De culto à Adoração ao Santíssimo: pessoas LGBTI+ protagonizam celebrações em igrejas de Fortaleza

Líderes religiosos e fiéis católicos e evangélicos descrevem avanço gradual da diversidade dentro das instituições

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
acolhimento
Legenda: Líderes e membros das religiões têm se posicionado em apoio ao acolhimento de todos, sem distinção de gênero ou sexualidade
Foto: Kid Júnior

É em espaços de amor e fé onde, muitas vezes, o ódio se propaga. “Você vai pro inferno”, “Deus não te aceita”, “tua forma de amar é de Satanás” são agressões ouvidas por muitos fiéis LGBTI+ a vida toda, desde a infância. E vários deles, apesar disso, perseveram na fé.

Na contramão do que tem sido regra na maioria das igrejas cristãs, líderes e membros das religiões têm se posicionado em apoio ao acolhimento de todos, sem distinção de gênero ou sexualidade.  

Em São Paulo, por exemplo, o pastor e fundador da Igreja Betesda, Ricardo Gondim, declarou publicamente que “daria voz” aos homossexuais, permitindo que participem ativamente e até ocupem cargos religiosos.

Além disso, grupos e até igrejas inteiras são formados para acolher lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, travestis e quaisquer identidades.

Em Fortaleza, o movimento se repete. O Diário do Nordeste visitou igrejas e grupos religiosos para acompanhar reuniões e celebrações formadas ou lideradas por pessoas LGBTI+. Entre os eventos, estão culto evangélico e um dos mais comuns rituais da Igreja Católica: a Adoração ao Santíssimo.

A reportagem ainda ouviu católicos e evangélicos cuja trajetória se deu em berço cristão, passou pelas turbulências de ser LGBTI+ e se firma, hoje, em espaços onde podem professar a fé com liberdade e respeito.

“Homossexualidade não é pecado”, diz pastor

Legenda: Pastor Johny prega na Igreja Betesda de Fortaleza
Foto: Divulgação

O acolhimento e o incentivo à participação de pessoas LGBTI+ nas atividades religiosas já eram incorporados não só ao discurso, mas às pregações de Johny Loiola, 37, pastor da Igreja Betesda de Fortaleza, antes mesmo de a instituição de SP se pronunciar sobre o tópico.

Afirmar “categoricamente” durante os cultos o “compromisso em dizer que a homossexualidade não é pecado e que todas essas pessoas são bem-vindas para a comunidade” já fez Johny assistir ao afastamento de pessoas da igreja.

Óbvio que já tivemos perdas, mas quando procuramos saber as razões, as pessoas nunca deixaram claro que era sobre preconceito. Acho que tem frequentadores discordantes, mas são envergonhados de dizer ou estão dispostos a aprender.
Johny Loiola
Pastor da Igreja Betesda Fortaleza

Johny afirma que a Betesda “já recebe pessoas LGBTQIA+ há algum tempo”, e elas “têm participado ativamente da comunidade, seja à frente de algum ministério, seja participando do grupo de louvor e de corais”.

“É fundamental a gente abraçar essas pessoas. Elas já sofrem preconceito e estigma social pra além do espaço religioso, e dentro dele pode se potencializar esse estigma, essa exclusão. O papel do pregador e de uma igreja é de afirmar a vida das pessoas, e não de excluir”, reforça.

Essa comunidade do reino de Deus precisa se apresentar como uma casa de proteção. A Primeira Carta de João diz: ‘o amor lança fora o medo’. Imagine você entrar num espaço de fé e ter medo de ser quem você é?
Johny Loiola
Pastor da Igreja Betesda de Fortaleza

A posição de Johny não é individual dentro da igreja na capital cearense. Durante fórum sobre os fios conceituais da instituição, a defesa dos direitos das pessoas LGBTQIA+ foi reforçada pelos líderes evangélicos.

“Está evidente: você olha pro lado na nossa comunidade e vê casais lésbicos, gays. Somos uma igreja afirmativa da vida e das pessoas. Quem quer que esteja conosco, afirmamos a vida e o amor.”

“Perdem tempo com algo que Deus não se preocupa”

pastoras Diana e Selly
Legenda: As pastoras Diana e Selly Moreira atuam há 7 anos numa igreja criada com propósito de incluir a todos
Foto: Kid Júnior

Após uma vida de recusas, as pastoras Diana e Selly Moreira, de 49 e 48 anos, abriram em Fortaleza a sede de uma igreja que já nasceu sob a premissa de incluir a todos: a Cidade de Refúgio (CR), erguida no Ceará e liderada pelo casal há 7 anos.

Oriunda de uma família imbricada na igreja, com pai diácono e irmão e tios pastores, Diana colecionou rejeições por ser lésbica. A sentença da revelação da sexualidade aos parentes veio como bala: ‘não apareça nem na calçada, você é a vergonha da família’.

E a rejeição familiar não foi a primeira. “Aos 17 anos, namorei uma menina, e saí da igreja porque eu me sentia suja, impura. Aprendi que o fato de eu pisar na igreja, um lugar santo, em pecado, era um desrespeito”, relembra Diana, que chegou a casar com um homem na “tentativa da cura”.

Eu era de uma igreja evangélica tradicional. Quando a gente sentia que tinha um ‘problema’, era doutrinado que ‘a família’ resolveria, que quando a gente tivesse filhos se libertaria.
Diana Moreira
Pastora

A real liberdade, porém, Diana encontrou há 11 anos, ao iniciar o relacionamento com Selly. Hoje, dividem não só o sobrenome, o teto e a vida, mas o ofício de pastoras da igreja evangélica, localizada no bairro Parquelândia, em Fortaleza.

“Durante muito tempo, achei que Deus não me amava. Era um Deus perverso, injusto, que amava só héteros. E quando a gente conhece a inclusão, conhece o verdadeiro cristianismo: de um Deus que ama a todos, aceita a todos. E que o céu é pra todos”, frisa Selly.

Bíblia
Legenda: Diana comenta que muitas pessoas chegam à CR “para ver se é uma igreja de verdade” – algumas chegam a perguntar se lá funciona uma boate
Foto: Kid Júnior

A CR é uma “igreja normal”, como elas reforçam; frequentada, em maioria, por pessoas e casais LGBTI+ que encontram lá um espaço de liberdade para professar a fé sem medo – mas também por pais e mães cujos filhos não têm acolhimento em igrejas tradicionais.

“Um pai e a esposa dele chegaram com a filha de 18 anos, lésbica, porque na igreja deles ou ela é celibatária ou a namorada dela é só ‘amiga’”, cita Diana. “Outra mãe chegou à nossa igreja e disse que não consegue permanecer num lugar que exclui a filha dela”, complementa Selly.

Nossa igreja prega o respeito, a união e a comunhão da família. Não promove a separação dela. Não há separação por cor, situação econômica, gênero ou sexualidade. Deus criou e amou a todos, se sacrificou para dar salvação a todos que nEle creem.
Diana Moreira
Pastora
 

As pastoras comemoram a multiplicação de sedes da Cidade de Refúgio – fundada em SP por uma ex-pastora de igreja evangélica tradicional que chegou a pregar a “cura gay” –, e pontuam que o que as instituições deveriam fazer é simples: “pregar o verdadeiro evangelho, do Cristo que ama”. E não o contrário.

“Ao pregar um Cristo carrasco, elas acabam excluindo, jogando fora pessoas que amam a Deus e professam a mesma fé. Enquanto estão preocupadas com um casal de meninas e meninos, o mundo está se desmanchando de coisas terríveis. Estão perdendo tempo com algo que Deus não se preocupa”, resume Selly.

“Não temos que recortar nossa fé ou nossa sexualidade”

Legenda: Thiberio Azevedo, LGBT e coordenador do grupo Diversidade Católica
Foto: Thiago Gadelha

Foi com a ideia de construir um ambiente “em que LGBTs cristãos possam vivenciar a fé sem se sentirem menosprezados” que surgiu, em 2014, o grupo Diversidade Católica, coordenado pelo ator e produtor cultural Thiberio Azevedo, 36.

Semanalmente, junto a ele, um “grupo-irmão” mais novo, Porta da Misericórdia, ocupa um dos salões da Paróquia Nossa Senhora das Dores, em Fortaleza, fortalecendo a premissa declarada pelo Papa Francisco, neste ano: “Todos. Na igreja há lugar para todos.”

Não temos que recortar nossa fé ou nossa sexualidade e gênero pra viver uma ou outra, podemos viver isso integralmente. Esse é o grande chamado de Deus quando Ele fala ‘amar ao próximo como a si mesmo’. Precisamos nos amar a ponto de sermos inteiros.
Thiberio Azevedo
Coord. do grupo Diversidade Católica

Um dos membros é o psicólogo Felipe Costa, 30, que se afastou da igreja pelas tentativas de “ser curado” da homossexualidade, e se reaproximou por causa do Porta da Misericórdia

“O que mais me fixou no grupo é estar dentro da Igreja, com a possibilidade de comungar, e me sentir acolhido. Não me sinto mais clandestino”, resume, relembrando que, em outra paróquia, o grupo chegou a ser hostilizado por um fiel.

“Aqui dentro dessa igreja não sinto mais nenhuma rejeição, me sinto acolhido. Numa paróquia anterior, fomos atacados. Uma pessoa de outro grupo veio, acolhemos, e no meio da nossa reunião ele soltou todas aquelas máximas da Bíblia”, lamenta.

Legenda: Grupo Porta da Misericórdia é formado por pessoas LGBTI+ e se reúne em paróquia de Fortaleza
Foto: Thiago Gadelha

O psicólogo pondera que, apesar do acolhimento, manter um grupo de orações voltado para pessoas LGBTI+ ainda é necessário, já que o processo de “aceitação” por parte dos paroquianos ainda está em curso.

Dentro da cultura da igreja, o assunto não vai ser bem aceito nos grupos gerais. Precisamos estreitar o diálogo com a igreja pra ela nos apresentar. Quando ela nos reconhece, ainda o faz silenciosamente. Mas quando o padre coloca isso na homilia, permite que as pessoas reflitam sobre a importância de acolher a todos.
Felipe Costa
Psicólogo

Para o estilista Júnior Ferreira, 31, também membro do grupo católico, ter um espaço onde possa professar a própria fé respeitando a si e a todos é romper uma vida de violências. “Participei de comunidades em que tudo sempre se voltava pra reorientação sexual, a ‘cura gay’. E percebi que não queria isso pra minha vida”, conta.

Legenda: Júnior, membro do grupo Porta da Misericórdia
Foto: Thiago Gadelha

O jovem destaca que, até hoje, “espanto” é a reação natural – e incômoda – de várias pessoas que o escutam falar sobre manter um grupo de oração para LGBTI+ dentro de uma paróquia católica.

Quando conto, as pessoas perguntam ‘e pode?!’ ‘mas o padre sabe?!’ O Papa Francisco está aí quebrando um milhão de protocolos, dizendo que temos que ter uma igreja com portas abertas para todos.
Júnior Ferreira
Estilista

“Meus amigos me questionam como é que eu participo. É muito difícil um LGBT querer um convívio maior com a igreja, porque é um sim pra 30 nãos. Aqui, somos acolhidos. Mas em outras paróquias, não temos esse acolhimento”, lamenta.

Para o coordenador do Diversidade Católica, Thiberio Azevedo, a chave para abrir as portas do acolhimento em toda igreja, seja católica, seja evangélica, é uma só: entender que Deus é amor.

“Deus é amor e Ele me fez. Que Deus amor é esse que me criaria pra ser um homem gay, viver numa sociedade que me odeia, e no final de tudo, depois de sofrer a vida inteira, eu ainda iria pro inferno? Que amor é esse?”

Serviço

Igreja Cidade de Refúgio Fortaleza
Av. Jovita Feitosa, 1088 - bairro Parquelândia
Instagram: @cr_fortaleza

Grupo Porta da Misericórdia
Paróquia Nossa Senhora das Dores - bairro Farias Brito
Instagram: @portadamisericordia

Igreja Betesda Fortaleza
R. Cap. Gustavo, 3552 - bairro Joaquim Távora
Instagram: @betesdafor

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