Filme cearense resgata tradição dos dramas populares

O longa-metragem “Dramistas: Memórias do Ceará” resgata a tradição popular dos dramas, a partir do relato de mulheres que contam e cantam a realidade de onde vêm, a partir de suas próprias experiências

Escrito por Redação ,
Esta é uma imagem das dramistas
Legenda: Longa-metragem "Dramistas: Memórias do Ceará" trata sobre os grupos de cultura popular que mantêm viva a tradição do drama no Estado.
Foto: Divulgação

Foi no palco dos terreiros, dos quintais e dos locais públicos de pequenas cidades no interior do Ceará que muitas mulheres encontraram, durante anos, espaço para serem protagonistas de suas próprias narrativas. Da criação da história à interpretação de personagens masculinos, essas personalidades femininas deram origem aos dramas, uma tradição popular, encenada apenas por mulheres, que perpassa gerações. 

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Nessas encenações, as dramistas contam e cantam a realidade de onde vêm, a partir de suas próprias experiências. Conhecer quem mantém essa manifestação viva foi o que incentivou a produção do documentário “Dramistas: Memórias do Ceará”, que apresenta a história e a tradição de quatro grupos de dramas do interior do Estado.

Com lançamento previsto para junho de 2021, o longa-metragem visita as dramistas do distrito de Anil, em Meruoca, o Grupo de Tradição, em Guaramiranga, as dramistas de Tucuns, em Tianguá, e os Diamantes Uruoquenses, em Uruoca. As gravações foram realizadas em janeiro e fevereiro deste ano, com fomentos da Lei Aldir Blanc. 

“A gente tentou se aproximar mesmo de quem são essas pessoas, principalmente daquelas que estão há mais tempo no grupo. A gente investigou o dia a dia delas. Esteve com elas, principalmente com as mestras, durante vários dias. Além dessa parte documental mesmo, a gente registrou a relação delas com as outras pessoas”, relata o roteirista e diretor do filme, Augusto César dos Santos. 

A partir dessas histórias, o roteirista revela que a equipe de produção percebeu uma relação dos dramas com a emancipação feminina nessas localidades. Em Uruoca, por exemplo, as dramistas foram as primeiras mulheres a andarem de bicicleta, prática que era vetada na época, conta César. 

Legenda: Valdete Moreira Barbosa é dramista
Foto: divulgação

O historiador e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio e Memória da UFC, Hildebrando Alves, afirma que as relações de gênero, raça e orientação sexual sempre estiveram presentes no cotidiano desses grupos sociais e que, consequentemente, as manifestações populares não eram alheias a isso, embora, por muito tempo, essas questões tenham sido colocadas em segundo plano. 

“Esses espaços passam a ser locais não só de sociabilidade, mas espaços de construção identitária do lugar feminino. Você vê mulheres fazendo ambos os papéis, fazendo papéis masculinos, originalmente, e femininos dentro das narrativas que o drama apresenta. Isso é muito singular pelas maneiras como essas mulheres se percebem enquanto protagonistas da brincadeira e como elas se percebem dentro da própria interpretação”, explica o pesquisador. 

Vivências

Nos dramas, elas conseguem transmitir, além da sua própria vivência de mundo, a realidade do local onde vive. Cada região do Ceará possui uma particularidade acerca da sua formação, e as histórias que são contadas e cantadas nessas manifestações se entrecruzam com o contexto dessas localidades. 

Elas não apenas representam uma narrativa pré-estabelecida. Elas criam. O drama também é um espaço de criação. A trajetória da brincadeira está entrecruzada com a trajetória de cada realidade. Cada drama vai dizer muito da realidade onde cada grupo surge, de onde aquele grupo nasceu", diz o historiador.

Por essa razão, os dramas possuem uma variedade de narrativas, que vão desde o nascimento de Jesus Cristo a histórias de pescadores, marinheiros, ciganos, indígenas e dos próprios personagens que compõem o imaginário rural, como os matutos, coronéis e religiosos, esclarece Hildebrando Alves.

Legenda: Mestra Zilda Eduardo da Silva, de 94 anos, brinca drama desde os 10
Foto: divulgação

Apesar das narrativas tradicionais variarem de acordo com a localidade, há uma conexão entre as histórias cantadas. “A gente descobriu uma música que o pessoal de Anil canta desde a década de 80, é semelhante a uma música que o grupo de Tianguá canta, e ao que o grupo de Guaramiranga canta. Como essa galera dialogou? Deve ter tido alguma ponte. O que a gente sabe também é que não teve uma pessoa que saiu de município e município ensinando pra todo mundo, mas de alguma forma teve esse contato”, revela o diretor Augusto César.

Resistência

Outro ponto abordado no documentário é a manutenção dos dramas populares através das novas gerações. Entre os grupos que se definharam durante o tempo, seja pela idade das dramistas tradicionais, seja por falta de incentivos, meninas resistem. Nos municípios de Meruoca e Tianguá, as dramistas contam com a participação de jovens da comunidade.

“De certa forma, o desenvolvimento de algumas cidades, a mudança de estrutura de algumas relações acabou por deslocar esses espaços para outras práticas. Se fizer o mapeamento,  nós vamos ver um número bem menor de dramistas em relação a tempos anteriores, a décadas passadas”, alerta o pesquisador da UFC. 

Os dramas também foram afetados pela pandemia do coronavírus. Composto, sobretudo, por pessoas que fazem parte do grupo de risco, as dramistas optaram por interromper os ensaios. Além disso, alguns grupos se apresentam essencialmente em festivais locais, que estão suspensos desde março de 2020, como é o caso do Grupo de Tradição de Guaramiranga. 

“No pós pandemia, nenhum dos grupos estavam ensaiando. Com alguns, a gente conseguiu marcar um ensaio tomando todos os cuidados com testagem e assepsia dos equipamentos. No Anil, a gente conseguiu fazer uma apresentação depois da missa que teve na comunidade. A gente fez uma breve apresentação na praça”, descreve o diretor do filme. 

A ideia é voltar a essas localidades para a exibição do filme, após o controle da pandemia. O documentário também prevê a adoção de ferramentas de acessibilidade, como tradução para a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e audiodescrição.

“A gente quer que o filme circule em festivais, a gente quer que as pessoas vejam que existam o drama”, compartilha o diretor Augusto César dos Santos. “O palco é o lugar delas. É o lugar de brilhar, de se expressar, lugar de falar, lugar de cantar. É muito interessante perceber no drama, os cortes, as vozes, os gestos. Diz muito como essas mulheres se percebem e como elas querem ser percebidas”, completa o historiador  Hildebrando Alves. 













 

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