Cobra que gosta de fogo? Conheça espécie rara que vive no Ceará e pode chegar a mais de 3 metros
Projeto originado na UFC ajuda a proteger a serpente malha de fogo e seu papel no ecossistema, que vai do controle de populações de animais ao uso médico do veneno
A maior serpente venenosa das Américas também vive no Ceará. Com capacidade de se desenvolver em mais de 3 metros de comprimento, a Lachesis muta é conhecida na maior parte do Brasil como surucucu, mas por aqui ganhou um nome mais regional: malha de fogo. Hoje ameaçada de extinção, a víbora está restrita a uma pequena área serrana do Estado e acumula mitos que podem prejudicar sua preservação.
Neste 16 de julho, quando é celebrado o Dia Mundial da Cobra - oportunidade para desfazer mitos e conscientizar sobre a importância desse animal -, o Diário do Nordeste explica parte do comportamento dessa serpente e seu papel no ecossistema, que vai do controle de outras populações de animais ao uso médico do veneno.
Quem conhece bem a malha de fogo é Thabata Cavalcante, bióloga, mestra em Sistemática, Uso e Conservação da Biodiversidade pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenadora do Projeto Malha de Fogo, criado em 2021 como parte de sua pesquisa de mestrado.
Segundo ela, a espécie tem duas principais populações:
- Lachesis muta muta, que ocorre na Amazônia
- Lachesis muta rhombeata, que ocorre na mata Atlântica
A subespécie da mata Atlântica, que também está em território cearense, foi inserida na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional Para Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN) e na Lista Vermelha de Répteis Ameaçados do Ceará, embora não esteja no rol do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Detectada pela primeira vez no Ceará em 1999, ela fica restrita à região do Maciço de Baturité, mais especificamente em quatro cidades: Baturité, Mulungu, Pacoti e Guaramiranga.
“A malha de fogo só ocorre em florestas úmidas, então ela não vai ficar na parte mais seca e baixa da região que a gente conhece como caatinga, no semiárido. A gente também tem alguns relatos em outras serras, como a da Aratanha, mas ainda não confirmou”, explica a bióloga.
espécimes já foram encontrados pelo projeto desde 2021, sendo 16 vivos e 14 mortos.
Gosto por fogueiras?
Fora do Ceará, a Lachesis muta é mais conhecida por surucucu, pico-de-jaca ou bico-de-jaca. Esses nomes foram dados pelas pessoas por causa da semelhança das escamas protuberantes com a casca desse fruto. Porém, outras inspirações levaram a mais um batismo pelos moradores do Maciço de Baturité.
O nome “malha de fogo” vem do mito local de que a serpente, quando vê uma fogueira ou uma lareira, se joga em cima do fogo para apagá-lo.
Thabata afirma que isso não acontece, dada a preferência da cobra por áreas úmidas. No entanto, os cientistas têm duas hipóteses para justificar a crença popular.
“As serpentes peçonhentas, como cascavel, a malha de fogo e a jararaca, identificam as potenciais presas pelo calor também. Então a gente acredita que, quando tem uma área de fogueira ou de brasa, ela sente esse calor e vai atrás para ver o que é”, considera.
A outra é que, por serem animais ectotérmicos - ou seja, não regulam sua temperatura corporal de maneira individual e dependem do ambiente externo -, elas precisam do sol e de áreas mais quentes para se aquecerem.
Características da malha de fogo
Outras características da espécie incluem:
- Cor: tem coloração avermelhada ou alaranjada, que lembram a própria cor do fogo;
- Tamanho: cascaveis e jararacas podem atingir entre 1,5m e 2m, mas a malha de fogo pode chegar a mais de 3 metros. No Ceará, segundo Thabata, a maior registrada pelo projeto foi um macho de 2,14m;
- Manchas no topo da cabeça: funcionam como uma impressão digital e não se repetem em animais diferentes;
- Escama modificada: em vez de aneis como uma cascavel, a ponta da cauda da cobra possui uma escama modificada que se assemelha a uma unha e faz barulho em contato com a vegetação;
- Reprodução: elas botam ovos e cuidam deles por mais de 100 dias até os filhotes eclodirem.
Sobre os abrigos, a bióloga afirma que as malhas de fogo preferem florestas bem fechadas e conservadas. Em várias ocasiões, elas são encontradas enroladas em grandes raízes, debaixo da serrapilheira (camada no solo formada por restos de vegetação) ou dentro das tocas de tatus e outros mamíferos.
São perigosas?
Embora sejam compridas e consideradas “mal-encaradas”, as malhas de fogo não são agressivas, afirma a bióloga. “Elas não dão bote facilmente, são tranquilas. A primeira opção delas, quando encontram uma pessoa ou um predador, é fugir. Só dão um bote na última opção”, destaca.
Tanto é que, pelos números oficiais, a espécie só corresponde a 1,1% do total de acidentes com cobras no Brasil. As jararacas são responsáveis pela maioria.
Ainda assim, em caso de picada, a vítima deve buscar atendimento médico imediato porque o veneno da Lachesis muta pode causar problemas neurológicos e provocar crises de alguma comorbidade.
Hoje em dia, é raro acontecer mortes devido a acidentes com cobras venenosas porque a gente tem os soros antiofídicos e hospitais de referência em vários locais. Em Fortaleza, tem o IJF, então você se encaminhando diretamente após o acidente já vai receber todo o atendimento e ficar bem.
Sistema de alerta e proteção
A pesquisadora também informa que a espécie está perdendo seu habitat natural pelo avanço do desmatamento, além de estar em risco por matanças e atropelamentos.
Diante das ameaças, o Projeto Malha de Fogo também age a partir de um sistema de alerta baseado na Ciência Cidadã. Por meio dele, a comunidade local é engajada e capacitada para reconhecer os espécimes e informar sua localização aos estudiosos, criando um monitoramento praticamente em tempo real.
“Geralmente, as pessoas encontram esses animais nos quintais ou na roça, ou mesmo atravessando a rua. O sistema de alerta atua diretamente para envolver as pessoas da comunidade em observar melhor os animais”, garante.
Como resultado, os pesquisadores tiveram uma conquista importante: o achado inédito da jararaca verde (Bothrops bilineatus), outra cobra peçonhenta que era procurada no Estado há mais de 30 anos. “A partir da Ciência Cidadã que a gente trabalha no projeto Malha de Fogo, conseguimos encontrar esse animal e confirmar o registro pro Ceará”, comemora Thabata.
A iniciativa também rendeu o prêmio de melhor trabalho na categoria Conservação, no Congresso Brasileiro de Herpetologia 2023, à também bióloga Lidia Silva de Lima, colaboradora do projeto. Ela descreveu em monografia que, em vez da corriqueira eliminação da serpente, os avisos garantem o resgate dos animais para novos estudos.
Contudo, não é incomum que as cobras sejam mortas antes de os pesquisadores chegarem ao local indicado. Ainda que isso ocorra, elas são recolhidas, guardadas e conservadas no Museu de História Natural Professor Dias da Rocha, equipamento vinculado à Universidade Estadual do Ceará (Uece) e localizado em Pacoti.
Fascínio pelas cobras
Para que esses animais sejam protegidos, é necessário que a população efetivamente os conheça. Contudo, a bióloga entende que, antes, é preciso derrubar preconceitos construídos historicamente.
“As cobras estão presentes no imaginário das pessoas desde o início do mundo. No Brasil, elas são muito vistas com sentimentos negativos, como medo, raiva ou perigo, mas em outras nações são vistas como animais que trazem prosperidade, fertilidade e riqueza”, diferencia.
A pesquisadora lembra que o veneno das serpentes pode ser usado para a produção de medicamentos, como o Captopril, derivado de toxinas das jararacas e hoje utilizado para tratamento da pressão alta. Atualmente, o veneno da malha de fogo também é estudado para usos em queimaduras e contra a leishmaniose.
Ambientalmente, as serpentes também contribuem para um ecossistema mais equilibrado ao controlarem populações de roedores que, em excesso, podem comprometer lavouras e plantações.
“Além de tudo, o animal tem o direito de estar vivo nos seus ambientes naturais e de ter a sua vida preservada. Por mais que seja um animal altamente odiado, ele tem funções ecológicas e médicas muito importantes”, finaliza Thabata.