Ainda conseguimos ler livros longos em meio à correria da rotina? Neurociência explica
Multitarefas do cotidiano e excesso de estímulos roubam do cérebro a energia necessária para acompanhar obras mais extensas
Atire a primeira pedra quem nunca trocou um livro bastante volumoso por aquele fininho, de poucas páginas, perfeito para ler em um dia ou durante o fim de semana. Basta uma conversa entre amigos para saber que a prática tem sido cada vez mais frequente. Enquanto os calhamaços ocupam as estantes, as breves narrativas estão transitando pelas mãos, olhares e discussões de pessoas mundo afora.
Faz oito anos que Gabrielle Miranda, 23, percebeu a rotina de leitura mudar ao aderir a esse movimento. O início da preparação para o vestibular fez com que a estudante preferisse esse tipo de obra devido à agitação do cotidiano. “Tenho pouco tempo para ler livros mais volumosos. Em média, leio obras de até 200 páginas”, calcula.
O hábito fez, inclusive, com que ela passasse a encarar com mais dificuldade a dedicação a exemplares longos. Ao acompanhar histórias mais curtas, Gabrielle consegue chegar à conclusão da trama de modo mais rápido. “Isso otimizou meu tempo e me deu oportunidade de continuar lendo obras interessantes, mesmo na correria”.
No ano passado, por exemplo, ela leu os sete volumes da série “As Crônicas de Nárnia”, do britânico C. S. Lewis (1898-1963). Todos eram curtos e Gabrielle vibrava por finalizá-los rapidamente. Ao mesmo tempo, a estudante deseja retomar a prática de ler obras mais extensas – principalmente porque já deixou de acompanhar boas tramas devido à quantidade de páginas delas, ainda que estivesse interessada pela história.
Muito dessa indisposição vem na esteira dos vários estímulos da dinâmica contemporânea. “Muitas vezes eu quero ler uma obra mas não consigo devido ao pouco tempo. Então, sempre deixo para depois e, nisso, acabo lendo quase nada do que desejo. E é bem difícil eu me concentrar. Sempre tem o celular vibrando e me alertando de algo que preciso fazer”.
Energia roubada
Gabrielle Miranda não está sozinha. Com ela, pessoas de todo o mundo passam pela mesma situação, priorizando atividades mais breves em detrimento das grandes narrativas e projetos. A neurociência explica a questão. Tomando como base o sistema nervoso, observamos uma evolução dele, desde as formas mais primitivas, como um elemento que capta estímulos do meio e executa respostas – sejam motoras, viscerais, emocionais ou, no caso do ser humano, na elaboração de pensamentos e raciocínios complexos.
A vida moderna, mediante o avanço da tecnologia e dos meios de comunicação, oferece uma intensidade de estímulos difícil de ser absorvida e organizada pelo cérebro. Ao mesmo tempo, a necessidade de apreender constantes informações a fim de obter atualização impõe uma cultura de rapidez e agilidade na obtenção de conteúdos. Esta acaba sendo feita por meio de textos mais concisos ou mesmo por meios não textuais, como o audiovisual.
“As constantes interrupções e desviadores de foco digitais também entram nesse contexto multifatorial. É difícil ler obras como ‘Guerra e Paz’ ou ‘A Montanha Mágica’, com suas centenas de páginas, ao mesmo tempo em que dezenas de alarmes e notificações aparecem nas telas do celular ou do computador”, situa Eduardo Jucá, neurocirurgião pediátrico, neurocientista, pesquisador e professor da Universidade de Fortaleza.
Para ele, esses disparadores de atenção afastam as pessoas de obras que exigem maior aprofundamento – fato bastante indesejável, conforme sublinha. “Isso porque os clássicos da literatura têm um papel valioso na formação e no desenvolvimento cerebral por meio da construção de referenciais e da ampliação de horizontes”. Nesse sentido, a multiplicidade de estímulos ocupa uma generosa fatia no que diz respeito ao desvio da atenção e do foco.
Para melhor ilustrar o contexto, Eduardo Jucá cita o neurocientista e psicólogo vencedor do Prêmio Nobel de Economia, Daniel Kahneman. De acordo com o pesquisador israelense, temos dois sistemas de pensamento: um rápido e pouco reflexivo e outro lento e reflexivo. O sistema que atua mais devagar consome também mais esforço e mais energia – inclusive no sentido biológico, de gasto energético.
“As multitarefas do cotidiano, a vida agitada, a sobrecarga e o excesso de estímulos roubam do cérebro a energia necessária para acompanhar obras mais longas, sejam literárias ou cinematográficas. Conhecer esse mecanismo prejudicial é muito importante para que possamos reverter a tendência e não deixar de aproveitar grandes livros ou filmes, como ‘Os Maias’, de Eça de Queiroz, ou ‘A Lista de Schindler’, de Steven Spielberg”, enumera Jucá.
“Na obra ‘Rápido e devagar: duas formas de pensar’, Daniel Kahneman explica que o sistema de pensamento mais rápido é também mais superficial, menos reflexivo e mais sujeito a erros de interpretação. Evolutivamente, esse sistema se desenvolveu para que pudéssemos dar resposta rápida a elementos perigosos do meio. Por outro lado, quando aplicado em situações que exigem análise, ele tem desempenho insatisfatório”.
Conteúdos cada vez mais curtos
Cientificamente falando, outro aspecto importante é o sistema endógeno de gratificação. Ele age como intermediário da sensação de prazer. No cérebro, um dos principais componentes desse circuito é a liberação de dopamina na região basal do lobo frontal. Cada vez que somos submetidos a estímulos visuais curtos com novidades e apelo visual, essa rede é ativada e nos leva a querer mais – como quando rolamos o feed das redes sociais.
O mecanismo é potencialmente gerador de hábito, uma vez que a repetição é agradável – embora leve ao prejuízo de atenção e ao esgotamento mental. Não por acaso, esse circuito neural também está envolvido no abuso de drogas. “Assim, o cérebro dos leitores vai se acostumando com conteúdos cada vez mais curtos. A tendência dos escritores em se adaptar a essa tendência vai ao encontro da mudança de gosto que é tendência da época atual”, observa Eduardo, refletindo sobre o outro lado da moeda: a de quem desenvolve literatura.
“É preciso contextualizar que a literatura não é um fenômeno tão antigo se enxergarmos todo o período humano na Terra. A escrita data de cerca de quatro mil anos atrás. Essa arte se desenvolveu a partir dos textos religiosos da Antiguidade e dos romances da cavalaria e, durante muitos séculos, foi capaz de produzir romances volumosos como ‘Dom Quixote’, de Cervantes. Narrativas complexas ajudaram, então, a compor o arcabouço intelectual da civilização e grandes obras seguiram sendo escritas e legadas para a eternidade”.
Hoje, por motivos já explicados, a tendência é de que os textos sejam cada vez mais breves. A boa notícia é que é possível produzir literatura de alta qualidade e profundidade em linhas curtas – a exemplo de “O Alienista”, de Machado de Assis, ou “A Metamorfose”, de Kafka, além dos contos de Clarice Lispector e de tantos outros escritores contemporâneos. “Mas é verdade que narrativas longas têm cada vez menos adesão nos dias de hoje”, pontua Jucá.
Sendo assim, acompanhar textos curtos pode ser uma forma de voltarmos a ter um bom hábito de leitura? Para Eduardo, essa é uma possibilidade real e que deve ser aproveitada. “Muitos leitores da minha geração desenvolveram o gosto pela leitura com os livros da coleção Vaga-lume, por exemplo. Histórias curtas, mas bem elaboradas, que acabavam despertando o interesse por obras mais profundas”.
O problema, segundo ele, acontece quando não há a transição para conteúdos mais aprofundados. Assim, os jovens leitores correm o risco de não passarem das obras introdutórias e ficarem aprisionados em textos rasos, que não estimulam o cérebro. “É missão das escolas e das famílias guiarem as crianças e os adolescentes no sentido de desafiarem suas redes neurais com literatura cada vez mais sofisticada para que desenvolvam todas as suas potencialidades”, defende o pesquisador.
Acompanhar mais histórias
Quando se fala em ler livros extensos e com maior complexidade, Amanda Belchior, 24, diz que esses títulos ficam reservados somente para as férias. No momento, a estudante está satisfeita com o prazer proporcionado pelas leituras mais breves. “Devido ao pouco tempo livre disponível para essa atividade, obras curtas me motivam mais a conseguir concluir a leitura mais rápido. Em média, acompanho histórias com até 150 páginas”, detalha.
Na visão dela, essa prática faz com que tenhamos acesso a diferentes perspectivas e assuntos. Ao mesmo tempo, também tem proporcionado que ela seja mais eclética e se beneficie do conhecimento de mais tramas. “Os quatro compromissos”, de Don Miguel Ruiz; “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry; e “Deus frustrou meu sonho”, de Ronaldo Fonseca, foram alguns dos títulos conferidos por Amanda no ano passado.
"Mas com certeza a dinamicidade do tempo influencia em outras escolhas na rotina, como na hora de escolher séries para assistir – escolho as que não têm tantas temporadas – ou no fato de só me sentir produtiva quando faço diversas coisas durante o dia”, observa a estudante.
Encarando e compreendendo esses tantos dilemas da contemporaneidade – ainda que atenta à necessidade de não deixar de lado aspectos importantes da vivência cultural – a Amazon lançou no ano passado a coleção Leituras Rápidas. Uma vez por mês, os autores participantes do projeto, todos da nova safra da literatura brasileira, lançam contos ou crônicas, abordando temas como Negócios, Viagens e Esportes, além de Romance e Poesia.
Todas as obras estarão disponíveis para assinantes do Kindle Unlimited. Parte do conteúdo também estará disponível para assinantes Prime. Além disso, uma seleção dos autores terá os textos mais recentes no Prime Reading, que dá acesso a centenas de revistas e eBooks para membros Amazon Prime sem custo adicional. Para os demais consumidores, os eBooks da coleção podem ser adquiridos individualmente por R$5,99. Os títulos podem ser conferidos aqui.
Leituras mais ágeis
De acordo com o porta-voz da Amazon, a coleção Leituras Rápidas nasceu da ideia de oferecer um conteúdo de qualidade para quem busca uma leitura mais ágil. “O formato de textos curtos atende tanto um público que já lê e quer descobrir novos autores e gêneros quanto outro que ainda não têm o hábito de ler e deseja começar a desenvolvê-lo”, explica.
Ele destaca que a empresa à frente da iniciativa acredita no incentivo à leitura como ponto central. Logo, qualquer ação que a faça optar pelo livro influencia todo o mercado literário. “O Brasil tem uma longa tradição de contistas, cronistas e poetas, que mostram que esse formato é de uma qualidade excepcional no país, e os autores que participam da coleção reforçam esse ponto”. Entre eles, estão Gabriel O Pensador, Mel Duarte e Henry Bugalho.
Quando questionado sobre o perfil do leitor brasileiro – baseado nas métricas oferecidas pelo Kindle – o porta-voz da Amazon diz que somos uma nação que adora ler, independentemente do gênero, tamanho ou formato. Entre os livros mais vendidos de 2021, por exemplo, as obras chegam a centenas de páginas, incluindo títulos como o já citado “Rápido e devagar: duas formas de pensar”, de Daniel Kahneman; “1984”, de George Orwell; e “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior.
“De acordo com a nossa experiência, observamos que os brasileiros amam ler e queremos continuar oferecendo mais variedade, conectando leitores a autores e com a melhor experiência de leitura. O público de eBooks no Brasil é excelente e crescente. Além dos e-readers Kindle, os brasileiros usam muito o aplicativo gratuito de Kindle para smartphones, tablets e computadores. Leituras curtas atendem uma demanda do público, enquanto livros maiores continuam tendo grande sucesso”.
Por sua vez, o neurocientista, professor e pesquisador Eduardo Jucá sublinha que a leitura é um hábito a ser desenvolvido de maneira contínua, cuja influência é decisiva no desenvolvimento das capacidades cognitivas do cérebro. Entretanto, diferentes indivíduos podem desenvolver distintas características de leitura, como velocidade, ambiente preferido ou opção por fazer anotações.
“O que é comum a todas as pessoas é que a forma ideal de adquirir e aprimorar o hábito da leitura é atingida com o exercício contínuo e intenso, com o acúmulo de experiências literárias e com a associação da leitura com o prazer de aprender e de explorar novos mundos, cenários, personagens e situações”, contextualiza. Trocando em miúdos: independentemente do conteúdo e do formato, continuemos a ler.