Linha Direta: por que, mesmo após décadas, o programa ainda bate recordes de audiência?

Nova produção caminha para o quinto episódio com grande sucesso entre o público; pesquisadores refletem essa adesão a partir de temas como medo, violência e midiatização

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Desde que estreou, em março de 1990, o Linha Direta atravessa gerações com histórias de crimes reais
Foto: Arte de Lincoln Souza

Casos criminais de grande impacto no Brasil. Desde que estreou, em março de 1990, o Linha Direta segue uma cartilha exata: assassinatos, sequestros, desaparecimentos e atrocidades que marcaram época ganham a tela por meio de reconstituição dramática dos acontecimentos e entrevistas com testemunhas e autoridades. 

Ao final dos episódios, um número de telefone é disponibilizado para que telespectadores forneçam informações e auxiliem na solução dos casos e prisão de bandidos. Foi assim na primeira “temporada” do programa, de março a novembro de 1990; na segunda, de 1999 a 2007; e também, embora com algumas mudanças, na atual, cuja estreia ocorreu no último 4 de maio.

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No dia seguinte à exibição do programa, os casos voltam a estampar todos os jornais em uma demonstração de força da audiência. Como é possível explicar esse alcance e aderência? Por que o Linha Direta segue tão influente entre o público? É possível fazermos uma leitura da sociedade a partir do programa?

“Creio que o que mais deve interessar é a curiosidade sobre os casos: como aconteceu, quais as opiniões dos que acompanharam de perto, como a polícia, a lei e a justiça se comportaram? O quanto todos estamos vulneráveis na condição de cidadãos frente à sempre crescente violência”, avalia José Clerton Martins.

Legenda: Marcelo Rezende apresentou a primeira versão do programa, em 1990
Foto: Divulgação/TV Globo

Psicólogo e Doutor em Psicologia pela Universidade de Barcelona, o estudioso observa que o programa é bem produzido, com estrutura impactante: personagens, depoimentos, detalhes exclusivos de testemunhas, apelos emocionais, gravações e simulações. Tudo convoca a uma dramaturgia narrativa capaz de prender a audiência interessada. 

“A própria escolha dos casos por si só é algo de impacto. O drama narrado da vida real, a dor, o sofrimento, a morte, a punição, a ação da lei e o recado da moral social são apelos sempre presentes”. 
José Clerton Martins
Psicólogo e Doutor em Psicologia pela Universidade de Barcelona

Não à toa, o tema da violência, da agressividade e da nossa vulnerabilidade convoca pelo apelo de saber o que acontece na realidade e ao que, de verdade, estamos expostos. Premissas que, se por um lado assustam, por outro despertam total atenção.

“Amedronta saber que o mal existe e ronda nossa existência, mas ao mesmo tempo somos impulsionados a desenvolver estratégias de defesa. Conhecer algum desses aspectos por meio desse tipo de programação pode nos deixar, digamos, mais preparados para uma ação em caso de necessidade”.

Somos “armados” para sobreviver

Para José Clerton, também é importante fazer uma demarcação. Há quem sinta alguma satisfação ao assistir a esse tipo de programa; e há os que não se sentem bem. De todo modo, a temática da agressividade nos habita pelo fato de sermos “armados” para sobreviver, segundo o psicólogo.

Ainda assim, mesmo que, culturalmente, aprendamos a ter controle sobre a medida da agressividade, há casos e atitudes fora do padrão normal, que abusam da violência como comportamento. Não à toa, José crê que os interesses pelo programa são inúmeros.

Legenda: Caso Eloá foi o primeiro contado pelo Linha Direta na nova leva de episódios do programa
Foto: Reprodução

“De forma geral, atrações policiais não possuem poder de criar pessoas mais violentas. Tudo está vinculado à maneira como o espectador entende aquela determinada atração. Existem os que encontram algo de fantasia na montagem, narração e outros elementos; e quem pensará que, sim, trata-se do natural da vida”.

Ou seja: sabe-se lá quais serão as reações. Porém, pode-se supor que, dependendo da quantidade de prazer que se tem com exposições à violência, a busca por situações cada vez mais agressivas pode evoluir e se tornar crescente, ficando viciante. É uma hipótese.

Legenda: Domingos Meirelles comandou a segunda "temporada" do programa
Foto: Divulgação/TV Globo

“Desde as guerras de tempos imemoriais às disputas por territórios, formas de governos e diversão, a violência já era espetacularizada e, desde antes, por motivos diversos. A agressividade nos é inerente por razões inclusive de manter a vida. Resta-nos pensar a educação dos instintos em prol de uma vida digna, com diversidade e dignidade de existir em condições mínimas para aceitarmos as diferenças, os valores e as crenças”.

Sensacionalismo nosso de cada dia

Por ser classificado na categoria de noticiários sensacionalistas, o Linha Direta trata do “extraordinário” e do que pode ser considerado como anormal no cotidiano da vida comum a todos. É Geovani Jacó – sociólogo, professor da Universidade Estadual do Ceará e coordenador do Laboratório Conflitualidade e Violência na instituição – quem diz.

Segundo ele, essa questão, contudo, poderia ser tratada de modo a informar os fatos nos padrões da informação jornalística. O que vemos, no entanto, é a acentuação de um conjunto de características articuladas para mobilizar o fenômeno da violência pela linguagem do espetáculo – com elementos de fortes apelos emocionais visando capturar a audiência. 

Legenda: Pedro Bial assume a liderança da versão do programa em 2023
Foto: Divulgação/TV Globo

“Os acontecimentos são mostrados por meio de cenas que chocam, dramatizam e que, por isso mesmo, comovem a opinião do público em seu senso de solidariedade à vítima e de apelo imediato e irreflexivo de reparação e justiça”.

Esse movimento reflete uma “ira pacificadora” traduzida na  ideia de consumo da violência como catarse coletiva na busca de sua negação. “A estrutura desses programas considerados sensacionalistas ancora-se no enfoque da tragédia e de uma abordagem de acontecimentos violentos e das expressões mais dramáticas deles por meio do uso de linguagem de forte apelo emotivo em prejuízo da informação jornalística propriamente considerada”.

Não à toa, considerando esse ponto, Giovani lista quatro aspectos que despolitizam a opinião do público frente aos casos apresentados na produção – vetor considerado problemático para ele. Atrações feito o Linha Direta:

  • Alimentam a cadeia de medos, inseguranças e o imaginário coletivo fundados no temor aos territórios da cidade e ao “Outro”
  • Assim, o fenômeno da violência deixa de ser uma questão pública, de Estado e da sociedade para ser tratada sob o viés da dramatização espetacular que favorece a lógica do consumo de dispositivos de segurança, transformados em mercadoria de consumo individual de seus dispositivos, como forma de proteção individual
  • Favorecem a deslegitimarão ou descrença nos organismos de investigação e de justiça estatais na medida em que a própria lógica interna da narrativa assume este caminho, com soluções aligeiradas e cirúrgicas; 
  • Por fim, são graves os efeitos sociais desses programas na medida em que, orientados pela lógica do consumo, transforma a violência em um fenômeno do qual se extrai uma “violência-a-mais” como forma de potencializar e aquecer o grande mercado da segurança privada.

“O espaço público passa a representar todos os nossos medos e temores, levando as pessoas à atitude de reclusão, indiferença ou de demonização do outro, o suspeito de violento. Nesse caso, esses espaços vão se forjando sob o perigo imanente de serem territórios violentos, habitados por seres igualmente violentos”, considera o estudioso.

Midiatização exacerbada

A violência e os conflitos sociais são elementos historicamente estruturantes da sociedade e sempre serão fatores determinantes na criação de novas formas de arranjos sociais, tendo, portanto, um viés inevitável da vida coletiva. 

Entretanto, sob a ótica de Geovani Jacó, a mediatização exacerbada do fenômeno da violência passa a ter um novo modus operandi na sociedade ultramoderna e hiperlinkada, traduzida pelo entendimento da “sociedade do espetáculo”, como analisou o filósofo francês Guy Debord. 

“A notícia, a violência, o drama social deixam seus locais de origem. Passam a ser tratados como vitrines, perdem a individualidade, transformam-se em dados, estatísticas ou recortes espetacularizados em forma de mercadoria, igual a sabonete, para o banquete imediato”.

Legenda: Caso do menino Henry Borel foi outro apresentado recentemente pela atração
Foto: Divulgação/TV Globo

Desta feita, os eventos criminosos apresentados no Linha Direta não são tratados como acontecimento social, conforme ele, com complexidades de causas e efeitos, mas como notícias voltadas para o consumo imediato e para conversão em produtos a fim de atender à dinâmica e à necessidade dos mercados econômico, político e editorial. 

“Não há combate à violência sem políticas públicas democráticas e de proteção aos direitos humanos, aos indivíduos e à coletividade”, diz o estudioso. Mas também não há como se efetivar tais políticas sem o debate coletivo e politicamente orientado, construído na esfera pública, no debate aberto buscando as causas e os efeitos da violência seja ela em que dimensão pode se apresentar na coletividade.

 

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