Do interior à capital, a dura realidade de quem promove a leitura no Ceará
Pesquisa revela que investimento federal na formação de leitores é ausente; repletas de desafios, iniciativas da sociedade civil tentam sanar essa lacuna
Está no artigo 215 da Constituição Federal Brasileira: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. No Brasil de 2022, porém, a realidade é bastante diferente. No segmento do livro e da leitura, por exemplo, o investimento federal na formação de leitores não existe.
A constatação é revelada na pesquisa “O Brasil que Lê”, apresentada na última quarta-feira (3). Inédito, o mapeamento é capitaneado pelo Instituto Interdisciplinar de Leitura e Cátedra Unesco de Leitura da PUC-Rio, em conjunto com o Itaú Cultural. O objetivo é mapear os projetos de formação de leitores em todo o País, situando as características dessas ações.
Sem nenhuma atenção da maior instância política no Plano Nacional de Livro e da Leitura (PNLL) – instrumento com diretrizes para assegurar a democratização do acesso à leitura e o fortalecimento da cadeia produtiva do livro – são os projetos da sociedade civil e de gestões públicas os responsáveis por favorecer uma nação leitora.
No Ceará, encontramos iniciativas do interior à capital, entre limites escolares e muros de casas. O Clube de Leitura Literaturar acontece em Redenção, município da Região Metropolitana de Fortaleza, desde 2019, quando foi criado.
A ideia surgiu a partir de duas educadoras, Mirteny e Joanna Cavalcante, professoras da rede pública municipal de ensino. O foco é a necessidade de promover um espaço de leitura literária e reflexão para o público jovem de uma escola pública de ensino fundamental da cidade, a E.M.E.F. Professora Maria Augusta Russo dos Santos.
“Nosso contato com a literatura é constante e tínhamos o interesse de ver nossos alunos inseridos nesse universo, sendo transformados a partir do contato com o texto literário”, argumenta a dupla. Apesar do nobre intento, são grandes os desafios para manter a empreitada. Uma vez Redenção possuir realidade geográfica diversificada e pelo fato de a escola que sedia o clube estar localizada na sede do município, a distância é um dos entraves.
Muitos estudantes se encontram em localidades mais afastadas do Centro. Por isso mesmo, uma boa quantidade deixou de participar do clube, com frequência semanal; outros dependem do transporte escolar para comparecer aos encontros.
“Além da distância, um outro desafio se dá devido ao acervo limitado. Embora a escola tenha uma sala de leitura com grande quantidade de livros, os gêneros disponíveis, muitas vezes, não vão ao encontro do interesse dos participantes, de modo que o empréstimo do acervo pessoal das mediadoras é algo constante no Clube de Leitura Literaturar”, situam Mirteny e Joanna. Elas destacam ainda que a ação contempla meninos e meninas de 12 a 15 anos – logo, sem renda própria para a aquisição de obras literárias.
Tudo do próprio bolso
No total, 382 iniciativas foram registradas com respostas completas na pesquisa “O Brasil que Lê”, em um universo de cerca de mil recebidas. Devido à pandemia de Covid-19, o estudo foi desenhado em 2019 e aplicado remotamente em 2020.
Apenas Acre, Alagoas e Sergipe não participaram do levantamento que, entre outros dados, demonstra que a maioria das ações de fomento à leitura da Região Nordeste acontece no interior.
Já no que diz respeito à distribuição de projetos dessa natureza por Estados e Regiões, o Nordeste fica em terceiro lugar, com 74 iniciativas – superado pelo Sudeste (185) e pelo Sul (75).
Por sua vez, quanto ao uso de recursos tecnológicos para favorecimento da leitura, as ações nordestinas se destacam pelo uso de computador (79,73%) e celular (55,41%), assumindo a liderança em solo nacional nessas duas categorias.
De acordo com Mirteny e Joanna, as atividades do Clube de Leitura Literaturar não são financiadas por organizações ou outras instituições. A blusa oficial do projeto, por exemplo, teve iniciativa própria dos participantes. Eles elaboraram marcadores de páginas e fizeram rifas a fim de arrecadar fundos para aquisição.
Esta é mais uma realidade mapeada na pesquisa “O Brasil que Lê”. Ao mensurar as dificuldades enfrentadas pelas ações de fomento à leitura, 76,74% delas responderam que um dos maiores entraves para a continuação das atividades é a falta de recursos financeiros, algo ligado a outra lamentável estatística.
39% das iniciativas são mantidas a partir de financiamento próprio dos responsáveis, demonstrando as dificuldades em conseguir apoio para as ações. Além disso, a abrangência dos projetos encontra maior vigor nas esferas municipal (28,01%) e comunitária (23,3%), sinal de que a leitura está se disseminando em esferas mais próximas da população.
“O nosso clube de leitura transformou a vida de meninos e meninas a partir do contato com a literatura. Temos participantes que não gostavam de ler, não sabiam por onde iniciava a leitura de um livro, além de tantas outras histórias. Na pandemia, nos chamou atenção o fato de famílias estarem compartilhando a leitura, acompanhando os encontros remotos e dividindo, assim como os meninos, suas impressões do que liam”, descrevem as educadoras.
Na fala e no semblante dos jovens, também fica registrada a relevância do projeto. Aos 16 anos, a estudante Ana Lídia diz: “O Clube de Leitura não foi, mas é uma das experiências mais extraordinárias que eu já tive na minha vida – tanto que incluo isso como parte de mim. Ele trilha o caminho para a leitura, abre espaço para esse mundo e leva a novas amizades... Faz a leitura não ser uma obrigação, mas uma necessidade, algo prazeroso de se fazer”.
Wilame Silva, de 17 anos, segue no mesmo rastro. Há um antes e um depois diante da iniciativa. “Antes do clube de literatura, ler não me parecia algo divertido. Eu só lia por obrigação. Mas, depois que entrei, percebi que estava enganado, pois os livros não são só papéis com coisas escritas, mas sim mundos repletos de coisas fantásticas que se abriram pra mim quando comecei a ler pra me divertir”.
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Ainda sobram dificuldades, contudo. Além da já referenciada questão geográfica em Redenção, a falta de ferramentas (computador, datashow, folhas para cópias, dentre outros) também faz parte do cotidiano. Algumas vezes, não há espaço para as reuniões – considerando que a sala da escola por vezes é cedida para outras ocasiões – e existe o desinteresse de muitos jovens para aceitar o convite de conhecer a proposta.
“Sabe-se das iniciativas federais e estaduais. No entanto, pouco chega à realidade das escolas, principalmente quando se fala de cidades do interior. Quando se trata da esfera municipal, pequenas ações acontecem nas escolas por meio de projetos literários. Como formas de melhoria, apontamos: formação de profissionais, acervo mais diversificado e promoção de atividades lúdicas e pedagógicas com foco na leitura”, recomendam as professoras.
Faltam livros e acomodações
Mais de 170 quilômetros separam Redenção do município de Banabuiú, interior do Estado. O cotidiano de quem promove a leitura, contudo, é o mesmo. A funcionária pública Marília Batista Sá é idealizadora do projeto “Conte de lá que eu conto de cá”. Com nome inspirado em um poema de Patativa do Assaré (1909-2022), a ação acontece desde 2016 e envolve leitura e contação de histórias para crianças do segundo ano do ensino fundamental.
As atividades são realizadas duas vezes por semana. Não existe uma temática fixa. O público-alvo engloba estudantes de 7 a 8 anos de idade, em número de 30. Já as reuniões se sediam na Biblioteca Pública Municipal. Ninguém financia institucionalmente o projeto. “É ‘a cara e a coragem’ que fazem com que nossos encontros se tornem realidade”, diz Marília.
“Gostaria que tivéssemos mais opções de livros infantis – nosso acervo está bem antigo e muitas vezes precisamos pegar obras emprestadas com terceiros ou repetir as mesmas que já foram trabalhadas. Também queria muito um tapete para acomodar as crianças no momento da contação, e ainda adquirir material para confeccionar alguns objetos, enriquecendo o processo de imersão literária. Igualmente, seria muito válido oferecer um lanche para os pequenos após o momento”, enumera a idealizadora.
Conforme observa, o panorama é desafiador, mas muito estimulante. Marília percebe que a família precisa ter uma maior aproximação com a escola, haja vista a maioria dos participantes do projeto ainda não saber ler – embora demonstrem interesse em aprender. Ela acredita que o estímulo à leitura precisa ser diário, algo que contagia inclusive a própria trajetória de vida.
“O projeto foi para mim uma salvação mediante tantas adversidades. Contar histórias para as crianças é um prazer tão imenso que sinto ali uma força maior em sintonia comigo e com elas. Poder proporcionar aquele momento e ver os olhos delas brilharem no desfecho da história, e todo o envolvimento do começo ao fim, é indescritível. Digo-lhe que a leitura diariamente me faz um ser humano mais humano. Me faz muito bem”.
Tanto Mirteny e Joanna Cavalcante quanto Marília Batista integram outra estatística da pesquisa “O Brasil que Lê”. 74,8% das pessoas responsáveis por projetos de promoção da leitura são mulheres. Na mesma conta, 67,28% dos agentes possuem pós-graduação (67,28%), seguido de ensino superior (27,75%).
São variáveis que ecoam este tipo de reflexão: “Acho as políticas públicas nessas esferas ainda insuficientes e com visão míope. Nosso projeto não recebe apoio nenhum para funcionar. Para melhorar, precisamos de auxílio de uma forma geral”, sugere Marília.
Circular leituras
Criada em Fortaleza, mas com grande ressonância no interior cearense, a Caravana de Leitura e do Autor Cearense chega para somar nesse debate. Projeto de circulação literária – ocorrido anualmente, ao longo de três meses – enxerga como um dos maiores desafios a dificuldade de renovar o fomento para viabilizar a ação. Em sete edições, a iniciativa percorreu 25 cidades.
“Há toda uma contratação de produtores, autores – uma vez que eles vão às localidades in loco bater um papo com crianças – transporte, alimentação, estadia, e isso tudo precisa ser bancado por alguém. Nos últimos sete anos, foi por meio de mecenato estadual, mediante parcerias também com algumas prefeituras ou mobilização de escolas, geralmente nos distritos”, afirma o ator e contador de histórias Raimundo Moreira, idealizador da caravana.
Durante a pandemia de Covid-19, a dificuldade foi de outra natureza: era complicado chegar às crianças e escolas com as quais tinham acesso devido à ausência de aparato tecnológico para acessar o conteúdo produzido. A internet não chegava a todos os lugares, minando avanços. Falando neles, foram muitos ao longo de todos os anos de realização da iniciativa.
“Há histórias de crianças que nunca tinham ganhado um livro; que jamais pensaram em ver de perto o autor de uma obra; que tinham vontade de ter uma biblioteca em casa, entre outras”, enumera Raimundo. Em resumo, a tônica da Caravana é incentivar o hábito da leitura de escritoras e escritores locais.
Para isso, ela se realiza em duas etapas: uma de formação – por meio do contato entre autores e professores, e posterior entrega de livros para a biblioteca das escolas; e uma de bate-papo dos escritores com os estudantes, uma vez estes últimos terem tido contato com os livros durante 30 dias e estarem prontos para estender os horizontes.
“As crianças têm um desejo natural de querer ler, de ouvir histórias, e muitas vezes não fazem por questões mesmo econômicas. E também porque não é um hábito para elas sentar e ler. Muitas vezes a educação não tem esse incentivo necessário como algo permanente. Tudo o que o professor faz em sala de aula deveria estar ligado à leitura – no maior e mais amplo sentido da palavra. Ler as coisas ao redor”.
Por sua vez, avaliando o cenário de fomento à leitura e à literatura nas esferas federal, estadual e municipal, Raimundo situa faltar continuidade. A questão está ligada especialmente à renovação de acervo dos equipamentos públicos, investimento em profissionais qualificados e políticas públicas específicas para esse fim.
“Política pública federal praticamente não existe. É um pouquinho melhor na Prefeitura de Fortaleza, a partir da inauguração de algumas bibliotecas comunitárias. Mas a Biblioteca Dolor Barreira, que deveria ser a maior da cidade, não tem uma programação específica, nem reforma estrutural e pessoal. Também não há um projeto consistente para ela. No Estado, o cenário melhora um pouco mais, mas ainda é muito distante do ideal”.
No fim das contas, o que prevalece é o ímpeto de fazer. “É um desafio anual escrever o projeto, renovar o financiamento, escolher as cidades… Mas, quando chegamos nos municípios e encontramos aquelas crianças com os olhos brilhando, temos a certeza de que encontramos um caminho importante para o estímulo à leitura”.