Escritora cearense do século XIX desafiou sociedade ao falar sobre divórcio em livro
Natural de Tauá, Francisca Clotilde ganha os olhos do público a partir da nova edição do romance “A Divorciada”, publicada por editora surgida na pandemia
Se Francisca Clotilde (1862-1935) te parece anônima, volte duas casas. É uma das mais importantes escritoras do Ceará. Nascida em Tauá – a 343 quilômetros de Fortaleza – foi inquieta movimentadora social. Educadora e jornalista, participou da campanha abolicionista e defendeu a emancipação feminina. Publicou contos, poemas e artigos. Uma diva.
Mas se mesmo assim ela te parece anônima, é devido ao patriarcado. Em 1902, Francisca publicou “A Divorciada”, romance que tumultuou a época e levou a autora ao quase total esquecimento. “Com o livro, quebrava-se um tabu familiar muito grande na sociedade”, reflete Anamélia Custódio Mota, conterrânea e pesquisadora da obra de Clotilde.
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O trabalho não ganhou grande divulgação exatamente devido ao tema, considerado bastante assustador. Além disso, quase 90% da população naquele período era analfabeta. Os 10% restantes viviam dedicados ao regime patriarcal. Mulheres escrevendo romances, ainda mais com o título em questão, era um verdadeiro escândalo.
Das poucas notas em jornais locais até a reedição contemporânea do livro passaram-se 120 anos. O patriarcalismo continua dizimando talentos, massacrando realidades. Mulheres prosseguem enfrentando desafios, dores cotidianas. Mas iniciativas como a da editora Janela Amarela, do Rio de Janeiro, mudam um pouco as coisas. O mais recente lançamento da casa é exatamente a nova edição de “A Divorciada”, num movimento de redescoberta de Francisca Clotilde.
Disponível nas versões física e digital – embora com vendas somente na segunda modalidade – a obra chega às mãos da audiência abrindo espaço para o justo reconhecimento do talento da cearense. Com traços autobiográficos, a história retrata um amor puro, porém torturado pelo destino e pelas convenções sociais, no melhor estilo Jane Austen (1775-1817).
“Não encontro justificativa para o nome dela ter sido apagado da História da Literatura Brasileira”, indigna-se Carol Engel, uma das idealizadoras da Janela Amarela e também ilustradora do livro. “Não somente pelo livro em si, mas por tudo que ela fez em prol da causa feminina – como educadora, jornalista e todos os ofícios assumidos na época dela”.
Não à toa, a vontade de publicar Francisca Clotilde veio como apelo do próprio público seguidor da Janela Amarela – criada durante a pandemia de Covid-19, fruto da parceria entre mãe e filha – no instagram. A família de Carol também tem raízes cearenses, o que ampliou o desejo de mergulhar na vida e na obra de uma pioneira na Literatura e na Educação, tanto do Ceará como do Brasil. Alguém para ler e reler.
Mulheres entre outras mulheres
Mas como uma obra tão antiga e praticamente desconhecida foi resgatada? O processo foi longo. Após volumosa pesquisa, Carol Engel teve acesso a uma versão digitalizada da versão original. Nesse processo, faltavam algumas páginas que quebravam a narrativa do texto. Resultado: a editora, juntamente à mãe, Ana Maria Leite Barbosa, levantaram informações por diferentes cidades, entrando em contato com pesquisadores e acadêmicos.
Foi a partir do auxílio de Anamélia Custódio Mota, da Academia Tauaense de Letras, que as páginas faltosas apareceram. “Ela possuía um fac-símile da mesma obra que a gente tinha, e fez a gentileza de fotografar as páginas e mandar pra gente”, lembra Carol.
“Nossa ideia é trabalhar com obras a partir da versão original. Fazer essa redescoberta da Literatura Brasileira, trazer trabalhos que foram esquecidos. O que não está no mercado, o que ainda não foi reeditado”. Na seara de livros já publicados pela Janela Amarela estão vários títulos da carioca Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), de Teresa Lieve e de Laura Góes.
Da parte de Anamélia, a comemoração é grande. A pesquisadora sabe, com riqueza de detalhes, dos revolucionários passos de Clotilde. Foi a primeira mulher a lecionar na Escola Normal do Ceará, em 1882. E participou do movimento de libertação dos escravos no Estado, integrando a Sociedade Abolicionista Cearenses Libertadoras, composta por mulheres.
Entre outros tantos feitos pioneiros, criou uma escola mista – algo incomum naquela época – e colaborou em diversos jornais nacionais e estrangeiros, inclusive no periódico “A Estrella”, fundado em 1906 pela filha, Antonietta Clotilde, e a sobrinha, Carmem Thaumaturgo. “Acho de extrema importância essa recente publicação porque resgata uma obra de significativo valor à história da nossa Literatura, tanto a nível de Ceará como a nível de Brasil”.
Onde estão as mulheres na ABL?
Cabe aqui outra reflexão, sobretudo nesta quarta-feira (30) – data em que a Academia Brasileira de Letras completa 125 anos. Onde estão as mulheres na ABL? Por que a representação feminina na casa ainda é tão insípida? Como escritoras do quilate de Francisca Clotilde não se tornaram imortais pela instituição?
É Carol quem pesa esses pontos. “A Academia Brasileira de Letras foi criada aos moldes da Academia Francesa. Com isso, não se considerava a possibilidade de incluir mulheres entre os acadêmicos. Por muito tempo, não se viu mulher dentro da instituição. A própria Júlia Lopes de Almeida, que participou da fundação e das conversas iniciais para a criação da ABL, não teve o nome cogitado como acadêmica porque era uma mulher”.
Segundo a editora, o panorama está mudando, e isso é motivo de comemoração – embora também de constante luta e vigilância. É preciso que mais mulheres adentrem o portal da imortalidade.
“Ainda somos poucas por lá, mas as que já estão são fortes, têm uma representatividade. Acredito que a tendência é uma mudança crescente. Não vai se transformar de uma hora pra outra. A caminhada para a mudança já vem acontecendo e, no futuro, já nem será mais um debate. Infelizmente, naquela época, tomaram a decisão de não permitir mulheres, e são muitas – não só a Francisca Clotilde, mas outras – que deveriam ter feito parte e injustamente ficaram de fora”.
Ler obras escritas por mulheres, incentivando essa produção – a exemplo de “A Divorciada” – pode ser um bom começo para que a evolução prossiga. Continue e não cesse. “Já tem gente nos representando, e esse número com certeza vai aumentar”.
A Divorciada
Francisca Clotilde
Janela Amarela Editora
2022, 171 páginas
R$60,90/ R$18 (e-book) (site da editora neste link)