Artista Jeff Alan pinta retratos de pessoas anônimas nas ruas de Fortaleza, e quadros impressionam
Obras estão presentes na Barra do Ceará e em painéis internos e externos da Caixa Cultural; desejo do artista é ocupar mais lugares a fim de transformar outras histórias em pintura
O menino que vai para a escola com mochila feita de livros e sonhos. A mulher de semblante cansado, mas aguerrido. O rosto de uma antepassada com trajetória de força. Quem andar agora por Fortaleza, facilmente reconhecerá esses personagens no contexto caótico da cidade. São trabalhos assinados por Jeff Alan, e impressionam por vários motivos.
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O principal deles é a capacidade do artista pernambucano de captar feições de pessoas anônimas e registrá-las em pintura. Cada personagem mencionado acima, por exemplo, segue esse princípio. Não constam nos anais da História, não intitulam nome de avenida ou de instituição. Mas têm as próprias travessias, questões muito íntimas vivenciadas diariamente.
Outro destaque da proposta artística de Jeff é a vocação de ocupar tanto o espaço controlado de um museu quanto a rua. Maior prova é a exposição assinada pelo recifense, “Comigo Ninguém Pode”, que sai de cartaz neste domingo (10) na Caixa Cultural Fortaleza, mas não vai embora tão cedo. Permanece no olho da Capital, onde a vista alcança.
Um dos murais, estampado na Barra do Ceará, crava na parede de uma estrutura abandonada a feição de tantas mulheres cujo cotidiano atravessa, entre outras atividades, o deixar filhos e netos na escola. A pintura nasceu de uma fotografia feita por Jeff no bar do tio dele, no Recife, e agora está nessa parte específica da capital cearense porque dialoga com o entorno.
“Fiz esse retrato pra gerar identificação com as pessoas mais velhas, donas de casa da Barra que vão buscar as crianças na escola e, ao fim de tarde, sentam na calçada pra conversar. Quero que pensem: quem foi a pessoa que pintou aquilo? Por que a mulher da pintura tem o aspecto de alguém cansado, que já batalhou tanto? Isso desperta curiosidade e, assim, vou conhecendo mais gente e contando mais histórias, fazendo novas memórias”, conta Alan.
Outro desenho encontra-se na parte externa da Caixa Cultural – espécie de herança deixada pelo artista para o equipamento. “O Estudante” desperta atenção pelo forte tom de azul e pela expressão que o menino reverbera. Na farda, é possível ler a palavra “Sonhos”. “Pra mim o caminho da escola foi um caminho de sonhos, e sei muito bem a importância da educação”.
A fisionomia da criança, vigilante e atenta, é mesmo para convocar quem passa ao redor do prédio e, sobretudo, dizer que alguém feito o retratante – negro, periférico e esperançoso – pode ocupar e estar no centro de espaços tantas vezes encarados como inalcançáveis por parcelas da população nesse mesmo estrato social.
Por fim, o mural “Quitéria” é o mais efêmero dos três. Vai embora junto à mostra “Comigo Ninguém Pode”, uma vez ter sido realizado especialmente para a edição da exposição em Fortaleza, na parte interna da Caixa. Não perde em relevância, contudo. O painel homenageia a bisavó de Jeff, em vigoroso diálogo com as raízes ancestrais do pintor.
“Minha mãe perdeu os pais, mas conheceu a avó dela. Ela disse que minha bisa usava o penteado do jeito como está no desenho. Mesmo que eu nunca a tenha visto – nem em foto nem em nada – fiz questão de representá-la. Ela e minhas avós, Luísa e Arlete, são pessoas muito presentes na minha vida. Quando estou criando, sinto a presença delas”.
Entre o afeto e a insatisfação
Esse sentir intenso do mundo, das pessoas e das relações faz parte de Jeff Alan desde muito cedo. Nascido e criado no bairro do Barro, Zona Oeste do Recife – localidade com raízes que remontam ao período colonial – o até então menino despertou para o desenho ao fazer capas dos trabalhos da escola. “A arte era meu superpoder, minha moeda”.
Dali para a rua foi um pulo. Não à toa, nada do que está sendo feito em Fortaleza é novidade para o pernambucano. No encontro com o grafite durante oficina em 2008, virou a chave para ele de como poderia agir dali para a frente. Colorir Recife foi a primeira opção. Desviar para o belo o rosto de quem passava pela metrópole e não via muita vida.
“Foi no caminho da escola que comecei a buscar meu espaço na cidade. Lembro que saía da rua da minha casa para ir ao colégio – Marechal Rondon, em Tejipió – e passava pela estação de metrô. Percebia as pessoas indo pros próprios afazeres, e muitas vezes não tinham nada pra contemplar. Era sempre aquele caos, aquela agonia, aquela correria. Queria me comunicar de alguma forma com elas. Levar cores, algum desenho que fosse respiro”.
Muitas criações continuam lá, bem como na fachada de casas de moradores tanto do bairro do Barro quanto de outras partes do Recife. Arte como transformação social em vários aspectos, principalmente a partir do maior refinamento da própria vocação. Entre 2014 e o início da pandemia de Covid-19, Jeff começou a retratar rostos anônimos e não parou mais.
Familiares, crianças, idosos, pessoas em situação de rua, tudo passou a fazer parte de uma ótica insubmissa. “Antes de ser pintor, grafiteiro, desenhista, sou um contador de histórias, um observador urbano. Gosto muito de olhar nos olhos das pessoas porque tento trazer essas verdades pras minhas obras”. Não à toa, sabe que o que produz não nasce das flores, mas de muita insatisfação. A coexistência de revolta e afeto é que nutre o caminhar insone de Jeff.
“Revolta de visitar um equipamento de cultura e não ser representado, de muitas vezes não concordar com o que está sendo narrado, de não me enxergar naqueles corpos negros assassinados lá atrás servindo de brinquedo a pessoas brancas. Não concordo com isso e nunca vou concordar. O que fazemos aqui é recontar essa história e da forma real: a história que deveria ter sido contada, ofuscada de toda a História da Arte e da humanidade”.
E, nesse alcançar dos “invisíveis”, dá passos largos. A primeira vez que a família viajou de avião foi para conferir “Comigo Ninguém Pode” no Rio de Janeiro. Em outro instante, uma dupla de irmãos, Douglas e Caíque, saiu do Recife para ver os próprios retratos expostos em Salvador. Nas redes sociais de Jeff, não faltam depoimentos e cenas assim.
Segundo ele, ao atingir determinado patamar de visibilidade, torna-se missão realizar denúncias e deixar evidente que a população negra e periférica não quer falar apenas sobre morte e dor. Há que se exaltar amores, sonhos e conquistas em traços fortes e cores berrantes. Gritar ao mundo toda a força do ser.
Fortaleza é tela de pintura
Visivelmente animado por estar em Fortaleza – nesta última viagem à cidade, comprou passagem só de ida – Jeff quer emplacar outras obras e projetos nas ruas da Capital. A comunidade do Poço da Draga e algumas instituições privadas já estão na mira, e ele está disponível para mais conexões. O objetivo é tornar a cidade uma grande tela de pintura.
Essa vontade evidencia pensamentos profundos. “Tudo o que conto nas obras acontece nas ruas. Por que precisa trazer pro museu pra dar uma validação? O grafite é das ruas, da rua pra rua. Tudo isso aqui, então, representa bem pouco o que tem lá fora”, tensiona, apontando para os quadros que o margeiam na Caixa Cultural.
Todos foram produzidos no silêncio do ateliê, mas trazem versos de músicas, citações de poemas, frases que intitulam universos inteiros – caso de “Nada como um dia após um outro dia” e “Posso mudar meu destino”, respectivamente de letras dos Racionais MC’s e de LEALL, rapper carioca. Para Jeff, isso é combustível.
No próximo ano, deseja seguir com a mostra “Comigo Ninguém Pode” para mais lugares; otimizar mais pinturas na rua – ilustrando inclusive prédios; e trabalhar com novas superfícies, a exemplo de esculturas e instalações. O grande sonho, no entanto, é construir uma escola de arte no bairro natal.
“Está perto de ser realizado, me estruturei pra isso, então acho que o próximo ano será o momento de acontecer”, torce. “Ainda não tem nome, mas posso adiantar que será um espaço para potencializar sonhos. É isso que quero, que cada um acredite, alimente os próprios sonhos. Acho que não faz sentido nenhum a gente viver sem sonhar”.
A frase ganha ainda mais sentido quando pensamos que toda a conversa com Jeff ocorreu sobre o letreiro “Sonhos Vivos”, na Caixa Cultural Fortaleza. Modo poético e categórico de anunciar que, daqui para a frente, “quem sabe de mim sou eu”.