‘Descobrir o ócio como um valor a ser conquistado é vital para a saúde’, diz estudioso

Especialistas refletem sobre nossa relação com o tempo a partir do acelerado contexto em que vivemos

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Tempo se tornou mercadoria e passou a ter valor econômico
Foto: Smolina Marianna/ Shutterstock

Os dias parecem ter menos horas. As semanas, menos dias. Os meses terminam com a mesma velocidade que começaram. E, quando nos damos conta, já é outro ano.  É apenas impressão ou, de fato, nossa relação com o tempo está cada vez mais diferente? Bombardeados pelo excesso de informações e atividades, talvez pouco pensemos sobre isso. Mas situar os impactos desse aceleramento na saúde mental se faz cada vez mais necessário.

Psicólogo, Doutor em Psicologia pela Universidad de Barcelona e professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza, José Clerton Martins explica que a ideia de celeridade do tempo, a partir dessa sensação de que ele está “voando”, é bastante antiga. Remonta à industrialização, automação e à tecnologia aliadas à busca por ganhar tempo para a vida. Também está ligada ao produtivismo do capital. 

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“Nesse ciclo, do mesmo modo que ganhamos vida, apenas acessamos esse lugar a partir da compra de objetos – coisas que, segundo discursos hegemônicos, representam a vida que se deve conquistar a partir do uso da tecnologia. Então, nos ocupamos com esse algo a mais para se obter. E, é claro, investimos o material do qual a vida é feita: o tempo”, detalha.

Tal modelo de sociedade se iniciou a partir do momento em que o fator temporal passou por metamorfoses significativas, sobretudo quando as pessoas resolveram medir as horas e quantificá-las na dinâmica industrial, chegando à comercialização do próprio tempo. Este, assim, se tornou mercadoria e passou a ter valor econômico. 

É quando surge a pressa como fenômeno típico da atualidade, mola mestra para a fabricação de equipamentos a fim de podermos ganhar mais tempo. Ao observarmos essa lógica, porém, constatamos que acabamos ganhando tempo e não sabendo como utilizá-lo a nosso favor, preenchendo-o com mais atividades e nos exaurindo cada vez mais.

“Fica claro que em nossa sociedade, sempre exigente por mais produtividade e com pressa de consumir em busca da novidade, nada dura muito. O novo é fascinante. O último modelo seduz pela imagem de inovação e dinamismo. Tudo se torna obsoleto e velho rapidamente. Isso vale para pensamentos, ideias, sentimentos e, pasmem, relações e pessoas. Tais dinâmicas agora são rápidas e fluidas, não existindo mais o sentido do vínculo e do tempo da apuração dos valores que antes sustentavam as tradições, as relações e as crenças”.
José Clerton Martins
Psicólogo, pesquisador e professor da Universidade de Fortaleza

Desconectar para reconectar-se

Como medir, então, o valor do ócio nesse lugar de ligeireza e brevidade? Também coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares sobre Ócio e Tempo Livre (Otium), da Universidade de Fortaleza, José Clerton considera que a prática do parar resguarda valores negativos difundidos pela influência religiosa e pela própria história da industrialização e modernização brasileira. 

Ao longo desse trajeto, se pôde observar o surgimento de uma nova ordem entre operários e patrões, bem como a necessidade de controle social do tempo fora do trabalho, a fim de garantir a estrutura numa coletividade elitista, herdeira de valores colonialistas. 

“O ócio é um termo tão antigo quanto o trabalho. Porém, somente após a Revolução Industrial, com o surgimento do chamado ‘tempo livre’ – uma conquista da classe operária frente à exploração do capital – é que ele foi evidenciado, ocorrendo a nítida separação entre tempo-espaço de trabalho (produção) e lazer (atividades contrárias ao trabalho), este por meio de práticas que se voltam para a reposição física e mental”, situa o professor.

No contexto de pandemia do novo coronavírus, principalmente levando em conta o isolamento compulsório, o tempo da tarefa e das obrigações, via valor econômico, continuou a ser o tempo dominante, pois assim sempre foi. Nunca se trabalhou tanto na história da humanidade. Para o psicólogo, isso evidencia a falácia do home office, convocando à necessidade de pararmos a fim de questionar qual o sentido disso tudo.

“Tais realidades nos levam cada vez mais a reiterar a compreensão de que, na contemporaneidade, a noção de tempo se vê bastante alterada. Nós, que estávamos profundamente acostumados a ele como constante objetiva, somos instados a pensá-lo também como categoria relativa, subjetiva e circunstancial. E agora estamos diante do desafio da reflexão sobre os novos lugares do tempo livre, do ócio e do lazer, pois sabemos que o que se determinou no passado pós-industrial convoca novos horizontes para um pós-pandemia”.

Desse modo, as pessoas podem ser intimadas a dar um “basta” nas atividades, otimizando o tempo livre para acessar uma série na TV ou participar de uma conversa descontraída enquanto se come uma pizza dentro de casa mesmo, dando uma “desligada” no computador. “Desconectar para reconectar-se pode ser uma saída caso o sujeito possa reconhecer sua autonomia”, defende José Clerton.

Legenda: Para José Clerton Martins, o ócio vem sendo cada vez mais reconhecido pela sua força, tanto no fator preventivo quanto no terapêutico
Foto: Ares Soares

“Descobrir o ócio como um valor a ser conquistado por suas potencialidades é vital para a saúde – mas, é claro, esse não é unicamente o seu fim, pois, como ensinou Aristóteles, o fim do ócio reside nele próprio. O ócio é autotélico, mas advém dele os benefícios para uma existência em bem-estar e satisfação vital”.

Sentir também o corpo

A discussão sobre aproveitamento do tempo e os reflexos desse movimento na saúde mental também atravessa questões ligadas ao corpo. Afinal, é nele onde igualmente presentificamos angústias e potencialidades. Coreógrafa e professora de dança há mais de 30 anos, a arteterapeuta Andréa Bardawil sublinha que o tempo sempre foi objeto de trabalho na arte que realiza. “Expandir o tempo, torcê-lo, dilatá-lo ou simplesmente habitá-lo, como desejaria João Cabral de Melo Neto”, descreve.

“Minha dança sempre foi da ordem da lentidão, da permanência, da habitação. Uma forma de lembrar que tempo não é um só. São muitos os tempos, ao contrário do que o capitalismo tenta determinar, regrar, instituir e capturar. Então, estabelecer uma melhor relação com o tempo tem mais a ver com esgarça-lo do que com ocupá-lo. Abrir espaço para as sensações, sorvendo-as. Produzir vida leva tempo. Produzir urgência tira tempo”.

Legenda: Andréa Bardawil: “Na desconstrução do tempo é que se dá a fissura; e se não aprendermos a nos colocar diante disso, só nos restará a vertigem”
Foto: Arquivo pessoal

Segundo ela, o ato de cuidar do corpo pode significar coisas diferentes para pessoas diferentes. Pode estar ligado, por exemplo, ao ato de intervir na forma física visível – de acordo com uma expectativa de beleza que varia muito, culturalmente – ou estar associado a aspectos como o emocional, o psicológico ou mesmo o espiritual. Mas, afinal, qual a nossa expectativa de bem-estar dentro desse contexto? 

“Para os povos ancestrais, a cura tem a ver com a saúde integral de uma pessoa, corpo e espírito alinhados, em conexão com a natureza. Também penso dessa forma.  Parece-me que a integralidade corpo-mente nunca foi  tão importante de ser buscada como hoje em dia, sobretudo com a fragmentação imposta pelo regime de temporalidade produtivista do capitalismo”.
Andréa Bardawil
Coreógrafa, professora e arteterapeuta

Abrir espaço

Questionada a respeito de que forma podemos mensurar, sob essa lente, as causas e consequências do burnout, um dos assuntos mais discutidos na atualidade – o distúrbio psíquico, relacionado à exaustão extrema, se tornará doença de trabalho em 2022 – Bardawil dimensiona que esse fenômeno evidencia o colapso dos modos de vida pré-fabricados a que nos sujeitamos.

Assim, é preciso abrir espaço, acolhendo a si mesmo e ao tempo, do mesmo modo que escolhendo outro modo de permanecer no aqui-agora, suportando o silêncio e ficando diante de si para suportar ficar diante do outro. 

“A maior subversão para o capitalismo é parar. Não produzir, não fabricar, não fazer em excesso. É não consumir, não ansiar pela novidade do dia, não querer ser o novo. É não precisar. É não se afogar no fluxo vertiginoso do ter-que-fazer. Na desconstrução do tempo é que se dá a fissura, é onde podemos criar um contrafluxo, sabendo-o sempre singular e provisório. Não há fixidez. Não há estabilidade. E se não aprendermos a nos colocar diante disso, só nos restará a vertigem”.

Legenda: Intitulado “A construção poética do visível”, o trabalho de Andréa Bardawil consiste numa vivência terapêutica com a dança
Foto: Arquivo pessoal

Essas premissas são levadas pela coreógrafa para os encontros que realiza tendo como foco o trabalho corporal a partir de uma abordagem artística e terapêutica. Intitulado “A construção poética do visível”, consiste numa vivência terapêutica com a dança, partindo da consciência corporal, da educação somática e da improvisação. A vivência não exige experiência prévia com a dança e pode ser acessada por meio de sessões individuais (on-line ou presencial) ou em grupo (vivências presenciais uma vez por mês, no Espaço Grão). 

“Ao movermos o corpo, movemos tudo o que já fomos e tudo o que ainda vamos ser. A dança nos prepara para a vida e para as guerras, nos faz mais fortes, porque dançar é produzir alegria no corpo, e a alegria é um estado de potência.  Eis aonde chegamos: a alegria nos torna melhores. A alegria é revolucionária”, celebra.

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“A pandemia parece nos colocar diante de uma encruzilhada: ou nos reinventamos – e com isso inventamos novos modos de existir – ou padecemos. O planeta não suporta mais essa relação de degradação e exploração sem limites que o ser humano insiste em estabelecer. Para muitos, a experiência da paragem e do confinamento foi dilacerante; para outros, uma oportunidade única de mudar de rumo, de rotina, de projeto de vida. Tudo isso reverbera nos nossos corpos, altera nossos regimes de espacialidade e temporalidade”.

A dimensão do autocuidado

Assim, os efeitos a curto, médio e longo prazo advindos da falta de dedicação de tempo para nós mesmos são calculados pelo professor José Clerton Martins. Nessa equação, a temática do ócio volta a ganhar fôlego. “O ócio está relacionado a valores e significados subjetivos profundos. E apenas assim ele pode ter sentido enquanto vivência significativa positiva, fonte de desenvolvimento humano, bem-estar e prevenção à ociosidade negativa”, reflete.

“Cada vez mais, no âmbito da saúde, o ócio vem sendo reconhecido pela sua força, tanto no fator preventivo quanto no terapêutico. Verifica-se na terapia com pessoas depressivas, por exemplo, a recomendação de apoio no reforço dos vínculos, a partir de experiências nas temporalidades sociais de jogos, desenvolvimento do gosto por hobbies, passeios etc. No entanto, ainda se vive em tempos em que o horário do trabalho se estende a outros âmbitos da existência, colonizando as temporalidades próprias para a fruição de experiências verdadeiras, livres e plenas de sentido subjetivo”.

Nessa perspectiva, o sujeito que convoca experiências de ócio como um valor e uma prática sistemática promove o desenvolvimento da própria autonomia, ocasionando o aumento da autoestima e podendo, ainda, obter satisfação e relaxamento. De forma direta, isso tem impacto nas relações sociais desse indivíduo. Tais benefícios são nomeados como “intermediários”. A partir deles, alcançam-se os benefícios “finais”: saúde geral, sensação de bem-estar e qualidade de vida.

André Bardawil, por sua vez, observa que, no retorno à intensidade da vida coletiva, novos condicionamentos serão exigidos. Lidar com isso passa a ser uma jornada individual que dificilmente conseguiremos realizar sozinhos. Muitas das consequências da pandemia serão evidenciadas nos processos de produção de subjetividade somente agora, daqui para frente.  Por conta disso, as redes de apoio e o fortalecimento dos vínculos parecem de extrema importância para ela.

“Entendo que estamos vivendo um luto. Não há como passar por tudo isso sem vivermos esse luto. O corpo é casa. A dimensão do autocuidado, portanto, converte-se na mais importante estratégia de sobrevivência que podemos adotar. Que o tempo nos acolha, e que sigamos abrindo espaço entre as urgências, respirando mais largamente. É na interrupção dos fluxos que o tempo parece parar, e num silêncio arrebatador surge uma pergunta: de onde vamos partir, agora que chegamos até aqui?”, provoca.

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