Não é não: Carnaval 2019 é o primeiro com a lei contra a importunação sexual
Práticas como beijo roubado e toques indevidos podem resultar em prisão de um a cinco anos
É chegado o Carnaval, momento de extravasar à máxima potência. Festas, baladas e bloquinhos tomam as ruas brasileiras e recebem um público um tanto mais ávido por diversão do que no restante do ano. O clima de paquera, um dos maiores símbolos dessa época, nem sempre traz só alegrias, por vezes resultando em situações de assédio, sejam físicos ou verbais.
.O Carnaval deste ano, porém, traz um diferencial: será o primeiro com a lei 13.718, de 2018, que prevê de um a cinco anos de prisão a quem cometer atos de importunação sexual
A norma se aplica em situações que não configurem estupro. Beijos roubados, toques e apalpadas agora são lidos como “atos libidinosos com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiros”. Segundo a supervisora do Núcleo de Enfrentamento de Violência à Mulher, Jeritza Braga, a medida veio para tipificar a importunação sexual. “Antes, se usava apenas a denominação de ‘abuso sexual’. O agressor recebia punição mínima, geralmente uma multa, mas não era preso”, elucida a defensora pública.
“Era um crime que não inibia o agressor, pois dificilmente resultava em alguma penalidade. Agora, espera-se que as vítimas sejam encorajadas a denunciar”, conclui a profissional. E já era tempo, porque não é raro presenciar situações do tipo. Nem é raro conhecer quem já tenha sido a própria vítima.
Vivências
Sâmara Gurgel, de 33 anos, é professora dos cursos de Psicologia e Pedagogia. Além de docente, é integrante do bloco carnavalesco Damas Cortejam, composto apenas por mulheres e famoso por questionar o papel feminino na sociedade. Em cima do palco ou não, já viveu e presenciou inúmeras cenas de assédio. “Quando tocamos pela primeira vez, em 2016, muitos homens questionaram a nossa formação feminina e o teor do nosso bloco, e um chegou a subir a escada lateral do palco, querendo usar o microfone”, relata. “Já no Pré do ano seguinte, muitas mulheres usaram nossa visibilidade no palco para expor abusos que tinham sofrido ou testemunhado ali”, complementa.
Quando esteve no Carnaval de Salvador, Sâmara ocupou o lugar de vítima. Assim como tantas outras foliãs, ela teve partes do corpo apalpadas sem consentimento. A professora salienta a banalização de comportamentos como esse. “A gente vive muito isso no dia a dia. Basta pisar na calçada e ficamos sujeitas a abordagens invasivas”
Outra vítima dos atos agora classificados como “importunação sexual” é Mariane Alves*, 22, acadêmica de Publicidade e Propaganda. De veia feminista, a estudante relembra que os abusos acontecem em qualquer lugar, públicos ou não, e ressalta que o clima de folia contribui para a naturalização de comportamentos problemáticos que invadem, especialmente, o corpo da mulher.
Tanto aqui em Fortaleza como em outros Carnavais, já pegaram no meu peito, no meu bumbum, até na minha vagina. Ouvi frases desrespeitosas que invadiram meu espaço
“No último caso que me ocorreu, aqui na Capital, eu estava em uma festa de Carnaval de um shopping com a minha irmã, de 13 anos. Escolhi o espaço por achar ser mais tranquilo e seguro, mas ela foi assediada. Ela estava comigo e minha família, e, ainda assim, aconteceu. No fim das contas, quase fui expulsa do local, porque entenderam que eu que estava fazendo confusão, quando na realidade foi o contrário. Presenciei uma violência e não permaneci calada”.
Sâmaras e Marianes, mais comuns do que deveriam, estão em todos os lugares. Na capital, no interior, de norte a sul, de leste a oeste. Para elas, a luta por respeito é construída todos os dias — e isso nem é novidade. Nos quatro dias de Carnaval, a regra é incrivelmente ainda mais simples, tão simples quanto uma frase de três palavras: não é não. E nem precisa de muito para entender.
*Nome fictício. A entrevistada não quis se identificar