Casal de Fortaleza consegue cidadania portuguesa ao descobrir família judia expulsa do país europeu

Decreto-Lei concede documentação para parentes de judeus expulsos por perseguição religiosa

Escrito por Lucas Falconery , lucas.falconery@svm.com.br
Legenda: Luciana e Alessandro decidiram viver em Portugal, mas mantêm laços com a capital cearense
Foto: Acervo pessoal

Ao revisitar a própria árvore genealógica, a terapeuta ocupacional Luciana Abreu, de 48 anos, descobriu uma conexão com os judeus sefarditas – uma comunidade expulsa da Europa por perseguição religiosa. Por um processo de reparação histórica, ela conseguiu cidadania portuguesa e partiu de Fortaleza para Lisboa, onde vive com o marido no País, desde o último outubro.

Essa possibilidade foi criada por Portugal por meio do Decreto-Lei n.º 30-A, de 2015. A legislação define como judeus sefarditas os descendentes das tradicionais comunidades judaicas da Península Ibérica.

Esses povos foram perseguidos pela Inquisição Espanhola após o Decreto de Alhambra (para o exílio), de 1492, e buscaram refúgio em Portugal. Contudo, o rei português Dom Manuel determinou, em 1496, a expulsão de todos os judeus sefarditas que não aceitassem o batismo católico. 

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Luciana, que sempre soube de uma conexão da família com os judeus, descobriu a oportunidade de ter a nacionalidade de Portugal. O País passou a ser atraente para a família do ponto de vista dos estudos e da boa qualidade de vida.

Foram leituras, pesquisas e documentários assistidos pela terapeuta na busca por conhecer a história do povo judeu. Também revisitou álbuns e as memórias da infância.

"Sempre fui muito ligada à história da família e cresci com uma tia-avó me falando que nossos ancestrais eram judeus, ela me contava sobre os nossos bisavós e, criança, eu ficava encantada", lembra Luciana.

Legenda: Família Quixadá, que descendem dos Ximenes Aragão, linhagem que conecta à matriarca judia Branca Dias. Na imagem, de preto, está Eulália Quixadá (bisavó de Luciana) e ao seu lado Alzira Quixadá (avó de Luciana) e José Lima (pai de Luciana) ainda criança
Foto: Acervo pessoal

Os contos ouvidos ganharam nomes específicos quando Luciana procurou um escritório de advocacia para fazer um estudo genealógico. "Eles pedem que a gente passe informações, pelo menos, até os nossos bisavós. Esse é o primeiro passo", descreve.

O executivo de comunicação Alessandro Abreu, de 55 anos, acompanhou a esposa Luciana de perto durante o processo. Apesar de também ter um sobrenome sugestivo de ligação com os judeus, não foi necessário fazer o mesmo procedimento já que a cidadania portuguesa também pode ser obtida pelo vínculo do casamento.

"Como são especializados nisso, eles já têm as diversas conexões judaico-sefarditas que chegam até o Brasil. Já têm todas as linhagens e precisam conectar à árvore genealógica”, complementa Alessandro sobre o acompanhamento pelo escritório Martins Castro Consultoria Internacional.

Entre os parentes de outros tempos, Luciana constatou ser pertencente à família de Branca Dias – personalidade portuguesa que veio para Pernambuco, criou a sinagoga no Brasil e contribuiu para a resistência judaica e educação no Nordeste.

"Foi uma alegria impressionante para mim, eu já vinha estudando a história dos judeus e, quando me deram esse nome e eu fui fazer a pesquisa, fiquei sem acreditar", compartilha.

Me peguei chorando pensando em quantas vidas, quantos sonhos, quantas dores e quantas perseguições, mas também quantos amores aconteceram para que eu estivesse aqui. Tudo isso é muito mágico
Luciana Abreu
Terapeuta Ocupacional

Mas para conseguir a documentação, como frisa Luciana, além de encontrar as conexões é preciso comprová-las e isso exige análise que pode chegar até 15 gerações. Para o casal, essa oportunidade representa uma identificação familiar e o caminho para viver no País.

"É para além de uma nacionalidade europeia, que tem o seu valor na possibilidade de acesso, de me qualificar, segurança para os nossos filhos, na qualidade de vida", conclui a terapeuta. No caso do filho que já vive com os dois, por exemplo, os custos com a graduação são cerca de 10% do que estudantes estrangeiros têm.

Como funciona o processo

A primeira etapa para conseguir a cidadania portuguesa por vínculo com judeus sefarditas é montar a árvore genealógica e verificar se há algum laço do tipo. Isso geralmente é feito por intermédio de escritórios de advocacia.

No caso de Luciana e Alexandre, a assessoria dada ao casal possui acesso aos acervos de registros civis e, do período anterior à Proclamação da República, da Igreja Católica, que documentava os batismos e casamentos.

"Quando não há prova documental primária, há os registros nos livros, como na Nobiliarchia pernambucana, por exemplo, existem alguns livros que descrevem as genealogias de algumas filhas do Nordeste, São Paulo e Minas Gerais, por exemplo", detalha Luciana.

Legenda: Família Abreu em visita à Universidade de Coimbra, em Portugal
Foto: Acervo pessoal

Após a comprovação, os documentos são enviados para a Comunidade Israelita no Porto ou em Lisboa. A instituição é responsável por reconhecer o vínculo para o Governo de Portugal. 

“Eles têm documentos de judeus perseguidos, mortos ou expulsos e avaliam, geração por geração, e a comunidade pode emitir um certificado”, acrescenta Luciana. O governo analisa o aval e permite a emissão da certidão de nascimento. Todo o processo leva em torno de 2 anos.

"Quando o assento de nascimento estava pronto, a Luciana pôde ir no vice-consulado de Fortaleza e requerer o cartão de cidadão depois disso o passaporte português", explica Alessandro. Ele e o filho solicitaram a documentação a partir da cidadania portuguesa da Luciana.

Influência dos judeus no Nordeste

Esse mergulho sobre a história do povo judeu e da própria família deu sentido a costumes e tradições lidas como supertições na criação de Luciana.

"Minha mãe me ensinou que eu não poderia colocar o lixo para fora da porta, (e hoje sei que é) por causa da mezuzá. Eu não podia apontar para estrelas porque nasceria verruga no dedo e a casa tinha de ser limpa na sexta-feira. Eu perguntava o porquê, mas ela não sabia me explicar", lembra.

A mezuzá é um objeto sagrado onde ficam guardados os mandamentos do judaísmo e colocados no umbral direito da porta de entrada. Varrer o lixo passando pelo objeto é considerado algo desrespeitoso.

Legenda: Luciana passou por um processo de descoberta das próprias origens
Foto: Acervo pessoal

Além disso, a cultura judaica aparece em elementos comumente vistos no Sertão, como observa Alessandro.

"Temos a figura do cangaceiro e aquela estrela de ornamento nos chapéus é a estrela de Davi. No interior, tem os chapéus de vaqueiro que só cobrem uma pequena parte da cabeça, que não serve para proteger nada, mas foi uma forma dos judeus disfarçarem a quipá", comenta sobre a peça.

Amor pela capital cearense

Luciana e Alessandro pretendem seguir a vida em Portugal, mas deixar a capital cearense de lado não é uma opção. "Nossa ligação com o Ceará é muito forte, eu sou nascido e criado em Fortaleza”, resume o executivo de comunicação.

"Desde 2004 eu atuo de uma forma mais remota, meio que uma previsão dessa mudança de chave que teve no mundo, as pessoas se conectam de forma virtual. Nós mudamos para Lisboa e eu continuo a atender os meus clientes de Fortaleza”, frisa.

Para Luciana, o “cheiro do mar e também pelo cheiro do sertão", fazem parte das memórias as quais é apegada.

"Nossa filha, nossas mães, nossos amigos e nossa igreja estão em Fortaleza, é um vínculo muito forte, temos uma gratidão pelo Ceará ter nos acolhido tanto, pretendemos voltar de férias e temos um amor pelos cheiros, pelas pessoas e como a vida acontece", destaca.

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