Sem criatividade na pandemia? Especialistas e artistas explicam como fazer do cérebro um aliado
Distanciamento social e tecnologias tanto podem ajudar como prejudicar os processos criativos
Esse texto é um convite. Ao aceitá-lo, você se propõe a elaborar novas construções mentais, a partir de informações prévias, que o tiram da “zona de conforto”. É mais ou menos assim que conceituam o que chamamos de criatividade. Um exercício sobretudo humano, mas que impacta todos os seres, desde o tempo das cavernas até a contemporaneidade.
Para começar, é preciso dizer que cabe ao cérebro, com seus cerca de 1,5 kg e 86 bilhões de neurônios, a atividade em questão. Diferentes partes desse órgão atuam em favor dos processos criativos, como explica o neurocirugião pediátrico Eduardo Jucá.
"Inicialmente, as áreas relacionadas com os diversos tipos de sensibilidade (área occipital = visão; área temporal lateral superior = audição; giro pós-central = somestesia) coletam informações necessárias para a elaboração de ideias novas", introduz.
O conteúdo da memória (hipocampo = memória de curto prazo; regiões frontais = memória de longo prazo), segundo o neurocirurgião, também é arregimentado.
"Finalmente, ambos os lobos frontais trabalham conectados pelo corpo caloso para elaborar novas ideias, que serão expressas a partir da área de emissão da linguagem falada, no giro frontal inferior do lado esquerdo. Tudo isto influenciado pelo circuito emocional, no sistema límbico, que envolve o hipocampo, a amigdala e o giro do cíngulo, entre outras estruturas", explica.
Sobre essa relação entre os hemisférios direito e esquerdo do cérebro, o neurocirurgião reforça que, embora exista um grau de especialização em ambos, de modo algum eles trabalham de maneira isolada no processo criativo.
O lado esquerdo processa melhor atividades que envolvam a linguagem, enquanto o lado direito tem a predominância da análise de formas geométricas e espaciais envolvidas, por exemplo, com o desenho. A ideia de estimular um ou outro hemisfério separadamente ou tentar usar cada um de maneira predominante de forma voluntária em uma dada atividade não é possível de ser verificada na prática, não é algo que se busque atingir", entende.
Mas como esses fatores biológicos dialogam com os sociais?
De acordo com Eduardo Jucá, a criatividade não pode ser considerada um fenômeno quase milagroso de geração espontânea de ideias a partir do nada. A inovação surge, portanto, de conhecimentos prévios e de um ambiente adequado.
Desse modo, o papel do ambiente familiar e a educação de boa qualidade são fundamentais para que se desenvolva a criatividade. A tranquilidade para que o cérebro possa fazer novas conexões também é fundamental”, pontua.
O estresse emocional e a sobrecarga de trabalho, por sua vez, podem prejudicar muito o processo criativo, pois a energia cerebral, explica o Dr. Eduardo, estará direcionada para fugir de perigos, reais ou imaginados, e não para elaborar novos conceitos.
“O cérebro consome muita energia em seu funcionamento, portanto descanso e alimentação adequada também são fundamentais. Ter curiosidade e estar sempre conectado aos acontecimentos, sem cair na armadilha do excesso de informação, são importantes para que haja um cenário onde o processo criativo possa se desenrolar”, orienta.
No documentário “Como o cérebro cria”, disponível na Netflix, o neurocientista David Eagleman demonstra outras formas de aguçar a criatividade. Confira trailer:
Distanciamento social e tecnologias: o fator pandemia
Difícil é ser criativo em meio ao caos, você pode pensar. Mas os especialistas afirmam que essa é uma questão relativa, inclusive no atual contexto de pandemia.
O que irá definir o caminho é quem estará passando pelo processo”.
Se o distanciamento social for utilizado para o consumo consciente de informações e para períodos de análise, de si, do outro e da situação, podem sim surgir novas ideias no campo artístico ou técnico, segundo explica o Dr. Eduardo Jucá. “Entretanto, se este período for preenchido por estresse emocional, ansiedade paralisante, sedentarismo e alimentação de má qualidade, a criatividade pode ser intensamente inibida”, alerta.
Quanto à tecnologia, vale a máxima do equilíbrio, já que ela traz muitas coisas prontas, afastando-nos de lidar com o imprevisível e com as frustrações.
“Na maior parte das vezes, ela nos distancia da oportunidade de exercitar o nosso querer, a força que nos move a conquistar e superar os desafios. Esse comprometimento acaba sendo mais devastador na infância, o que terá um reflexo maior na vida adulta, trazendo pessoas com baixa capacidade de resiliência e adaptabilidade”, observa Bruno Aboim.
Por outro lado, se a internet, o celular e o computador forem usados para manter contato com quem amamos e para consumir arte e informação na medida adequada, o processo criativo pode ser inclusive estimulado, conforme o Dr. Eduardo Jucá.
Exercícios de criatividade entre artistas
Quem lida diariamente com a expressão da criatividade, como é o caso de artistas, tem as próprias estratégias para enfrentar esses momentos de crise. A cantora cearense Lorena Nunes (@lorenanunesoficial), por exemplo, costuma registrar todas as inspirações. E elas vieram com toda força nessa pandemia, resultando em novos lançamentos, inclusive.
“É porque às vezes a gente tem uma ideia e não anota; vem uma melodia e não grava, ou sei lá, tem uma ideia de fazer alguma comida e não faz. Acho que talvez o exercício que eu mais fiz na pandemia foi o de registrar tudo que vinha de impulso criativo, da maneira que eu podia, sempre que eu podia. Isso é muito bom e eu continuo fazendo”, partilha.
A meditação é outra aliada da artista nesses processos.
A criação me vem, graças a Deus, com muita fluidez, mas se eu tenho qualquer coisa que me bloqueia, tenha certeza que vou parar, ficar offline, botar a mãozinha no coração, o pezinho no chão e começar a respirar. Para tudo e qualquer adversidade, tenha certeza que eu vou parar e me conectar comigo, com a mãe Gaia, com o universo e aí tudo vem, tudo flui, tudo transborda, livre e abundantemente”, afirma.
A artista e comunicadora Camila Aguiar (@arriscamila) conta que o estado "suspenso" das coisas, sobretudo no início da pandemia, quando ela chegou a ser demitida do antigo emprego, foi fundamental para que tivesse tempo de se debruçar nas criações de pintura, fotografia, desenho e poesia, e até mesmo ganhar dinheiro com isso.
A criatividade e a criação demandam um mergulho interno, ao qual não estamos dedicados no contexto de frequentes e intensas interações sociais e de muito trabalho na rotina normal. Criar exige olhar para dentro, e isso foi algo que o isolamento obrigou”, pontua.
Camila admite que não fez nenhum exercício específico com essa intenção consciente, mas "consumiu" muita arte, o que trouxe inspiração. “Também criei bastante, o que, para mim, é o principal motor da criatividade. Só se desenvolve a criatividade criando”, acredita.
Isso não quer dizer, porém, que ela se pressiona quanto a isso. “Relaxo, deixo de lado, espero o tempo dela e busco inspirações em outras artes (música, filmes, livros, pinturas, desenhos...). Acho que o bloqueio criativo tem algo a ver com a pressa. Se você solta isso, abre espaço para que a criação chegue espontaneamente em um momento inesperado, e assim flui”, aconselha.
Dicas dadas, chegou a hora de você mesmo exercitar. Qual será a criação de hoje?