Sobras da merenda escolar viram gás e fertilizante com uso de biodigestores em Fortaleza
Resíduos orgânicos são manejados de modo a reduzir os impactos à natureza e são tema de educação ambiental
Todo o ciclo acontece diante de olhos curiosos na Escola Colônia Z8, no Mucuripe, há 3 meses: os restos do lanche são depositados num biodigestor, reservatório onde matéria orgânica é decomposta. De lá, saem um gás usado na cozinha da própria escola e um fertilizante para rega das plantas. Isso faz parte de um projeto-piloto para reciclar resíduos orgânicos iniciado em 3 escolas e que deve alcançar 200 unidades.
Além de evitar que as sobras de frutas, arroz e carne sejam amontoadas em sacos de lixo, a iniciativa permite o uso do biogás, que representa uma vantagem também econômica, para o preparo de café e cozimento de legumes. Já o fertilizante renova o verde das plantas na escola e vai parar também nas hortas da comunidade.
O Diário do Nordeste publica, a partir desta segunda-feira (12), uma série de reportagens com ações, como esta dos biodigestores, que mudam o destino do lixo para reduzir os impactos ambientais e gerar valor com base em recursos tecnológicos.
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Em todo o processo, os alunos do ensino fundamental I e II participam de aulas práticas de educação ambiental. Do lado de fora da escola, dão eco às práticas para evitar desperdícios, como reflete o zelador na Escola Colônia Z8, Antônio Fábio da Silva.
“Já vieram 3 classes para a gente repassar as orientações, e as crianças vão tendo aquela consciência de que se pode reaproveitar os alimentos. Aquilo que iria para o lixo, hoje, traz benefícios para a escola e para as pessoas”, resume o funcionário à frente do projeto na unidade.
Fábio passou por um treinamento durante a instalação do equipamento que, inclusive, foi apelidado na escola. “Na hora do recreio, a gente fica observando as crianças para evitar acidentes e constantemente eles perguntam: ‘e aí, como está o Joãozinho? Já comeu hoje?’”
E o “Joãozinho come de tudo” das sobras picadas e depositadas numa quantidade de 4 quilos, todos os dias. O equipamento já é instalado com esterco para criar uma microbiota capaz de processar os alimentos.
O resultado disso, o biogás, enche uma espécie de bolsa fixa logo nos primeiros 15 dias de uso. Por meio de um encanamento, o gás chega até um fogão posto na cozinha da escola, aceso diariamente para o cafezinho da equipe e preparo de legumes.
Também sai do biodigestor um líquido rico em nutrientes para as plantas, que fica armazenado num recipiente com uma torneira na ponta. “Um litro de fertilizante que o biodigestor produz é dissolvido em 4 litros de água. Depois é só aguar normalmente”, explica Fábio.
Eles têm uma consciência para o futuro, porque o projeto é para o futuro. Ao invés de desperdiçar, reaproveitar
O projeto está em funcionamento também nas escolas José Dias Macêdo, no Meireles, e São Rafael, na Praia de Iracema. Outro equipamento está em teste numa quarta escola, e os equipamentos devem ser distribuídos em pelo menos 200 escolas.
Para isso, alguns indicadores serão analisados pela equipe do Laboratório de Inovação de Fortaleza (Labifor/Citinova), que deve avaliar a quantidade de resíduos utilizados e a geração de gás e fertilizante.
“A ideia é monitorar esses dados com o projeto-piloto e ver a efetividade, tanto na geração do biogás quanto do fertilizante líquido, para expandir para outras escolas, que atendam a demanda de espaço”, detalha Nirlania Diógenes, gerente de projetos na Citinova.
Outro aspecto importante para a ampliação das escolas com o equipamento é o engajamento dos estudantes nas atividades.
“Tem um apelo de educação ambiental muito forte junto com as crianças. Na demonstração, há uma aula em que se aprende matemática, porque fazem as multiplicações para saber quanto de água é preciso para o fertilizante”, conclui.
Educação ambiental
Entre proporções matemáticas e desafios lúdicos, a formação dos estudantes se amplia nas visitas ao Joãozinho. Nessa turma, está Ágata Mendes de Oliveira, que apesar de ter apenas 8 anos já fala com segurança sobre sustentabilidade.
“Eu enxergo que é muito importante cuidar do nosso planeta, porque pelo que eu sei, as árvores geram o ar que a gente respira. Se jogar lixo, vai maltratar muito a natureza. Então, é bom poder usar o Joãozinho para criar o gás”, considera.
As lições também se expandem para além dos muros da escola e refletem nas atitudes da família da Ágata. “Teve um dia que a gente foi para um lugar onde não estávamos achando lixo, mas a gente foi atrás até a gente encontrar”, lembra a pequena do 2º ano escolar.
Esse contexto é uma novidade para Bernardo Morais, de 8 anos, que do passeio aos fundos da escola, onde fica o equipamento, e da aula com o Fábio tira uma lição: não desperdiçar comida.
“Eu não sabia muito sobre o Joãozinho, descobri quase tudo agora. Eu sei que dali debaixo gera o gás, que vai para a cozinha e também uma parte que vai para as plantas”, compartilha.
Evitar que os alimentos cheguem no lixo tem uma relevância maior no atual cenário de Fortaleza: cerca de 35% do que é descartado das casas na cidade são resíduos orgânicos
“É um exemplo concreto, uma aplicação prática e real, de como o lixo acaba tendo um valor se for processado. A ideia de estar nas escolas é para gerar realmente energia, mas também numa proposta educacional”, aponta Luiz Alberto Sabóia, presidente da Citinova.
Assim, a ideia do projeto também é dar um novo significado ao olhar comum sobre o lixo como um material de valor. “Isso ajuda a mudar comportamentos, e a entender na prática o conceito da economia circular: usar o resíduo em outro ciclo produtivo”, finaliza.
Quais são os resultados?
A gerente de projetos Nirlania Diógenes indica a queda no descarte de alimentos e a redução do uso do gás comum como resultados já observados nas escolas onde a iniciativa funciona.
“O que a gente percebeu nesses primeiros meses, de relato das zeladorias e das diretorias, é que as escolas estão gerando menos resíduos e têm percebido uma economia no uso do gás GNE”, frisa.
Além disso, algumas instituições de ensino estão implantado hortas para o uso do biofertilizante e produção de legumes e alimentos, que também devem compor a merenda escolar.
Reciclar os restos de alimentos evita que o material chegue aos aterros sanitários e produza uma série de prejuízos ambientais, como analisa Lamarka Lopes, CEO da Consultoria Lamarka Ambiental e professora do curso de Engenharia Urbana e Ambiental da Universidade de Fortaleza (Unifor).
“A relevância não está ligada diretamente à geração do biogás, mas é intrínseca à retirada dos resíduos orgânicos do ambiente e o destino adequado, que é o tratamento ao invés de aterramento”, frisa.
Quando isso acontece na escola, há uma relevância maior, porque as unidades são consideradas grandes geradoras de resíduos.
O ponto de partida para a diminuição dos prejuízos ao meio ambiente são a implantação do correto gerenciamento dos resíduos nas escolas, com coleta seletiva, compostagem, criação de hortas, além da biodigestão e utilização dos seus subprodutos, bem como o aprimoramento das informações de conscientização ambiental a chamada ‘Educação Ambiental’
Lamarka contextualiza que as possibilidades para melhora da qualidade ambiental são vastas em Fortaleza, com a produção de estudos diagnósticos nas universidades e que os projetos já em execução precisam ter continuidade.
“O ideal seria uma boa ideia funcionando efetivamente em todo o município do que várias ideias iniciadas e paradas”, finaliza.