Eu travestis: de nós sobre nós

Se contrapor à invisibilidade das travestis e transexuais na imprensa supõe haver olhos/ ouvidos dispostos a descobrirem e se deixarem afetar pela existência de outros enredos para além da sua bolha

Legenda: Esta coluna é um canal para acessarmos outras narrativas sobre as existências LGBTI+, em especial sobre as travestis e transexuais
Foto: Shutterstock

Chegamos! Inauguro hoje minha coluna no Diário do Nordeste, um espaço para refletir sobre questões ligadas aos Direitos Humanos e ao cotidiano das populações Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexo - LGBTI+. Flexiono o verbo no plural, che-ga-mos, pois se trata de uma jornada individual e coletiva. Individual porque falo em primeira pessoa, do chão onde pisa uma travesti preta e que tem buscado, no ativismo e na pesquisa, entender e construir formas de vida.

É coletiva porque estas singularidades divergem e também se aproximam das experiências e olhares de outros sujeitos historicamente marginalizados, especialmente travestis e transexuais. Como indica a filosofia africana “Ubuntu”, “eu sou porque nós somos”.  

Nasci em Santana do Acaraú, interior do Ceará. Sou filha de Dona Lindalva, mulher negra e sem escolaridade formal, agricultora de muita fibra. Carrego a linhagem afetiva de Thina Rodrigues, liderança do movimento de travestis no Ceará. Thina não me pariu do ventre, mas no verbo. Ajudou a me nomear e foi importante nos meus trânsitos de gênero, raça e no ativismo social. Quando me fiz Dediane, nasci irmã de outras tantas travestis.

Por falar em irmandades, lembro de Soraya de Oliveira, de Welluma Brown e de uma lista extensa de travestis que me são exemplos de pura afetação, no sentido mais bonito que a palavra possa ter. Enquanto o discurso social operava (e ainda opera) para a nossa desumanização, falávamos sobre a vida, sobre o tempo, compartilhávamos memórias, sonhos e conquistas.

Não custa relembrarmos, como revela o historiador Elias Veras, que emergiu das páginas da imprensa fortalezense dos anos 1970 e 1980 uma identidade travesti intimamente associada às noções de perigo, marginalidade e desordem, reforçando estigmas e processos de subalternização.

Proponho utilizarmos este canal para acessarmos outras narrativas sobre as existências LGBTI+, em especial sobre as travestis e transexuais, por serem estas as últimas a serem lidas como “gente” na estrutura social, raramente conseguindo contar as suas próprias histórias.

Se contrapor à invisibilidade das travestis e transexuais  na imprensa supõe haver olhos/ ouvidos dispostos a descobrirem e se deixarem afetar pela existência de outros enredos para além da sua bolha. Minha casa e esta coluna estarão disponíveis para entrelaçar os debates estruturantes da sociedade com as experiências no campo do vivido, com a fascinante trivialidade do dia-a-dia, com todos os nossos closes e corres. E aí, vamos conversar?

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