A vida dos cearenses do século XX contada pelas fotografias
Em "História da Fotografia no Ceará do Século XX - 1900 a 1930", professor Ary Bezerra Leite entrelaça o desenvolvimento da tecnologia e as mudanças políticas e sociais da região, conferindo uma fonte de estudo inédita no tema
Devido ao pioneirismo na abolição das pessoas escravizadas, José do Patrocínio (1853-1905) batizou o Ceará como a "Terra da Luz". Correram os anos e o termo também passou a referenciar a intensa luminosidade solar da região, tida como ideal ao estabelecimento da fotografia e cinema.
Hoje, em meio à fartura de câmeras nos dispositivos móveis, é possível descobrir como a arte fotográfica despontou e se desenvolveu no estado. Essa história é revelada no livro "História da Fotografia no Ceará do Século XX - 1900 a 1930", do professor Ary Bezerra Leite.
Lançado durante a segunda edição do Fotofestival SOLAR, a obra entrelaça sete décadas de estudos e pesquisa. O autor esmiúça a estrada da fotografia cearense, iluminando registros e trabalhos deixados por profissionais e amadores visitantes que circularam pelo lugar.
O trabalho segue ordem cronológica, com um estilo de texto mais livre. Uma "narrativa histórica", descreve Ary Bezerra. Cada capítulo contextualiza os acontecimentos do período no Ceará, como as mudanças políticas e sociais, o flagelo da Seca e aurora de tecnologias como o cinema, iluminação a gás e elétrica, os bondes e aviação.
A leitura permite acessar informações e dados pouco conhecidos da população quando o assunto é fotografia. "A história contada nos livros nacionais não fala nada do Ceará", explica o pesquisador, cuja saga em busca dessa reparação histórica despertou na juventude, no escurinho do cinema.
O menino observador
O menino criado na Rua Padre Mororó respirou os últimos dias da chamada "Belle Époque" de Fortaleza. Período no qual a influência europeia, destacadamente francesa, resultou em mudanças urbanísticas que remodelaram a capital entre o século XIX e início do século XX.
E o jovem Ary Bezerra revelou-se um apaixonado pela sétima arte. Encanto alimentado à magia dos filmes exibidos no Cine Majestic, Cine Moderno e Cine Diogo. De frequentador assíduo passou a cinéfilo, atuando diretamente pelo Clube de Cinema de Fortaleza ao lado de amigos como Darcy Costa, Antonio Girão Barroso e Tarcísio Tavares.
Por volta de 1952, durante conversa com Darcy Costa, veio a constatação da falta de registros sobre a chegada do cinema no Ceará. "Não tinha uma documentação histórica do cinema no Ceará, o único trabalho que existia era um artigo publicado numa antiga revista. Autores, personalidades brilhantes do meio cultural cearense reconheciam que aquela narrativa era precária e que por ser uma história oral, deveria ter falhas. E realmente tinha muitas", descreve o professor.
Decidiu pesquisar os jornais da época. Naquele momento, a Biblioteca Pública atendia no subsolo do antigo prédio do IBEU (localizado no bairro Aldeota). O equipamento mudou de enderenço ao longo dos anos e o pesquisador acompanhou de perto o acervo.
Estudou manuscritos, cadernos, página por página, por décadas e anos. Catalogou todos os filmes exibidos em Fortaleza, com indicação de datas e o cinema exibidor. Guarda até hoje o que chama de "cápsulas do tempo", que reúne acontecimentos ocorridos na cidade desde o século XIX. São eventos gerais, conta. Até fatos do noticiário criminal, como um assassino em série que vitimou fortalezenses.
A dedicação ultrapassou fronteiras e a reconstrução dessa história passou por Biblioteca Nacional (RJ), Arquivo Público de Recife, Museus de Arte Moderna, Cinemateca Brasileira, sempre tendo o cinema como objeto de estudo. Viajou o mundo. Pesquisou por França, Viena, Belgrado, Budapeste, Helsinque. Fez mestrado nos Estados Unidos.
"Fazia leitura de fontes paralelas e achava absurdo uma turma afirmar que o primeiro clube de fotografia fosse em 1910, no Rio de Janeiro, quando no século XIX já tínhamos em Fortaleza", assevera.
Terra da Luz e fotografia
Em 1995, em meio ao centenário do cinema, Ary Bezerra publicou a primeira obra. Fruto desse mergulho incessante na pesquisa. “Fortaleza e a Era do Cinema” (Volume I – 1891-1931), descreveu os antecedentes e chegada à capital cearense da criação dos irmãos Lumière até sua transição para películas sonoras.
Mesmo tendo o cinema como foco, o autor dedicou um capítulo do livro aos fotógrafos e suas primeiras associações em Fortaleza. "Citei três fotógrafos, afinal, não era o objetivo falar desses profissionais, não era uma pesquisa histórica da fotografia. Esperava que alguém no futuro realizasse um estudo da fotografia no Ceará, passaram as décadas e ninguém fez. Continuei com os objetivos na área do cinema".
Seguiram-se os livros "A Tela Prateada", "Memória do Cinema: Os ambulantes no Brasil", "Cartografia do audiovisual cearense" e "História da energia no Ceará". Em 2019, veio o desafio de revelar os primeiros passos da fotografia no Ceará. É quando publicou "História da fotografia do ceará no século XIX".
Agora, Ary Bezerra desvenda as três primeiras décadas do século XX. Procura estabelecer o legado de mestres do passado aos novos fotógrafos. "Trago o impacto de inovações nos procedimentos e equipamentos fotográficos, a popularização da Kodak e o crescimento do amadorismo, a introdução dos cartões postais fotográficos no Brasil e sua valiosa contribuição para a iconografia cearense", detalha.
Quem fez a história
Ary Bezerra detalha que as primeiras décadas do Século XX são marcadas por agitações políticas. Quedas de governos, como a do Governador Accioly e Franco Rabelo. A história dos jagunços que vieram armados e invadiram Fortaleza. A fotografia entra como registro dessa realidade, como mostrou a Seca de 1877, as inundações das décadas de 1920 em Aracati e Sobral.
Outro destaque à reconstrução desta jornada é perceber como a fotografia se entrelaça com o teatro, artes plásticas e cinema que existiam na capital. Traduz também a passagem de profissionais estrangeiros como italianos, franceses, judeus, portugueses, dinamarqueses e até russos.
"Rastreio personagens de maneira a descrever o caminho e quem eram estas pessoas. O sofrimento e alegria de cada um deles, só evito aquilo que seja muito ofensivo à memória". Destes nomes constam Moura Quineau, Claudio Cabral, Pedro Maia, J. Ribeiro e muitos outros.
Entre os personagens, Ary Bezerra dedica capítulos a Giuseppe Filippi (pioneiro dos filmes na Itália) e Mário de Andrade (1893-1945). O italiano morto em 1956 chegou no Ceará em 1902 e registrou a festa de inauguração da Praça do Ferreira. Já Andrade realizou 16 fotografias em Fortaleza e o escritor teve acesso ao diário do poeta modernista.
"É a tentativa de contar uma história que não tinha nada escrito. Minhas fontes são todas citadas. Depoimentos ao longo das décadas onde anoto, coloco data, tem cartas, e-mails, correspondências, telefonemas que transcrevo. Produto de uma vivência pessoal e de uma pesquisa profunda e séria. É uma paixão, uma contribuição à memória cearense", finaliza o professor Ary Bezerra Leite.