A TV Brasil exibiu recentemente uma entrevista com a cartunista/chargista Laerte Coutinho, e um dos trechos chamou atenção pela forma bem-humorada como a artista – que se identificou como pessoa transgênero após os 50 anos de idade – narra o momento em que saiu de casa pela primeira vez usando uma saia. Com medo e sob o estranhamento dos transeuntes, Laerte percebeu que, naquela ida à padaria, algo novo começou em sua vida.
O causo de Laerte me fez pensar o quanto a Rua, o estar nela compartilhando o espaço público, sempre foi um elemento central para a construção das identidades, narrativas e memórias de travestis e transexuais no Brasil. Neste ponto, proponho a você um breve exercício, pedindo que responda à seguinte pergunta com a primeira coisa que vier à sua mente:
Afinal, o que faz uma travesti na rua?
Por longas décadas, o noticiário policial foi responsável por consolidar uma imagem pública das identidades travestis indissociável da prostituição e da criminalidade, projetando-as como perturbadoras da ordem social ou reduzindo-as a fantasias carnavalescas. Com surgimento das primeiras instituições de organização política criadas e geridas por lideranças travestis nos anos 1990, outros elementos narrativos foram sendo pulverizados e passaram a coexistir no imaginário social acerca dessas experiências, emergindo, por exemplo, a figura da travesti que vai à rua reivindicar direitos.
Na coluna desta semana, quero provocar uma reflexão sobre o fato de que a travesti profissional do sexo e a travesti militante não são antagônicas, muito menos encerraram a riqueza e a complexidade profunda das vivências trans nas ruas e esquinas.
Não há como falar desse tema sem lembrarmos de que parte significativa dos assassinatos de pessoas trans no Brasil ocorrem em vias públicas, vitimando especialmente travestis negras. É inegável também que é nessas mesmas ruas que muitas de nós forjamos espaços de acolhimento e sobrevivência à violência doméstica à qual somos submetidas.
É interessante percebermos que é nas curvas sinuosas e nos encontros das ruas que nos movimentamos diariamente, onde muitas de nós desabrocham, outras tantas são tombadas e muitas outras ainda hão de desfilar a sua travestilidade, tal como a Laerte naquele dia.
Gosto da forma como o diálogo entre as obras de Luiz Rufino (Pedagogia das Encruzilhadas) e Maria Clara Araújo (Pedagogia das Travestilidades) nos possibilita entender as encruzilhadas como locais de produção de saberes, de uma cultura própria e de manutenção de uma memória viva entre alguns grupos sociais. No caso das travestis, a encruzilhada sempre foi o caminho ancestral onde se fabricaram corpos e se construíram formas de resistências e de educação não formal.
Foi lá, por exemplo, que as travestis mais velhas sobreviveram aos contextos de violência urbana e policial, à epidemia de Aids, ao uso do silicone industrial, à exploração do trabalho sexual e à pandemia da Covid-19, quando o isolamento social já lhe era imposto muito antes. Nas ruas, as travestis mais novas encontraram referências para o exercício cotidiano do viver, numa construção simultaneamente individual e coletiva.
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Com o trajeto de Laerte à padaria, lembrei também do que disse Judith Butler sobre as assembleias públicas. Para a filósofa, quando corpos dissidentes se reúnem em ruas, praças ou em outros locais públicos, é exercido o direito de aparecer, performando coletivamente uma rejeição à precariedade social e econômica induzida a um conjunto de vidas invisíveis.
Sob essa ótica, considerando os riscos objetivos que a rua proporciona, quando travestis ocupam o espaço público, de alguma forma estão denunciando a ausência de oportunidades e construindo novas referências umas para as outras. Ao caminhar com a morte, se tem lutado pela vida.
Quero continuar existindo para encontrar minhas irmãs na fila do pão e em muitas outras encruzilhadas, exercendo o nosso direito de existir com respeito, dignidade e um tanto de fechação, porque ninguém é de ferro, né?
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.