Cearense constrói casa-museu que conta história do sertão a partir de objetos de família
Idealizador se inspirou nas avós para fundar o equipamento; localizado em São Gonçalo do Amarante, espaço também abrange histórias de São Luís do Curu
O que você faz com os relatos que ouve e os objetos que recebe? Roberto Moreira Chaves, 28, transforma tudo em coleção. Depois, em museu. O estudante e servidor público é idealizador do Museu Casa de Quinca Moreira, localizado em São Gonçalo do Amarante, região metropolitana de Fortaleza. Apesar do recorte geográfico, o equipamento vai além. Também está ligado ao município de São Luís do Curu, interior cearense.
Para entender essa conexão, é necessário voltar no tempo e visualizar um antigo costume de Roberto: conversar com as avós. Maria Augusta da Silva Moreira, de São Gonçalo, e Maria Oneide de Oliveira Chaves, de São Luís do Curu, trocavam confidências com o neto. Mais: sempre havia objetos para compartilhar, itens ligados às vivências de ambas.
Com o tempo, a percepção de que cada peça ultrapassava a história pessoal cresceu a ponto de tomar grandes proporções. “Fui criando uma espécie de álbum de fotografias com imagens antigas da família. Assim nasceu a Coleção Moreira Chaves, cujo objetivo era preservar essa memória familiar. Acrescentei outras tipologias de materiais à coleção (objetos, documentos), e ela foi crescendo. Aos poucos, pude perceber que tudo isso ia para além da história da minha família. Ela tratava de processos de ocupação da região”, conta Roberto.
Assim, entre 2005 e 2006, ele criou um pequeno museu em São Luís do Curu – cidade-natal – com algumas curiosidades sobre a região. Uma década depois, o acervo foi para São Gonçalo do Amarante. O intento com a mudança era nobre: transformar a sede da antiga Fazenda Salgado, lugar que deu origem à comunidade de Salgado dos Moreiras, no Museu Casa de Quinca Moreira. O local leva o nome do avô de Roberto, antigo proprietário do lar.
Nesse processo de modificação, foi necessário restaurar toda a estrutura do ambiente, feito de taipa de mão. As origens remontam às mais antigas habitações da comunidade, na década de 1940. A casa é a segunda sede da Fazenda Salgado, ponto central para posterior construção de colégio, chafariz, praça, cemitério e todos os atuais espaços públicos da localidade. Antes desses territórios, era na morada que ocorriam casamentos, festas e missas.
“O foco, portanto, é preservar a história e a memória do processo de ocupação da Ribeira do Curu, considerando principalmente o litoral oeste. Apesar de o acervo ser focado em dois municípios, há alguns documentos referentes a Paracuru, uma vez que a região de São Gonçalo era antes ligada a essa outra cidade, numa disputa territorial”, pontua o diretor do lar.
“Tudo começa com uma coleção particular, mas acaba tendo essa ampliação, agregando também outros acervos, referentes a mais famílias da região”.
Retratos, documentos, ex-votos
Sete mil itens compõem o museu. No primeiro inventário, realizado em 2015, o número era de 1700 peças. Tamanho crescimento deve-se exatamente à precisa e cuidadosa coleta de materiais – de cartas e documentos no geral, até objetos e mobiliário. Desde a inauguração do equipamento, em janeiro de 2020, muita coisa se agigantou.
Atualmente, sete salas de exposições apresentam o panorama ao público. Quase todas são permanentes, apenas duas temporárias: uma envolvendo o projeto de Registro do Patrimônio Cultural da Ribeira do Curu; outra com acervo ligado ao município de São Luís do Curu – a Coleção Mooc, retratando a vida e a obra da artesã Maria Oneide de Oliveira Chaves.
Entre as fixas, estão uma sobre o já citado Quinca Moreira; o ofício do sertanejo; aquela relativa à senhora Maria Augusta da Silva Moreira, e tantas mais. Um dos aspectos mais interessantes é perceber a pluralidade do todo. De fotografias a documentos, passando por ex-votos, bordados e prensas, tudo cabe nos recintos. Cômodos que viram histórias inteiras, refletindo sobre religiosidade, economia, arquitetura e o modo de viver dessa parte do Ceará.
Os desafios da casa, porém, são inúmeros. A própria questão do prédio – que não é em alvenaria, mas erguido a partir de técnica mais complicada – ganha destaque. “Na época em que fui restaurá-lo, as pessoas diziam, ‘não restaura porque você vai gastar muito’. Mas a ideia era mesmo restaurar”, relata Roberto.
“Outro desafio diz respeito ao acervo. Infelizmente, ainda não temos reserva técnica no museu. Toda a parte documental, principalmente o acervo fotográfico e arquivístico, se encontram aqui comigo, em Fortaleza”.
Nada disso turva o brilhantismo do projeto. A criação do museu e toda a narrativa que o cerca fez com que, em 2020, Roberto fosse um dos vencedores do 33º Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – maior iniciativa brasileira na área do Patrimônio Cultural.
Há outro bônus: o reconhecimento comprovou a expertise do idealizador do equipamento. Os saberes acumulados por ele – atuante no laboratório de conservação e restauro de bens culturais móveis do Memorial da Universidade Federal do Ceará e estudante de pós-graduação em Arqueologia e Patrimônio Cultural na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) – nasceram a partir de cursos realizados na Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho. Roberto passou a frequentar a instituição ainda adolescente.
“Levei a experiência da Escola para a minha região. Antes, ouvia muito as histórias das minhas avós, mas não tinha o hábito de registrar – nem por áudio, nem por vídeo. Depois, comecei a fazer isso. Ia gravando, anotando… Sem dúvida, a experiência na Escola foi fundamental para que eu pudesse pensar em como preservar essa memória”.
Reflexo sensível
Curador de Artes e conservador/restaurador de Bens Patrimoniais Móveis e Integrados, Antonio Vieira afirma que Roberto Moreira Chaves sempre foi um aluno curioso na Escola de Artes e Ofícios. A sede de conhecimento e o interesse em descobrir novos conceitos fez com que ele encontrasse definitivamente o próprio caminho, ligado à educação.
“Ver o empenho dele e dedicação impacta diretamente em todos, estabelecendo uma relação de pertença aos moradores daquelas comunidades – principalmente os mais jovens, que podem e devem enxergar no Roberto um exemplo de dedicação e amor por sua região, e principalmente por sua origem”.
A potência da casa-museu, conforme Antonio, ressignifica toda essa trajetória, possibilitando aos jovens de hoje, aos moradores e aos visitantes uma nova forma de enxergar o lugar em que vivem. O curador também sublinha que a Escola de Artes e Ofícios, por meio de formação modular promovida pelo Curso de conservação e restauração de bens patrimoniais móveis e integrado e Organização de acervos museológicos, contribuiu na educação multidisciplinar do ex-estudante da casa.
Roberto passou a compreender questões conceituais permeadas na área da arte, cultura e patrimônio. “Essa tríade é a base para a construção do conhecimento adquirido por ele. Isso possibilitou a compreensão de como ele poderia, de fato, materializar todos os questionamentos em ação concreta diante do próprio sonho e objeto de pesquisa”.
No mês dedicado aos Museus – tendo em vista o Dia Nacional dos Museus, em 18 de maio – Antonio Vieira reflete sobre a relevância de inaugurar um equipamento feito o Museu Casa De Quinca Moreira. A atual conjuntura política, social, econômica e cultural enfrentada pelo Brasil, segundo ele, nos faz distanciar de realidades vividas em diversas regiões da nação.
“Esses lugares longínquos são carregados de memórias, lembranças e afetos. São essas marcas herdadas por Roberto Chaves, que desde criança vislumbrou no sonho de adolescência a ideia de criar um lugar onde pudesse compartilhar aquilo que era mais precioso para si. O Museu Casa de Quinca Moreira é mais do que um espaço cheio de objetos. É o reflexo sensível de um menino que plantou a esperança num terreno árido, distribuindo, assim, o fruto da própria colheita a todos os moradores da comunidade”.
O diretor do museu-casa – que participou, inclusive, do restauro do Theatro José de Alencar e de outros arrojados projetos, dentro e fora do Ceará – reitera esses componentes ao prever mais modificações no local. A ideia é ampliar o ambiente, tendo em vista o espaço limitado, em contraste com a quantidade de peças que vem chegando.
Outra proposta é que o acervo ligado a São Luís do Curu vá para o município. Criar a reserva técnica e amplificar as áreas de exposição e de oficina também estão na conta. “Infelizmente, não temos uma equipe fixa no Museu, e essa é uma de nossas limitações. Com o tempo, pretendemos trabalhar melhor essa questão também”, pontua Roberto.
“É fundamental refletir sobre um museu que chega assim para o mundo. Principalmente neste ano, com a 20ª Semana dos Museus tendo como tema ‘O poder dos museus’. Pensar essa força para transformar o grupo, a sociedade, a comunidade. Isso é muito importante”. Corporificar memórias: início de revoluções.
Serviço
Museu Casa de Quinca Moreira
Localizado na comunidade de Salgado dos Moreiras, distrito de Cágado, município de São Gonçalo do Amarante (CE). Visitas apenas por agendamento por meio do perfil do Museu no instagram ou pelo e-mail casadequincamoreira@gmail.com.