Série "Paisagens Sonoras" traz a história dos bailarinos Clarissa Costa e Jhon Morais

A primeira reportagem da série olha para o trajeto da dupla fortalezense que desenvolve coreografias com Libras. "Paisagens Sonoras" estreia nesta quarta (12), e será publicada mensalmente no Verso

Escrito por Felipe Gurgel , felipe.gurgel@diariodonordeste.com.br
Legenda: Clarissa Costa e Jhon Morais trabalham na combinação de dança e Libras desde 2014
Foto: Foto: José Leomar

A escuta viciada pela rotina costuma contemplar, em linhas gerais, alguma música, as falas de si e do outro, além de ruídos aleatórios em nossos trajetos e lugares de convivência. Muito presente, mas pouco percebida, a paisagem sonora de nossas vidas traz uma infinidade de sons e pode alcançar até quem vive, supostamente, em um "silêncio absoluto".

"É um mito que o surdo viva num silêncio absoluto. Tem muitos casos de pessoas surdas que escutam em várias frequências. E também o som não entra só pelo ouvido: entra por todas as partes do nosso corpo. Inclusive nós, ouvintes, captamos o som pelas partes corporais. Pelas caixas de ressonância naturais, o tórax, a cabeça", observa Clarissa Costa.

Em Fortaleza (CE), ela e Jhon Morais desenvolvem um trabalho de dança baseado nos gestos de Libras (Língua Brasileira de Sinais), própria para surdos. E, com a circulação dos espetáculos "Verdeouvir" (2018) e "Felizes para Sempre" (2016), a dupla absorve sonoridades para transformá-las em movimentos dançantes e expressão corporal que alcançam ouvintes e surdos, sem distinção.

A história deles é a primeira reportagem da série "Paisagens Sonoras", publicada mensalmente, a partir desta terça (12), no Verso. Em fevereiro passado, Clarissa e Jhon apresentaram "Felizes para Sempre", pela primeira vez, para uma plateia predominantemente surda, entre alunos do Instituto Cearense de Educação de Surdos (Aldeota).

"Socialmente falando, surdos e ouvintes têm seus lugares bem determinados. E a gente queria muito, desde o início da pesquisa, que os dois participassem da plateia. Nosso projeto tinha essa proposta de integração", situa o bailarino.

Ele observa que, frente a espectadores surdos, tende a engajar mais seu corpo na reprodução dos gestos e movimentos do espetáculo. E Clarissa revela que, diante dessa predominância, ela não abstrai de perceber como "esse público tem uma cultura visual e apreende o mundo de uma maneira diferente (dos ouvintes). Tem sido muito bom, porque é outra recepção, de fato", reflete a bailarina.

Libras

Combinar os gestos de Libras para compor a dança começou a envolver a poética da dupla desde 2014. Clarissa recapitula como sempre se encantou pela maneira com que as Libras mobilizavam o corpo. Ela e John começaram a estudar a língua e, segundo a bailarina, se envolver com essa combinação "é um buraco sem fim".

"Todo processo de aprendizado que não quero esquecer nunca mais, eu trago pra dança. E me perguntava como a gente poderia fazer uma dança com toda aquela conversa (das Libras)", pontua Clarissa.

Foto: Foto: José Leomar

Jhon detalha a história do início desse estudo. Uma amiga dele fazia uma cadeira de Libras na faculdade, e apresentava-lhe alguns sinais. Pesquisando por conta própria, o bailarino aprendeu outros gestos e encontrou, depois, um curso básico .

"Foi lá no Instituto de Educação, no Bairro de Fátima. A gente começou a se sentir muito acolhido por aquela gramática de movimentos corporais. E construiu uma rotina de treinos. Criamos jogos, dinâmicas, exercícios de composição. Daí foram aparecendo as coreografias", recorda o bailarino.

Dessa pesquisa, "Felizes para Sempre" nasceu com uma temática de romance, uma sátira às paixões. "Verdeouvir" já se relaciona diretamente com a comunidade surda e traz apelo político, das "questões que existem por conta do afastamento dos ouvintes em relação aos surdos", complementa Jhon.

Trajetórias

Por conta de uma posição política pela igualdade de gênero, Clarissa Costa e Jhon Morais se apresentam com o nome dela à frente. Tradicionalmente, entre as duplas de dança de salão, o nome do homem sempre é mencionado logo.

Hoje, aos 30 anos, Clarissa começou a dançar muito cedo, com apenas dois anos e meio. Fez dança criativa na infância e depois seguiu uma longa trajetória no balé clássico.

"Depois entrei no Curso Técnico de Dança do Ceará, um curso gratuito. Tive uma formação de intérprete criador em Dança Contemporânea. E daí isso me abriu portas para muita coisa. Comecei a trabalhar com vários artistas independentes e nichos da cidade", recapitula Clarissa.

Jhon Morais, 25 anos, começou a dançar em seu bairro, o Conjunto Palmeiras. Dentre vários projetos sociais, se envolveu com a Associação Alabá, dirigida por Leno Farias. A partir de então, maturou a ideia de trabalhar com dança e desenvolveu, posteriormente, a parceria ao lado de Clarissa Costa.

Habitué dos teatros e de outros espaços que acolhem a dança, a dupla sabe como encara uma "trincheira" ao abraçar a arte independente sem, no entanto, abrir mão do papel de integração entre surdos, ouvintes e outros grupos.

"Ir ao teatro é uma coisa difícil, não importa se é surdo ou ouvinte, a gente tem essa cultura frágil, pouco alimentada. Só que o surdo tem mais motivos ainda para não ir ao teatro, porque tudo é feito para o ouvinte", percebe Clarissa.

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