Ciganos no Ceará: quem são os povos que driblam a discriminação para seguir tradições centenárias

Alvos de preconceito e com direitos básicos enfraquecidos, cerca de 14 mil vivem em situação de itinerância no Estado

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Família cigana do Ceará
Legenda: De etnia calon, ciganos integram povos tradicionais do Ceará
Foto: Fabiane de Paula

O que vem à sua cabeça quando escuta a palavra “cigano”? Seja qual for a resposta, é provável que não englobe um terço sequer da diversidade que o grupo representa. Dividido em três principais etnias – Rom, Calon e Sinti –, os povos em itinerância são centenários no Brasil, mas ainda são alvos de preconceito e têm direitos básicos enfraquecidos.

No Ceará, os ciganos estão presentes em 58 municípios, com maior concentração em Sobral, na Região Norte; e somam cerca de 14 mil pessoas. A estimativa é da Rede Brasileira de Povos Ciganos (RBPC), que tem sede na Grande Fortaleza.

Determinar de forma oficial quantos deles cruzam o território cearense é tarefa difícil, já que o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não incluiu esses povos na contagem populacional, na contramão de pedidos em todo o País.

Neste 24 de maio, Dia Nacional do Cigano, o Diário do Nordeste conversou com alguns deles para entender as demandas que têm e a riqueza cultural que representam.

“Aqui no Ceará, Sobral tem cerca de 80 famílias ciganas. Mas uma das nossas grandes dificuldades é o mapeamento. O Censo de 2010 está defasado. Fizemos um movimento, mas fomos derrotados”, lembra Rogério Ribeiro, presidente da RBPC e coordenador do Fórum das Comunidades e Povos Tradicionais do Ceará.

Uma das poucas maneiras de registrar essas existências é por meio do Cadastro Único (CadÚnico) do Governo Federal, que inclui os ciganos entre os “povos em situação de itinerância”, elegíveis ao ingresso no cadastro e ao acesso a políticas públicas para pessoas em vulnerabilidade social.

Rogério Ribeiro, presidente da Rede Brasileira de Povos Ciganos, com sede no Ceará
Legenda: Rogério Ribeiro, presidente da Rede Brasileira de Povos Ciganos, com sede no Ceará
Foto: Fabiane de Paula

Fazer busca ativa de famílias ciganas para mapeá-las e entender as demandas específicas que têm é uma estratégia fundamental para formular políticas que as atendam de forma adequada, como pontuou Zelma Madeira, secretária da Igualdade Racial do Ceará, durante evento de lançamento do programa “Primeira Infância Antirracista”, na última  segunda-feira (20).

“Povos e comunidades tradicionais têm uma visão de mundo de que precisamos nos apropriar. Se vamos formular política pública, precisamos de evidências – e pra tê-las, precisamos ir até essas pessoas. O trabalho social com famílias, de proteção social, assistência social, educação e saúde, exige isso de nós”, refletiu Zelma.

A secretária destacou, além dos ciganos, os povos e comunidades de terreiros, os negros e quilombolas entre os grupos que devem ter essa prioridade.

“Tenho que chegar nas famílias a partir do que elas trazem como padrão. Daí a necessidade de estudar esses territórios. Precisamos entender que as aldeias indígenas, quilombolas, comunidades ciganas estão no território e têm o direito de acessar políticas públicas, sob um olhar diferenciado”, concluiu.

Quem são os ciganos

Kassandra, cigana da etnia Calon, predominante no Ceará
Legenda: Kassandra, cigana da etnia Calon, predominante no Ceará
Foto: Fabiane de Paula

Um documento do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) descreve os povos ciganos como “um grupo heterogêneo” que, de acordo com cada tradição – e ao contrário do que o senso comum dita –, pode ser: 

  • Nômade: não se fixa em um território;
  • Seminômade: se desloca e se fixa temporariamente;
  • Sedentário: fixo em determinado território.

Como características atribuídas aos ciganos, o MDS lista ainda “espírito viajante e sentimento de não pertencer a um único lugar; noção particular de propriedade; leis e regras próprias; comunidade estruturada em torno da unidade familiar; e liderança comunitária exercida por uma figura masculina”.

Por outro lado, manter as próprias tradições e perpetuar as raízes é uma das grandes dificuldades diárias dos povos ciganos no Ceará, como relata Rogério, cigano da etnia calon.

“O preconceito e discriminação ainda são muito fortes, fortíssimos. Se uma cigana for ao supermercado ou shopping com as roupas dela, vai receber, no mínimo, olhares. É muita falta de informação”, lamenta o presidente da RBPC. 

Tem pensamentos pejorativos de que cigano rouba crianças, mata, rouba, é trapaceiro. Se fôssemos tudo isso, as cadeias estariam lotadas de ciganos.
Rogério Ribeiro
Presidente da Rede Brasileira de Povos Ciganos

Para minimizar olhares e a discriminação, muitos ciganos deixam de utilizar no dia a dia as vestimentas características, como relatou a cigana Kassandra Monzaed à repórter fotográfica Fabiane de Paula, durante a sessão para esta reportagem.

“Dos ciganos que moram aqui na região (Grande Fortaleza), só eu me visto assim. Os outros ou têm vergonha ou têm medo.”

Riqueza cultural

Roupa característica de mulheres ciganas, que deixam de utilizar a vestimenta por temer preconceito
Legenda: Roupa característica de mulheres ciganas, que deixam de utilizar a vestimenta por temer preconceito
Foto: Fabiane de Paula

Mapear a presença dos ciganos no Ceará é uma forma de direcionar melhor as políticas públicas, como avalia Rogério, e permitir que esses povos tradicionais exerçam as manifestações culturais com segurança, liberdade e respeito a toda a diversidade.

“As pessoas fazem muita confusão: pensam que cigano é religião, não somos. Cada um tem sua religião, sua crença. Não tem uma que predomina, se é católico ou evangélico. Apoiamos todas”, destaca o cigano calon.

A dança, a música, a quiromancia (leitura de mãos) e a culinária são traços importantes dos povos ciganos, como ele descreve, além da forte ligação com a família – tão forte que o casamento entre primos, por exemplo, é registro comum, segundo o presidente da RBPC.

Somos um povo ordeiro, família. É sangue, é família. Não se faz cigano: nasce cigano. Nos acampamentos, moram todos próximos. Por isso é importante nosso direito à terra.
Rogério Ribeiro
Presidente da Rede Brasileira de Povos Ciganos

 

Outra característica da cultura dos povos ciganos são os dialetos, repassados entre gerações. “Nós calons temos nosso dialeto, o chibi. Os ciganos sinti falam sinti, e os rom, que têm 14 clãs dentro deles, falam romanês”, explica o presidente da RBPC.

A importância de preservação das línguas próprias é ressaltada pelo professor Roque Albuquerque, cigano da etnia Calon e reitor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).

“A cultura de um povo passa pela língua, é a maneira de você aprender sobre o mundo. Mesmo que alguns de nós tenhamos perdido a fluência como um todo, mantemos várias palavras no vocabulário. Quando um cigano é jandon, ele é esperto, sábio”, exemplifica.

Roque Albuquerque, cigano da etnia Calon e reitor da Unilab, no Ceará
Legenda: Roque Albuquerque, cigano da etnia Calon e reitor da Unilab, no Ceará
Foto: Arquivo pessoal

Outros marcos da cultura cigana, como cita Roque, são o matriarcalismo – as famílias têm a mãe como referência, e não o pai – e a ligação com as artes.

“O pai é o ponto mais aventureiro, nômade. Os filhos ficam em torno da matriarca. E estamos muito dentro da arte: não nos desconectamos do modo de vestir, que alguns preservam, mesmo sendo afixados”, sublinha o reitor, “o primeiro cigano pós-doutor e que chegou à gestão superior de uma universidade pública da História do País”.

Ao falar do que os ciganos são, Roque julga indispensável falar do que não são: “ser cigano não é uma questão religiosa, encaro essa pergunta com muita frequência. Somos uma etnia, uma raça, um povo. São povos.”

Sobre a representatividade do cargo que ocupa, o professor é categórico: 

“Só consegui entrar na escola aos 11 anos de idade, sempre querendo desistir. Aos 13, minha mãe disse uma frase que me acompanha: não é sobre você, é sobre seus primos, irmãos e filhos, porque toda uma geração poderá depender de onde você vai chegar pra marcar a identidade do seu povo.”

Direitos fundamentais

Entre os direitos já conquistados pelos povos ciganos estão a matrícula para crianças e adolescentes em itinerância, garantida pela Resolução nº 3/2012 do Ministério da Educação (MEC); e a dispensa de informação sobre endereço para emissão do Cartão Nacional de Saúde, prevista na Portaria nº 940/2011 do Ministério da Saúde.

Na prática, porém, os dispositivos enfraquecem. “Tivemos alguns avanços, mas o problema é que os projetos que conseguimos não são efetivados e implementados”, lamenta Rogério Ribeiro, destacando que o Estatuto dos Povos Ciganos, proposto em maio de 2022, ainda está tramitando.

O projeto de lei nº 1387, aprovado pelo Senado, contempla áreas como educação, saúde, esporte, cultura e lazer; além de prever o acesso à terra, à moradia e ao trabalho, e determinar ações afirmativas em favor dos povos ciganos.

O Estatuto, que aguarda a criação de Comissão Temporária para então seguir ao plenário, também torna obrigatória a coleta periódica de informações demográficas sobre os povos ciganos, “para que sirvam de subsídios na elaboração de políticas públicas”. A articulação das políticas caberá ao Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial.

A nível local, a Unilab oferece outro exemplo de política possível: o vestibular de Medicina da instituição, que terá edital publicado após o fim da greve de professores e servidores federais, terá uma vaga reservada a um candidato cigano.

“É uma política que sinaliza para o Brasil inteiro. É um avanço. Quero inspirar outros estados a considerar que nós, ciganos, estamos aqui há muito tempo e fomos forçados a viver à margem da sociedade. É preciso que voltemos a ser vistos – inclusive pelos entes municipais, estaduais e federais”, finaliza o professor.

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