Como cuidar de comunidades escolares afetadas por ações de violência extrema como o caso em Sobral?
O Diário do Nordeste entrevistou a doutora em educação e professora da Faculdade de Educação da Unicamp e coordenadora associada do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM), Telma Vinha, sobre o assunto
A ação de violência extrema que atravessou a rotina de professores, alunos, gestores, trabalhadores da educação, pais e responsáveis da Escola de Ensino Médio Professor Luís Felipe, no bairro Campo dos Velhos, em Sobral, no Norte do Ceará, na última quinta-feira (25), no qual 2 estudantes foram mortos por tiros disparados de fora para dentro da unidade e 3 ficaram feridos, deixou impactos imensuráveis. A situação traumática demanda agora inúmeros cuidados que vão do acolhimentos a todos os afetados à implementação de ações que reconheçam a condição da tradicional escola marcada agora pela tragédia.
Mas, o que é preciso fazer? Quais as medidas a serem tomadas diante de um episódio atípico e doloroso? E o que é preciso priorizar no recomeço após a tragédia? O Diário do Nordeste entrevistou a doutora em educação e professora da Faculdade de Educação da Unicamp e coordenadora associada do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM), Telma Vinha, sobre o assunto.
Telma é uma renomada pesquisadora brasileira cujo trabalho se debruça sobre temas ligados a clima e convivência escolar, conflitos, violências e desenvolvimento socioemocional. Ela atua na produção de estudos que, além de outras informações, fornecem dados sobre ocorrência de ataques nas escolas brasileiras, com detalhamento das causas, das características e também de estratégias de prevenção.
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Ela, junto a demais pesquisadores, tem participado, nos últimos anos, de ações de resposta a casos concretos de ataques de violência extrema em escolas no Brasil, sistematizando as práticas vivenciadas e contribuindo para o registro e formulações de pesquisas dessas experiências.
Na entrevista, dentre outros pontos, Telma mencionou o documento "Violência extrema contra as escolas: orientações para preparação e resposta", uma iniciativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) elaborado por pesquisadoras integrantes do Gepem – Unicamp/UNESP) e do Grupo de Ética, Diversidade e Democracia na Escola Pública (GEDDEP) do Instituto de Estudos Avançados da Unicamp (IdEA).
O que ocorreu no Ceará em uma escola em Sobral é essa violência extrema que chega de fora para dentro da escola como reflexo da realidade social que circunda essa instituição, mas não tem características idênticas a atentados como os ocorridos no Brasil nas últimas décadas, em escolas como as de Realengo, Blumenau e Suzano. O que é preciso olhar diante dessas situações?
A escola faz parte da sociedade e aí nós temos manifestações mesmo que ocorrem na sociedade, aquilo, as violências que ocorrem na sociedade, ela também se manifesta na escola. E a gente nunca chama um ataque de violência na escola ou mesmo um tráfico de drogas, como violência na escola, mas uma violência que invade a escola. Esse é o típico caso de uma violência que invade a escola. E invade num local e por isso gera também tanto impacto, porque é um local que deveria ser um local protegido. É um local que as pessoas deixam os filhos imaginando que lá é um local tão seguro como a família, sabe? Então isso é sempre muito difícil. Ele gera um impacto social muito grande.
Quando a escola é atacada, seja a violência dentro, quando atiram na escola, seja esse tipo de violência, você amplia muito a reação social e política, porque é um local que é um espaço comunitário. É um local que deveria ser de proteção e de cuidado. Então, a reação, inclusive das pessoas, é de muita de muita comoção e que tem que ser mesmo, porque isso é percebido como local coletivo e seguro.
E é ilusão nós acharmos que as violências que estão ao redor da escola, elas não afetam de alguma maneira. A gente tem visto cada vez mais, como período de adolescência, é um período muito frágil, muito fácil, de cooptação.
Para você ter uma ideia, em nossas pesquisas (sobre violência na escola), nós encontramos, por exemplo, que 80% dos autores são meninos menores de 18 anos. Então, isso mostra a vulnerabilidade à fragilidade do adolescente e como é fácil o envolvimento deles com violência extrema e nos casos de ataques, por exemplo, efetivamente realizados, para se ter uma ideia, somente uma é menina. Então, tem uma questão também relacionada à masculinidade, ao envolvimento da violência, essas cooptações.
Embora a maioria dos episódios de violência extrema nas escolas no Brasil esteja associada a ataques planejados com uso de armas, notamos que há variações nas formas desse fenômeno que é sempre trágico e traumático. Esses padrões de perpetuação da violência seja contra a escola ou na escola estão cada vez mais variados?
A violência nas escolas tem níveis diferentes. Tem, por exemplo, uma violência estrutural, que é o racismo, misoginia e assédio. Você tem uma violência da própria escola, mas tem as violências como você está mencionando que é um exemplo chamado de violência extrema. Mas você tem um violência extrema, que é um ataque feito, por exemplo, por estudantes, que é o que a gente pesquisa e o que diferencia do que aconteceu (em Sobral) é que os ataques, quando eles estão ocorrendo na escola, igual todo esse fenômeno, ele geralmente no Brasil é cometido por um estudante ou ex-estudante.
Eles são intencionalmente ocorridos na escola. Mas eles são planejados no sentido de causar a morte de uma ou mais pessoas na escola. Ele tem um planejamento que é de vários meses, às vezes anos, de semanas. Ele emprega uma arma. Então a ideia desse tipo de violência ele busca, por exemplo, quando um estudante ou ex-estudante volta para a instituição para atacar. Ele se caracteriza muito como um crime de ódio ou, no caso de jovem, um ato infracional ou movido, por ressentimento. Então ‘eu sofri bullying aqui agora eles vão ver o que vai acontecer, eles vão me respeitar’.
Isso é diferente do que aconteceu, que parece muito sensato de ser escola. Não é porque o objetivo é a escola, pelas informações que a gente tem até o momento, mas é porque o alvo estava na escola. É diferente de ‘eu vou atacar propositalmente uma escola’.
No caso dessa violência ocorrida em Sobral, quem está à frente do poder público, da gestão, das instituições que estão acompanhando de perto precisa agora atuar de que forma? O que é preciso fazer para acolher quem sofreu e traçar planos de mudança?
Eu vou te dar uma resposta muito com base agora no que se orienta a fazer quando uma escola é atingida por uma violência dessa. A gente trabalhou na recuperação de escolas assim e a sabe que esse tipo de evento é altamente traumático. Então, a gente sempre fala que nós vamos trabalhar com as pessoas e a comunidade afetada. E isso não é trabalhar necessariamente com quem foi atingido por um tiro, porque você tem profissionais que estão na escola, que cuidavam desses alunos e são afetados.
Os estudantes, por exemplo, depois, muitas vezes ao ouvirem um barulho de porta batendo começam a ter medo. Eles se assustam, porque eles têm trauma, tem estresse pós- traumático, então é uma situação de violência que gera um impacto muito grande naquela comunidade.
A gente trabalha com um documento que a gente elaborou junto com a Unicef, com a Undime e com o Conselho Nacional de Secretários de Educação que detalha mais ou menos passos de como se cuida de uma escola assim. Porque é completamente diferente de um aeroporto quando atacado. Porque no aeroporto eu não volto, não conheço as pessoas, entendeu?
Então na recuperação das escolas atacadas geralmente são três fases. Você tem que identificar quem são as vítimas diretas e indiretas, por exemplo, familiares, etc. E aí você vai ajudar essas pessoas com com medidas de acolhimento, ver quais são as necessidades delas, acompanhar. Observar os familiares dessas crianças, a saúde física e mental. Vai se trabalhar também com eles, por exemplo, pedir representantes da família para ter contato.
A gente tem que ter um local de acolhimento próximo à escola. Sempre dizemos que, primeiro você começa voltando, professores e funcionários. É melhor não entrar na escola ainda. Eles têm que primeiro ter um espaço. Por exemplo, uma outra escola, uma paróquia, algum local, um salão, que eles possam ser acolhidos. Onde serão feitas rodas de diálogo, de atendimento para falar sobre o que eles estão sentindo.
Outras sugestões é que você precisa cuidar de atos administrativos. Se você tem um professor que está trabalhando na escola e que vivenciou isso, às vezes ele está em choque, ele está muito abalado. Você tem que providenciar também o afastamento. Se ele trabalhar na prefeitura e no estado, que ele seja afastado dos dois lugares. Então, tem inclusive cuidados burocráticos que são precisos para atender essas vítimas.
E como organizar também o retorno às aulas para não expor ainda a comunidade escolar?
A cidade tem que cuidar também da limpeza da escola, que tem que ser feita por agente externos, não por funcionários. Nos trabalhos de recuperação de escolas atacadas, tivemos contato com funcionários que sentiam um cheiro de sangue por muitas vezes, sabe? Abalados porque conheciam as crianças. Tem inúmeros cuidados imediatos e depois você tem mais duas fases de ampliação dos cuidados posteriores.
Conheço escolas, por exemplo, em que eles (gestores) fizeram voltar às aulas dois dias depois (da ocorrência), sendo que os professores ainda estão traumatizados, estudantes traumatizados e você tem que ir aos poucos, sabe? Começa professor, prepara o ambiente, prepara como receber os alunos.
Antes de receber os alunos, você tem que se reunir com as famílias. Então você tem que dar suporte paulatino para aquela escola voltar a abrir, porque, do contrário, as pesquisas indicam que depois de dois ou três meses você tem um adoecimento grande dessa comunidade, porque não foi cuidado. Fomos em determinadas escolas e vimos que esses professores e estudantes foram revitimizados por não haver um preparo prévio.
Telma, você falou em um ponto que é o aspecto burocrático. Vivemos em uma cultura na qual há certas burocracias que se distanciam das demandas da vida real. E quando temos uma situação de violência extrema, nota-se que é preciso rever procedimentos dentro da própria rede de ensino, atuação da gestão pública, considerando inclusive a vulnerabilidade dos territórios nos quais as escolas estão inserida, se alunos são ameaçados, se há riscos… Às vezes, as normas parecem desprezar a realidade, como mudar isso em casos de violência extrema à escola?
Então, mesmo com normas, se você pega o Estatuto da Criança e do Adolescente, pega a Constituição, todas essas normas colocam que os nossos adolescentes, as nossas crianças, têm que ser sempre prioridade máxima. Se você pegar a recomendação do Conselho Nacional de Justiça de dezembro de 2024 (recomendação 114, de 10 de dezembro de 2024) sobre violência escolar, lá diz que tudo o que envolver violência com relação a adolescente tem que ter prioridade absoluta. Então, a norma também depende da boa vontade das pessoas.
Então, se o menino está sendo ameaçado, tem risco de vida. É prioridade número um. Isso tem que ser resolvido. Isso tem que passar por cima dos processos burocráticos. Porque é direito à vida, é proteção à vida. Inclusive, a escola pode acionar o Ministério Público dizendo, eu preciso de uma vaga urgente porque o aluno está sendo ameaçado. O que não pode é inação, o que não pode é não fazer.