Criminalização da LGBTfobia: o que realmente muda?
Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu enquadrar agressões a pessoas LGBTI+ no crime de racismo, enquanto Legislativo não vota normas específicas; decisão tem gerado polêmica sobre "liberdade religiosa"
Se um dia foi facultativo respeitar lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e outras sexualidades e identidades de gênero, agora, não é mais: é lei. Zerou-se a tolerância para agressão disfarçada de opinião. No dia 13 deste mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou a LGBTfobia ao crime de racismo, para o qual a pena varia de um a cinco anos de reclusão. Enquanto se discute sobre o limite entre liberdade de expressão, religiosa e preconceito, uma questão importante se impõe: o que realmente muda para a população LGBTI+ a partir de agora?
O primeiro avanço local foi firmado neste mês: os campos "orientação sexual" e "identidade de gênero" foram acrescentados ao Sistema de Informações Policiais do Ceará, utilizado para registro de boletins de ocorrência em delegacias. "A partir disso, será possível gerar dados criminais sobre o público LGBT no Ceará. As iniciativas decorrem de estudo técnico, como forma de prevenção e combate a crimes de ódio", informou a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), em nota.
Para o presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Secção Ceará, Júlio Figueiredo, a estatística já deveria existir antes mesmo da criminalização pelo STF.
Já emiti ofício à SSPDS solicitando os dados. A tipificação que se pede não é penal, é sobre a motivação do crime, que existe independentemente de lei."
Proteção
Se toda conquista da população LGBTI+ até aqui se deu via Judiciário - como permissões para casamento, adoção e mudança de nome e gênero de pessoas trans no registro civil -, a criminalização da discriminação guarda uma particularidade: pressiona o Poder Legislativo a votar norma específica. "Discriminar configurava injúria no Código Penal, quando na verdade as pessoas LGBTI sofrem crimes de ódio. É provável que o Legislativo tome as providências para tipificar", analisa Júlio.
O ódio, aliás, foi o motor de uma das incontáveis agressões que o atendente de telemarketing Francis Lima, 24, coleciona junto à esposa, Roberta Melo, 30. "Eu voltava da igreja pra casa e três homens me cercaram, dizendo 'lá vai o viadinho'. Apanhei e fiquei calado, porque se percebessem que minha voz era feminina, seria muito pior. Procurei a delegacia e não quiseram nem fazer o B.O., disseram que era briga de moleque".
Foi só uma das violências que ele, homem transexual, sofreu em 2018. Para se casar com Roberta, mulher cisgênero (que se identifica com o sexo biológico), foi preciso muito constrangimento. "Fomos barrados no cartório. Passei quase um mês antes ligando, pra não dar nenhum problema, mas na minha identidade meu cabelo tá grande, e agora tá curto. Falaram que não iam nos casar porque 'tava' diferente", relata Francis.
Eles se negaram a nos casar por puro preconceito. Fomos destratados, ameaçaram chamar segurança, expulsar a gente."
A violência simbólica, agora, é inadmissível sob todos os pontos de vista: social, administrativo e legal.
Hoje, o casal vive com os três filhos (um dele, duas dela), nascidos antes da união, e comemora o avanço no Judiciário. "Já cheguei a apanhar na rua, ser abusada. As pessoas não se importam com o que falam, esquecem que somos humanos. Se não morremos de um tiro ou agressão, nos jogamos de uma ponte. Se alimentam de ódio. Pra mim, criminalizar é uma esperança de que alguém, mais à frente, possa ser socorrido a tempo".
Religião
Uma das polêmicas da decisão foi acendida pelo presidente Jair Bolsonaro, ao discordar da decisão majoritária do STF, afirmar que a Corte "legislou" e sugerir que é necessária a presença de "um ministro evangélico". O membro da OAB/CE rebate: "o STF apenas cumpriu o que manda a Constituição, em razão da omissão do Legislativo. A verdade é que falta evoluirmos bastante do ponto de vista cultural", lamenta o advogado.
Prova disso é outra controvérsia relacionada ao tema: o questionamento de que a decisão fere a liberdade religiosa, mesmo que o Supremo tenha assegurado esse direito. Para o teólogo Alan Luz, a linha entre liberdade e preconceito é tênue, mas fácil de identificar. "A criminalização diz respeito às agressões e crimes que acontecem todos os dias. Impõe respeito. Hoje, os líderes cristãos mais sensatos agiriam como Jesus, que não perguntou etnia, nacionalidade nem sexualidade para ajudar ou curar alguém", aponta.
Alan é gay e pastor da Igreja Apostólica Filhos da Luz, templo evangélico inclusivo de Fortaleza frequentado por Francis e Roberta. Por ser e fazer pelos LGBTI+, Alan sofre intolerância. "Já fui vítima de pedrada, tive carro quebrado e arma mirando a cabeça. Outras igrejas começaram a difundir que a nossa é errada, e os fiéis, influenciados, acabaram nos perseguindo. Temos que colocar na nossa pregação a pauta de Jesus. O mestre não destratou ninguém, por que nós vamos?", questiona, ressaltando a necessidade de ler a Bíblia contextualmente.
"A Teologia Inclusiva não lê só os textos LGBTfóbicos, mas observa interpretações que precisam ser revistas. Às vezes, uma palavra tem uma frase como tradução. Ao longo do tempo, a Bíblia foi usada para escravizar negros e subjugar mulheres. É necessária essa desconstrução", sentencia.
Violência
De acordo com Tel Cândido, coordenador do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, da Prefeitura de Fortaleza, todo ano, na Capital, cerca de 180 novos casos de violência física, psicológica, moral, sexual e institucional chegam ao Centro. "Apesar da subnotificação, a população LGBT concentrou, sozinha, 5% da violência interpessoal registrada em Fortaleza em 10 anos, de acordo com a Vigilância em Saúde do Município. É impossível desassociar estes casos de LGBTfobia profundamente enraizada", declara Tel.
foram contabilizados, no Ceará, por possível motivação LGBTfóbica, nos últimos dois anos
Para o coordenador, o efeito prático da decisão depende de muitos fatores, "especialmente dos termos de regulamentação e aplicação pelas instituições". Criminalização sozinha, portanto, não resolve. "Mas isso não quer dizer que não seja necessário e urgente, dado o relevante papel simbólico e pedagógico, além das implicações no cotidiano da população LGBT". Além de crime de racismo, a motivação LGBTfóbica também pode ser utilizada como qualificadora de motivo torpe em homicídios dolosos.
Sobre o efeito que realmente se quer, Júlio Figueiredo resume: "A população LGBTI+ não quer ser superior - mas viver em harmonia e ter os direitos assegurados sem precisar recorrer às vias judiciais".