Em fevereiro de 2017, outra travesti estampava as páginas deste jornal. Era Kattley, cujo assassinato - na periferia de Fortaleza - foi ampla e internacionalmente noticiado. Dandara, que morreu anônima, renasceu como nome de rua, como título de livros, como tema de pesquisas acadêmicas e, mais recentemente, como um projeto de lei que avança na Câmara Federal, mas não sem termos assistido à espetacularização da violência brutal a qual ela foi submetida.
A morte de Dandara não era diferente de tantos assassinatos denunciados há décadas pelo movimento social de travestis e pessoas trans brasileiro, mas algo novo foi posto naquele momento: na esteira das redes sociais da internet, a visibilidade global do caso deixou de calças curtas muitas das instâncias de poder, expondo massivamente não só a crueldade da violência letal e simbólica contra as vidas trans no país, mas a insuficiência das políticas governamentais e dos marcos legais vigentes para uma resposta eficaz à questão.
Quando Dandara morreu, vários nomes lhe foram dados pela imprensa. Curiosamente, a tragédia da sua morte também chamou atenção para a importância de dizermos o nome correto das pessoas e das violências sofridas por elas.
Um exemplo disso foi a condenação de cinco dos seus oito algozes maiores de idade por homicídio triplamente qualificado em 2018. Aquela foi a primeira ocasião em que um Júri Popular reconheceu expressamente a transfobia como uma qualificadora penal de motivo torpe no Brasil, um ano antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) considerar a transfobia como manifestação de racismo e de tal palavra passar, portanto, a figurar como crime na jurisprudência nacional.
Agora, o Projeto de Lei federal n° 7.292/2017, também chamado de “Lei Dandara”, pretende alterar o Código Penal para estabelecer o LGBTcídio como crime de Homicídio Qualificado e de natureza hedionda. De autoria da Deputada Federal Luizianne Lins (PT), o projeto foi aprovado na Comissão Direitos Humanos do Congresso Nacional no último dia 3 de julho, totalizando dez votos a favor contra cinco contrários. O projeto ainda deve passar pela Comissão de Constituição e Justiça, pelo Plenário da Câmara e só depois seguir para o Senado Federal.
Apesar da forte oposição das bancadas antidemocráticas, com a Lei Dandara, a travesti cearense outrora ultrajada poderá dar nome a mais um importante marco na luta pela vida, existindo nas fronteiras de resistência por Direitos Humanos para a população LGBTI+.
“Dar o nome” é uma expressão comum no vocabulário das travestilidades e adquiriu, nesse contexto, um sentido próprio. Ela indica que algo foi feito com dedicação e excelência. Muitas travestis que antecederam Dandara e a mim deram o nome na luta por direitos e pela inauguração de espaços institucionais jamais antes ocupados, mas é preciso dizer também que, mesmo alijada dessa lógica política, Dandara segue conosco e dando o nome para o reconhecimento da humanidade e por melhores condições de vida para outras travestis e transexuais no Ceará e no Brasil.