Ancestralidade negra é celebrada em diversas festividades tradicionais no Ceará
Do Maracatu ao Tambor de Crioula, as festividades fortalecem a identidade cultural do povo negro e apontam para a necessidade de conservação da memória
Festas e cerimônias sempre foram práticas importantes no ambiente social. Para a população negra, então, esses momentos historicamente representam bem mais: a possibilidade de manter viva as tradições cuja força reside na ancestralidade.
Publicado no ano passado pela editora Fi, o livro “Histórias de negros no Ceará” possui um capítulo inteiro dedicado às festas negras realizadas em Fortaleza no século XIX. Em um dos trechos, é possível perceber que, nas ocasiões de celebração, mantinham-se certas matrizes africanas. Ao mesmo tempo, permitiam-se inúmeras reelaborações culturais a partir de elementos presentes no contexto social do momento.
Essa era uma forma de enfrentar o preconceito ou mesmo de atrair o público em geral. “Entendemos, portanto, que aqueles sujeitos constantemente reinventavam as práticas que aqui denominamos ‘festas’”, sublinha Janote Pires Marques, Doutor em Educação Brasileira e mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC), autor do capítulo.
Complementando a visão do estudioso, outro relevante nome no segmento – o pesquisador de História e Cultura negra do Ceará, professor universitário Hilário Ferreira – explica que, apesar da pulverização de festividades ao longo do tempo, como Burrinha e Samba de Umbigada, outras seguem firmes no presente, atestando o vigor do saber negro. Como exemplos, há o Maracatu, Boi do Pirambu, Tambor de Crioula e os Reisados de Congo.
“Por mais que a sociedade escravista tentasse apagar desses africanos a sua identidade e memória, impondo a condição de escravos, os espaços das festas eram momentos de lembrar, de fortalecer a identidade”, situa. Segundo ele, quando um africano chegava em Fortaleza, poderia passar o período natalino, por exemplo, na Praça dos Leões, vendo a festa do Congo – uma reelaboração dos reinados, ligados às maiores autoridades políticas do país da África.
“A procissão que saía da Igreja do Rosário e ia até a Igreja do Carmo, cercada de tambores, fazia com que essas pessoas que vieram do outro continente acompanhassem aquele movimento. A documentação histórica revela que, tanto nos sambas quanto na Festa do Congo e na Burrinha, havia a presença de africanos, crioulos, libertos, livres e escravos”.
O pensamento se sintoniza com o de outro pesquisador no ramo, o professor do Departamento de História da UFC, Franck Ribard. Um dos organizadores do já citado “Histórias de negros no Ceará”, ele contextualiza o peso dessas manifestações culturais para a manutenção e o alargamento da herança ancestral negra no Estado.
“Os elementos tradicionais da cultura popular cearense – maracatus, sambas, bumba-meu-boi, reisados – revelam a contribuição histórica de figuras que dedicaram a própria vida para a manutenção e a transmissão de saberes culturais de primeira importância. São artistas, muitas vezes de ascendência negra, que atuaram no passado e atuam até hoje de forma quase sempre anônima”, percebe.
A seguir, entre tradições e resistências, você confere as principais festividades que celebram a ancestralidade negra cearense:
Maracatu
Uma das mais conhecidas expressões da vitalidade do povo negro em nosso chão, o maracatu se desenvolve no Ceará desde a década de 1930. A popularização das agremiações carnavalescas contribuiu para a difusão da rítmica e da estética inconfundíveis, a partir de elementos como ferros, chocalhos, tambores e gonguês das caras pintadas de negrume.
Apesar da ampla penetração no seio social, foi apenas em 2015 que o maracatu se tornou patrimônio imaterial de Fortaleza. O importante passo sedimentou a dimensão desse fazer diverso e pulsante, responsável por unir pessoas de diferentes credos, classes e gerações numa mesma dinâmica de fortalecimento identitário.
Durante a pandemia de Covid-19, o cenário ficou bastante complicado para a manifestação cultural na capital cearense. Com pouco apoio público e dependendo da contribuição da população para manter as agremiações, o maracatu segue sendo resistência e força diante de tantas intempéries.
Boi do Pirambu
Desenvolvido na periferia de Fortaleza, o Bumba Meu Boi do Pirambu é outro folguedo integrante do legado cultural negro na Capital. A brincadeira começa com o cordão vermelho, seguido do cordão azul. Dos elementos presentes na expressão, estão ema, bode, rainha, rei, baliza, índios, princesa, príncipe, vassalos, pastor, vaqueirinhos, capitão, entre outros.
Passada de pai para filho e, portanto, no cotidiano de inúmeras gerações de brincantes, a manifestação tem origem na história da escrava Catirina. Grávida, ela pede ao marido, Mateus, para comer língua de boi. Com muita música e dança, personagens humanos e animais fantásticos estrelam a saga da ressurreição do animal.
O Bumba Meu Boi do Mestre Ciro, no Pirambu, é intitulado Boi Juventude, cuja primeira apresentação data de junho de 2001. Feito acontece com o maracatu, a expressão cultural também necessita de apoio neste instante pandêmico. Não à toa, lançou uma campanha para arrecadação de dinheiro e consequente manutenção da sede.
Tambor de Crioula
Dança afro-descendente da cultura do Maranhão – praticada em louvor a São Benedito, ou o santo negro, considerado padroeiro dos tocadores e brincantes de manifestações culturais e dos tambores de crioula existentes – o Tambor de Crioula também ganha terreno no Ceará. O coletivo Tambor de Crioula Filhos do Sol é um dos mais fortes exemplos.
Outra boa referência dessa manifestação em nosso Estado é o Tambor de Crioula Filhos de Mãe Maria, Devotos de São Benedito. O grupo, fundado em 2018 por pesquisadores e brincantes da Cultura Tradicional Popular – Fabrízio Frota, Lorena Lyse e Welington Nascimento, junto ao Centro Espírita de Umbanda São João Batista – é o único no Ceará cujas origens estão ligadas a uma Casa de Santo.
A multiplicidade de fazeres dessa expressão reflete a efervescência dos trabalhos, bem como o grande alcance. Embora não haja um consenso sobre a origem de São Benedito, o fato é que ele é reverenciado por muitos integrantes dos grupos de Tambor de Crioula, que carregam na história as marcas de uma resistência cultural e religiosa.
Reisados de Congo
Surgido na Europa e no Oriente desde a Idade Média – assim como no continente americano, a partir da descoberta por navegantes europeus – o Reisado tomou variadas feições, incorporando elementos das mais diferentes procedências e ganhando características locais a fim de refletir um universo multicultural em suas manifestações. No Brasil, ele se apresenta com diferentes nomes (Terno de Reis, Tiração de Reis, Folia de Reis, Reisado – de Congo, de Caretas ou de Couro, de Caboclos, de Bailes –, Boi, Rancho de Reis, Guerreiros etc.)
Em solo cearense, a região do Cariri é uma das mais vigorosas no segmento, com brincantes reverenciados pela energia e pelo entusiasmo. Reportagem do Diário do Nordeste publicada em janeiro do ano passado mostra que as principais referências da manifestação vêm de Roma e Portugal. A tradição do Congo simula um cortejo de guerreiros que se empenha numa guerra santa.
Entre um festival de cores, sons e indumentárias, a herança africana é outra reverenciada pelo reisado de Congo, retratada no palhaço Mateu, identificado com cara preta. Os brincantes pintam o rosto porque estão homenageando os negros. Até mesmo os passos de dança do folguedo trazem referências africanas por meio do toque dos tambores e da consequente coreografia que brota desse movimento.