mão direita”, observa. O paciente perdeu 20 kg, teve trombose nas pernas e um quadro de pneumonia durante o internamento.

Luciano
Legenda: Luciano têm o apoio da esposa Jessicca desde a confirmação da infecção pela doença
Foto: Arquivo pessoal

Ao acordar do coma, Luciano teve a rotina alterada devido às limitações impostas pela doença. “Quando eu tive alta da Covid em si, fui para a Casa de Cuidados do Ceará, lá eu tive apoio de suplemento alimentar, fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia e medicamentos”, lembra.

O motorista por aplicativos retomou as atividades ainda em outubro do ano passado para manter o sustento, mas a dor e a fraqueza fazem parte da rotina. “Tive que reaprender a falar na fonoaudiologia, muita fisioterapia e até hoje ainda não estou 100%, porque meu braço direito não tem a força que eu tinha antes”, reflete.

Luciano
Legenda: Acometimentos graves da doença, ligado à variantes mais intensas, podem gerar prejuízos mais extensos
Foto: Arquivo pessoal

Também na busca por restabelecer os movimentos, Carlos Viana, de 57 anos, recebe acompanhamento pós-Covid. “Eu fiquei com muita falta de ar e dor nas articulações, principalmente, nos membros superiores e inferiores. A fadiga ainda perdura”, relata.

O aposentado foi contaminado pela doença em março de 2021 e esteve internado por 21 dias no Hospital e Maternidade Dra. Zilda Arns Neumann. “Eu tive uma crise no hospital e, segundo os médicos, quase tive um ataque cardíaco por causa disso”, conta.

(As sequelas) me atrapalham nas atividades diárias de ajudar minha esposa, que eu não consigo mais porque me canso fácil. Banho e troca de roupa eu preciso do apoio dela
Carlos Viana
Aposentado

Carlos ressalta o comprometimento com as atividades físicas para conseguir superar os prejuízos da doença. “Com a fisioterapia eu estou começando a melhorar da respiração, é um processo lento, mas comparado quando eu cheguei lá, que eu nem conseguia me mexer… Hoje eu já faço os exercícios duas vezes por semana”, comemora.

Inflamações causadas pela doença

Os sintomas abrangentes podem estar relacionados ao processo inflamatório causado pelo coronavírus, como explica Pedro Braga Neto sobre os sintomas que perduram.

“Toxinas inflamatórias que geram acometimentos multissistêmicos da doença, porque nessa fase da Covid longa é pouco provável que o vírus esteja circulando. Seria mais a reação imunológica inflamatória que o vírus ocasionou em todo o corpo da pessoa”, frisa.

Melissa Medeiros observa, em geral, um potencial menor do prolongamento dos sintomas no contexto de alto percentual de imunizados na população e pelas características da variante mais comum no momento.

Às vezes as pessoas acham que enquanto estão tossindo estão doentes, mas não tem correlação. A tosse persistente é a repercussão da inflamação que ocorreu, principalmente porque a Ômicron afeta mais as vias aéreas
Melissa Medeiros
Infectologista

“Vimos uma redução na quantidade de pacientes com quadro de Covid longa ou pós-Covid, provavelmente porque se recuperam mais rapidamente. Provavelmente, o perfil da variante e a questão imunológica do paciente geram uma resposta mais rápida”, observa.

Unidade de atendimento pós-Covid

A recuperação de pacientes com sequelas da doença precisa acontecer com profissionais de diversas especialidades justamente pela amplitude dos prejuízos causados pela Covid. 

Em Fortaleza, a Casa de Cuidados do Ceará (CCC) oferece atendimento por equipe multidisciplinar incluindo enfermagem, medicina, fisioterapia, fonoterapia, terapia ocupacional, nutrição, psicologia e assistência social.

“O objetivo, entre outros, era de abrir leitos hospitalares para o atendimento de pacientes agudos na crise de Covid e ajudar na recuperação dos pacientes pós-Covid”, explica Ursula Wille Campos, diretora da unidade.

348
Pacientes atendidos na CCC. No momento da entrevista, no sábado (13), 97 pacientes estavam em atendimento, conforme a direção.

Os pacientes costumam permanecer na Casa de Cuidados por quatro semanas, mas o período pode se estender. “Em geral o paciente recebe alta para continuar a reabilitação em casa com apoio da assistência domiciliar se for necessário”, completa Ursula.

Normalmente, as pessoas atendidas vêm de uma internação longa em UTI e com sequelas graves com dependência de oxigênio, fraqueza muscular, muitos com traqueostomia, dieta por sondas e feridas por lesões de pressão.

“Nessa atual onda de Covid pela Ômicron estamos recebendo menos pacientes com dependência de oxigênio e suporte respiratório e mais pacientes com quadro de sarcopenia (perda de músculo) com fraqueza muscular e imobilismo e necessidade de alimentação por sonda”, observa a diretora.

Pesquisa com pacientes

Um banco de dados sobre pacientes internados por causa da Covid no Ceará é elaborado há dois anos pelas equipes da Gerência de Pesquisa em Saúde (Gepes) da Escola de Saúde Pública. O projeto é chamado ResCOVID.

São mais de seis mil inscritos na iniciativa e as entrevistas coletam informações também sobre as características sociodemográficas e clínicas, sintomas iniciais, alta e hábitos de vida.

"Há a ideia de ampliar esse banco para conhecer com mais detalhes as sequelas, inclusive, fazendo essa comparação de logo depois que o paciente saiu do hospital, quais são as que ficam e com um tempo depois”, explicou Jadson Franco, gerente da Gepes, à assessoria de comunicação da ESP.

O gestor explica a relevância da produção de conhecimento para a transparência, a possibilidade de publicações sobre o tema e para auxiliar na tomada de decisões governamentais. “O que a gente observa é que esses dados preliminares sinalizam uma necessidade de pensar assistência em saúde”, conclui.

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