‘Achei que o mundo ia acabar’: os relatos inéditos de quem testemunhou os ataques do 11 de setembro
Escrito com base em milhares de transcrições, livro “O único avião no céu” é lançado na esteira dos 20 anos do fatídico dia, completados neste sábado (11)
Eu tinha seis anos de idade quando ocorreu o ataque ao World Trade Center, nos Estados Unidos. Minha lembrança é a da não-lembrança. Não recordo de nada. Pelo fio da memória, passam apenas parcos fragmentos construídos ao longo do tempo, alimentados por fotografias, vídeos e notícias que, feito um tenebroso fantasma, nunca pararam de ocupar a ordem do dia. Fui, assim, montando o evento aos poucos, bloco por bloco, tentando reerguer as estruturas tornadas vertigem e pó.
Sempre imaginei o tecido da dor, a dimensão do desespero, a pele do silêncio. Como quando você não quer acreditar na partida súbita de alguém querido, de inúmeros colegas de trabalho, de pessoas que nem sequer faziam parte de seu cotidiano, mas que, por razões até hoje inomináveis, continuam a entoar um lancinante réquiem. É coisa de humanidade. A agonia de tantos ampliada para todos. Uma nação sangrando em labaredas de fuligem, e o mundo junto.
Evocar o fatídico 11 de setembro de 2001 é ir ao encontro de nossas mais intangíveis sensações. Que palavras se perderam na corrosão do caos? Qual foi o último instante de felicidade antes do pandemônio? Mesmo em meio aos escombros, houve algum sorriso? Algum alento? Algum suspiro? Quem vai devolver a paz aos órfãos de si?
Quero alicerçar o monumento das reminiscências desse dia com pequenos vestígios. Encará-los diante de tudo o que foi imenso demais para caber no peito. Marcar na história – na minha história – testemunhos miúdos de tamanho e tão imponderáveis em seu devir.
Trazer à mente, por exemplo, o relato de um policial, William Jimeno, que só conseguia pensar, naquelas horas de angústia: “Vou morrer”. E tão prontamente assim imaginou, fez um “Eu te amo” na língua de sinais, costume compartilhado com as filhas. “Achei que se morresse ali e elas me encontrassem, pelo menos iam poder dizer à minha esposa que minhas mãos estavam cruzadas daquele jeito, e ela saberia que eu estava pensando nela”.
Chegar também junto a padre Judge – presença constante e reconfortante para os socorristas – e senti-lo rezar em voz alta no saguão da Torre Norte, uma das atingidas no ataque. Igualmente percebê-lo sair correndo para fora do local a fim de dar a extrema-unção a um bombeiro, Danny Shurr, atingido e morto por alguém que saltou do prédio em chamas.
Saber de uma mulher, Beverly Eckert, que preferiu aproveitar os poucos minutos que restavam com o esposo para apenas conversar ao telefone. Ele lhe pediu para dizer à família que os amava, e então ficaram comentando de quanta felicidade tinham tido na vida, da sorte de compartilhá-la juntos. “Em um dado momento, percebi que ele estava tendo mais dificuldade para respirar. Perguntei se doía. Ele hesitou um momento e disse: ‘Não’. Ele me amava demais para dizer a verdade. No fim, quando a fumaça ficou mais espessa, ele só sussurrava: ‘Eu te amo’, sem parar”.
Fisionomias do transtorno
É essa a tessitura narrativa apresentada em “O único avião no céu: Uma história oral do 11 de setembro”, do historiador e jornalista americano Garrett M. Graff. Publicado no Brasil pela editora Todavia na esteira dos 20 anos do ocorrido, completados neste sábado (11), o livro compila milhares de transcrições nunca antes divulgadas referentes a um dos maiores e mais apavorantes acontecimentos de nossa recente cronologia.
São pormenores valiosos não apenas para a compreensão do evento em si, mas, sobretudo, para o acesso a um sem-número de gestos desenhados ao longo de todo o transtorno. Movimentos intrínsecos tanto à alta cúpula do governo americano – é possível, nas páginas, acompanhar as reações do então presidente George W. Bush frente ao aterrorizante cenário, bem como as de todos os profissionais ligados a ele – até a cidadãos comuns, pessoas que entraram para a História como sobreviventes de uma calamitosa conjuntura.
M. Graff entremeia os relatos com breves e precisas informações, alocando o público leitor na intrincada composição do fato a partir de várias perspectivas. Trata-se, portanto, de uma tensa e vigorosa orquestra de vozes, ampliada por mapas, imagens e um fascinante exercício de pesquisa e montagem dos testemunhos coletados ao longo de três anos – não sem antes ficar bastante claro: o trabalho não tem a intenção de ser um cronograma que mostre como e por que o 11 de setembro aconteceu.
“Grupos como a Comissão 11 de Setembro dedicaram anos de trabalho e milhões de dólares para oferecer essas respostas”, explica o autor. “Em vez disso, a obra pretende captar como os norte-americanos viveram aquele dia, como os ataques em Nova York, no Pentágono e nos céus do condado de Somerset, na Pensilvânia, ecoaram na vida das pessoas de costa a costa, das Torres Gêmeas a uma escola de ensino fundamental em Sarasota, Flórida”.
A primeira imagem que temos desse panorama parte de uma grande angular, por meio da visão do único norte-americano longe do planeta Terra naquele instante do tumulto. Frank Culbertson, astronauta da Nasa, conta que o clima estava impecável nos Estados Unidos no referido dia, e a única atividade visível para ele era a grande coluna de fumaça preta saída de Nova York em direção a Long Island e o Oceano Atlântico.
“Quando dei um zoom na câmera, vi uma enorme bolha cinzenta que envolvia basicamente todo o sul de Manhattan. Eu estava vendo a queda da segunda torre. Imaginei que dezenas de milhares de pessoas estavam sendo mortas ou feridas. Foi horrível ver meu país sendo atacado”, confidencia.
“Talvez a gente não sobreviva hoje”
Feito tudo relativo ao 11 de setembro, não é fácil penetrar na atmosfera da desordem. O livro por vezes se torna ele mesmo uma bomba prestes a explodir, um avião a atravessar o concreto. Exige esforço da audiência, coragem para ler frases do tipo “Achei que o mundo ia acabar”, “Foi esse momento que mudou tudo”, “Pensei: O inferno deve ser assim” e “Talvez a gente não sobreviva hoje”.
Mesmo em meio a esse turbilhão, dado o primoroso trabalho de costura dos depoimentos e do magnetismo que o evento encerra, é também imensamente difícil desviar o olhar da rota de histórias e trajetos. O ato estimula uma multiplicidade de análises: das estratégias políticas utilizadas em instantes de exceção; da força descomunal de pessoas comuns, anônimos-heróis de vários destinos; daquilo que quase se perde na poeira dos dias, mas surge, sem limite de vontade, em antigas e novas gerações, conhecedoras ou não de tudo o que houve.
Logo, no passo a passo de emoções sedimentado pela obra, nada passa incólume. Em aflitiva frequência, acompanhamos os sentimentos presentes na noite anterior ao acontecido; a sensação de “dia perfeito” que a manhã do atentado parecia evocar antes de tudo; as engrenagens utilizadas pelos responsáveis de todo o alvoroço. Também a movimentação dos meios de comunicação, das escolas, dos hospitais e dos serviços de proteção à nação, perdidos no oceano de papéis e de corpos, tentando achar alguma nesga de esperança e alívio.
Não houve. E talvez nunca haja. Fitar as narrativas desse caleidoscópio de amarguras, porém, instaura algo maior em nós. Vontade de escrever outras linhas nas quais a humanidade acesse o mais profundo de si por outras vias que não a do sofrimento. Da dor. E então contaremos as novidades dos dias que serão fáceis de lembrar porque tudo foi bom.
O único avião no céu: Uma história oral do 11 de setembro
Garrett M. Graff
Tradução de Julia Debasse e Érico Assis
Todavia
2021, 560 páginas
R$99,90/ R$54,90 (e-book)
> Confira mais um lançamento editorial sobre o atentado do 11 de setembro de 2001
Para além da obra publicada pela Todavia sobre o ataque ocorrido nos Estados Unidos há exatos 20 anos, é possível também conferir o livro “O vento mudou de direção: O Onze de Setembro que o mundo não viu”, da jornalista brasileira Simone Duarte. Em caprichosa edição pela Fósforo, o trabalho revela a vida de sete pessoas de quatro nacionalidades distintas que nada teriam em comum, não fosse a tragédia do atentado às Torres Gêmeas em Nova York e suas consequências. Nas palavras de Pedro Bial, “com as armas do melhor jornalismo, [a obra] destrincha a complexidade e nos lança à História, essa com ‘h’ maiúsculo; traz as histórias que, não fosse por ela, nunca seriam contadas. Um prodígio, a realização deste livro”.
O vento mudou de direção: O Onze de Setembro que o mundo não viu
Simone Duarte
Fósforo Editora
2021, 246 páginas
R$69,90/ R$44,90 (e-book)