Escola de 'princesamento'? Fortaleza teve colégio para moças no século XX
Em 1937, a Escola Doméstica abria as portas para as jovens da elite cearense; conheça a história
As meninas que hoje correm livres e despreocupadas com o cabelo flutuando ao vento do fim de tarde, na Praça Luiza Távora, podem não imaginar, mas ali já existiu um palacete “digno de princesas”. Há 84 anos, o local abrigou o Castelo Plácido de Carvalho, sede da Escola Doméstica de Fortaleza, onde as jovens da elite cearense exibiam penteados e roupas impecáveis para se formarem donas de casa.
Segundo o pesquisador, memorialista e coordenador da biblioteca do Instituto Tonny Ítalo, Lucas Júnior, a escola foi fundada em 1936, mas abriu as portas somente no ano seguinte. Lucas documentou o fato, em seu blog, a partir de consultas no acervo do extinto jornal Correio do Ceará e da Academia Cearense de Letras.
As alunas tinham as seguintes disciplinas para aprenderem a administrar o futuro lar: cozinha teórica e prática, costura, desenho, música, cultura física, jardinagem, leitaria, lavanderia, corte e confecções.
Já para a preparação para a maternidade, as jovens aprendiam medicina prática e puericultura (área da saúde para os cuidados infantis).
Não há, contudo, informações sobre a idade das estudantes, mas acredita-se que a formação era voltada para pessoas a partir de 14 anos, como ocorrera em escola homônima e precursora do modelo, em Natal, no Rio Grande do Norte.
Também não há dados sobre o número de matriculadas. O memorialista observa que a instituição foi mantida graças ao apoio do então governador, Menezes Pimentel, e do diretor de instrução (equivalente a secretário de Educação), Perboyre e Silva.
“A Escola Doméstica de Fortaleza recebeu subsídios do Estado, como a ajuda no aluguel do Palacete do Plácido, além de materiais afins”, sublinha Lucas.
Após as formações das primeiras turmas, a instituição foi transferida para o Palacete Gentil (antiga Boulevard Visconde de Cauhype), hoje Avenida da Universidade, 2995, onde fica a Universidade Federal do Ceará (UFC).
Não se sabe ao certo quando a escola foi fechada. Mas, já em 1942, essa segunda sede passou a ser o Ginásio Americano.
Depois disso, segundo o acervo do memorialista Miguel Nirez de Azevedo, a UFC comprou a área e demoliu a estrutura para instalar as pró-reitorias.
Como era a rotina na Escola Doméstica?
As alunas da Escola Doméstica de Fortaleza tinham uma rotina de ensaios de uma vida predestinada ao marido e à casa.
Educada na Escola Doméstica de Natal, a primeira diretora da instituição de Fortaleza, Maria Odete O’Grady, dizia acreditar que, “toda mulher, naturalmente, se preocupa com a organização do seu lar no futuro”.
“E, como se sabe, nos colégios existentes em Fortaleza, tem sido muito esquecido esse lado, esse aspecto da educação: a aprendizagem doméstica. Com uma escola para preencher essa lacuna, podemos dizer com orgulho: as jovens cearenses já podem realizar o seu sonho; já podem ser completas donas de casa”, dissera.
As estudantes também tomavam banho de sol e praticavam esportes. Nas aulas, aprendiam sobre etiqueta social, como arrumar a casa e receber as visitas com elegância, por exemplo.
Conforme matéria publicada na época, eram “cultivadas por todo o corpo discente o sentimento estético e o embelezamento do lar, quer nos dias ordinários, quer nos de festas e recepções”.
Como surgiu o "princesamento" feminino?
Os estereótipos de gênero, que delimitam o espaço feminino na sociedade, foram construídos com a história do País. A professora de História do Instituto Federal do Ceará (IFCE) e coordenadora dos Núcleos de Gênero e Diversidade Sexual (Nugeds), Maria da Conceição Silva Rodrigues, lembra que a educação brasileira foi excludente e patriarcal desde o início da sua concepção.
No período colonial, destaca, os padres jesuítas trouxeram a ideia de instrução para a catequização de indígenas e para uma formação primária para os filhos dos colonos. Nesse processo inicial, contudo, a mulher foi excluída.
A estrutura escolar para o público feminino surgiu somente com a chegada dos primeiros conventos no Brasil, mas focada apenas na religião e nos afazeres domésticos. Em meados do século XVIII, ocorreu um movimento de educação formal, todavia, mantendo o padrão para as filhas da elite brasileira.
“Disciplinas como matemática e geometria, consideradas complexas e que exigiam uma racionalidade, não eram oferecidas às mulheres, porque elas eram consideradas seres inferiores do ponto de vista cognitivo, como se não fossem aptas a aprendê-las”, explica.
Somente no século XIX, após a primeira constituição brasileira, ocorre a institucionalização das escolas, mas não houve avanços. Meninas estudavam em salas diferentes das turmas de meninos.
“E a educação das mulheres seguiu esse preceito de que elas, no máximo, precisavam aprender a ler e a escrever, até para não fazer feio ao lado dos maridos na sociedade”, contextualiza.
“Ela deveria ser letrada, mas nada de disciplinas complexas, porque isso a tornaria menos interessante. As mulheres, então, vão se dedicar a expressões artísticas, como aprender a tocar um instrumento musical”, complementa.
A professora acrescenta que algum conhecimento de arte ou música era útil para entreter as visitas, mas suas principais atribuições deviam estar ligadas aos afazeres domésticos.
Toda essa trajetória foi o que levou — mesmo após quatro anos da conquista do direito ao voto (1932) no Brasil — ao surgimento de uma escola ainda mais elitizada para educar jovens para serem esposas e mães.
“Ideologicamente, há um sistema patriarcal dizendo qual é o lugar da mulher e qual o seu ideal. Uma série de pseudociências foram criadas para justificar que a mulher ocupasse espaços de subalternidade, como a frenologia”, exemplifica a teoria inverídica de que as mulheres possuíam crânios menores, portanto, seria menos capazes.
Além disso, aponta a docente, havia a necessidade de formatação limitadora. “Ela é um ser débil, inferior cognitivamente. Então, precisamos moldá-la para ser o modelo ideal que queremos. Que modelo de mulher ideal é esse? É a mãe dona de casa e prendada”, enfatiza.
O problema não é a educação doméstica
A professora de História do Instituto Federal do Ceará (IFCE), Maria da Conceição Silva Rodrigues, avalia que o aprendizado dos afazeres diários é necessário, mas não apenas para um único gênero.
“O problema é que essa educação doméstica é perpassada pela ideologia do patriarcado, na qual o sujeito social que terá a obrigação de estar no lar, cuidando dos filhos e da casa, é a mulher”, evidencia.
“Isso é bastante problemático. Alimenta-se uma estrutura de produção e reprodução. Ou seja, para que os homens estejam no espaço público e acumulando capital, juntando dinheiro, eles têm, na retaguarda, mulheres fazendo um trabalho doméstico gratuito para eles e sem reconhecimento social, como se fosse uma obrigação e algo inato, quando não é”, afirma.