Eu travestis: de nós sobre nós
Se contrapor à invisibilidade das travestis e transexuais na imprensa supõe haver olhos/ ouvidos dispostos a descobrirem e se deixarem afetar pela existência de outros enredos para além da sua bolha
Chegamos! Inauguro hoje minha coluna no Diário do Nordeste, um espaço para refletir sobre questões ligadas aos Direitos Humanos e ao cotidiano das populações Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexo - LGBTI+. Flexiono o verbo no plural, che-ga-mos, pois se trata de uma jornada individual e coletiva. Individual porque falo em primeira pessoa, do chão onde pisa uma travesti preta e que tem buscado, no ativismo e na pesquisa, entender e construir formas de vida.
É coletiva porque estas singularidades divergem e também se aproximam das experiências e olhares de outros sujeitos historicamente marginalizados, especialmente travestis e transexuais. Como indica a filosofia africana “Ubuntu”, “eu sou porque nós somos”.
Nasci em Santana do Acaraú, interior do Ceará. Sou filha de Dona Lindalva, mulher negra e sem escolaridade formal, agricultora de muita fibra. Carrego a linhagem afetiva de Thina Rodrigues, liderança do movimento de travestis no Ceará. Thina não me pariu do ventre, mas no verbo. Ajudou a me nomear e foi importante nos meus trânsitos de gênero, raça e no ativismo social. Quando me fiz Dediane, nasci irmã de outras tantas travestis.
Por falar em irmandades, lembro de Soraya de Oliveira, de Welluma Brown e de uma lista extensa de travestis que me são exemplos de pura afetação, no sentido mais bonito que a palavra possa ter. Enquanto o discurso social operava (e ainda opera) para a nossa desumanização, falávamos sobre a vida, sobre o tempo, compartilhávamos memórias, sonhos e conquistas.
Não custa relembrarmos, como revela o historiador Elias Veras, que emergiu das páginas da imprensa fortalezense dos anos 1970 e 1980 uma identidade travesti intimamente associada às noções de perigo, marginalidade e desordem, reforçando estigmas e processos de subalternização.
Proponho utilizarmos este canal para acessarmos outras narrativas sobre as existências LGBTI+, em especial sobre as travestis e transexuais, por serem estas as últimas a serem lidas como “gente” na estrutura social, raramente conseguindo contar as suas próprias histórias.
Se contrapor à invisibilidade das travestis e transexuais na imprensa supõe haver olhos/ ouvidos dispostos a descobrirem e se deixarem afetar pela existência de outros enredos para além da sua bolha. Minha casa e esta coluna estarão disponíveis para entrelaçar os debates estruturantes da sociedade com as experiências no campo do vivido, com a fascinante trivialidade do dia-a-dia, com todos os nossos closes e corres. E aí, vamos conversar?